"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

CARTA A JOSÉ SARAMAGO - PARTE 03 - O DRAMA EM COIMBRA


Coimbra e o Mondego
Coimbra e o Mondego
“A rapariga entra cabisbaixa no comboio. Olhos mareados e um nó na garganta. Ela se senta encolhida no banco e se rodeia com as malas. Acha que, por um instante, pode se tornar invisível. Só acha.Uma senhora portuguesa lhe fita a cara triste. Uma vez. Outra vez. Na seguinte, dispara:– Não pode ficar com essa cara triste uma rapariga tão bonita, ao lado do marido, viajando. Não vale a pena a tristeza.Ela não precisa terminar de falar e as lágrimas escorrem. Ela tinha razão. A rapariga não sabia se chorava de tristeza ou de vergonha.Vendo o resultado de sua tentativa de motivação, a senhora larga de lado suas sacolas de verduras e cruza o corredor do comboio. Quer saber o que está acontecendo, enxugar as lágrimas.Que atrapalhava mais, se a vergonha ou o choro, não se sabe. O fato é que a explicação saia confusa: dois trens perdidos e um terceiro a caminho do mesmo destino.E a senhora tratava de consolar a rapariga dizendo que isso não era motivo para chorar e que tudo se resolveria. E diz que, se o casal não tivesse reserva em Évora, lhe convidaria para comer uns carapauzinhos fritos em sua casa, em Figueira da Foz.A rapariga não disse, mas, em seu coração, a vontade era de refazer os planos e aceitar o convite. Chega a sua estação. Ela desce do trem com o marido e, finalmente, sorri para despedir-se da senhora portuguesa.”

Ai, José, nem você nem ninguém nos deu uma informação importante a respeito de Coimbra: a cidade tem duas estações de trem que se chamam Coimbra. Uma delas tem um B ao lado do nome. Porém, essa letra quase não é mencionada, nem sequer quando se vendem as passagens. Se o sujeito não presta atenção no riscado, lhe passa o que nos passou a nós. Conseguimos perder dois trens e uma conexão no curto espaço de uma hora. Já era o final da estada na cidade que, até então, figurava como candidata a estrela máxima de todo nosso roteiro.

Primeiro, tivemos muito sol e céu azul, coisa que faz muita diferença em uma cidade tão acidentada. Quando a subida cansava, a gente olhava a paisagem de cima a baixo e se deslumbrava com o que via, com o Mondego espelhando a vegetação e o casario à sua volta.



Pátio da Universidade de Coimbra

Do pátio da Universidade de Coimbra, tem-se um lindo panorama. Mas, depois de ter feito a visita completa por suas instalações, chegamos à conclusão que devíamos ter seguido teus passos, José, e ficado só com os ambientes públicos, cuja visita é gratuita. A biblioteca foi o que realmente valeu a pena de todo o percurso pago. O mobiliário e as pinturas são muito interessantes e desfrutamos conhecer o curioso meio utilizado para eliminar insetos em seu interior: uma colônia de morcegos que vive ali, dentro, e se refestela com o cardápio farto, disponível durante toda a noite.

E, com todo respeito às túnicas históricas dos estudantes da universidade, suas capas negras esvoaçantes fazem com que os jovens que circulam pelo pátio, oferecendo informações e vendendo o livreto que apresenta o espaço, possam bem ser confundidos com os Batman de Coimbra.

O bilhete para entrar na universidade dá direito também a visitar sua Capela de São Miguel. Estava em reformas. Bem manuelina. Não havia onde descansar os olhos, tanta ornamentação e detalhes havia. Gostamos mais mesmo foi da capelinha de Santo Antônio, que guarda a imagem de Nossa Senhora da Piedade dos Aflitos, e está localizada na subida, pouco antes de chegar ao complexo universitário. Sua discrição, seus belos azulejos e seu silêncio nos pareceram muito mais contemplativos.

Apesar desses comentários, há que se reconhecer que é verdade o que se diz, que a universidade domina a paisagem da cidade. Lá em cima, ela está mais alta até que as torres das catedrais. Sim, no plural, porque Coimbra preserva duas delas, para deleite dos visitantes que podem apreciar a primeira, com sua arquitetura entre o românico e o gótico, bem cuidada, e a nova, neoclássica. Outra vez, desfrutamos de teus conselhos, José, porque a Catedral velha de Coimbra é realmente uma joia para degustar por um bom par de horas. Só seu altar gótico flamejante é impressionante.

Logo em frente à Catedral nova, entramos no Museu Machado de Castro. Ali, nos deparamos com uma novidade em relação a teu relato. O museu andava cheio! Mas os guias mantinham sua ansiedade por mostrar e orientar a visita, como você narrou. Desfrutamos muito a seção de arte medieval, lendo todo o material disponível e aproveitando a disponibilidade da guia dessa seção, sempre atenta para chamar a atenção para algum detalhe especial. Gostei muito das esculturas de São Tomé tocando as chagas de Cristo, de Santiago e São Paulo ladeando-se, e das Virgens do Ó e do Leite, que vimos por todos os lados em Portugal e nos pareceram figuras das mais carismáticas. O Cristo jacente sorrindo está muito interessante, inclusive por todas as figuras que repousam à sua volta, mas discordo de você sobre o Cristo Negro, que me pareceu deveras assustador. Em outra sala, contemplamos os lindos vestígios da Santa Ceia, os Apóstolos de Hodart, que eu incluiria entre as obras mais bonitas que vi em todo o trajeto. Mas, nesse ponto da visita, a ansiedade dos guias já havia se transformado em perseguição.



Os Apóstolos de Hodart

Como dedicamos muito tempo ao medieval e demos uma volta completa pelo criptopórtico romano, chegamos com pouco tempo às seções de pintura, cerâmica, ourivesaria. A cada cinco minutos, vinha um guia dizer que precisávamos apurar o passo porque o museu ia logo fechar. Que um ou dois façam o alerta, é prestação de serviço. Mas chegou um momento em que, em cada sala onde entrávamos, ouvíamos os guias se comunicando por seus rádios sobre nossos passos e, em seguida, alguém vinha nos dizer quanto tempo faltava para a saída. Até que perdi a paciência e disse a um tipo, dos mais insistentes, que estávamos conscientes de nossa opção de dedicar mais tempo ao que nos interessava mais do acervo e passar rapidamente por outras partes, ainda que tudo merecesse atenção.

O Museu Machado de Castro é fantástico e tem mesmo material para ser apreciado durante um dia todo. Compreendo que os guias queiram ajudar o visitante a não perder nada, mas, imagina se seus pares do Louvre adotassem o mesmo princípio: ao descer as escadarias da pirâmide, já começaríamos a ouvir “corra, porque você não vai conseguir ver tudo”. Ninguém vê tudo, saboreia tudo em uma única visita a um museu com tão rico acervo, e a perseguição dos guias acabou nos estressando em Coimbra.

A solução foi, logo à saída, entrar em um bar petitico, em uma das ladeiras, para tomar um vinho do porto com um bolinho de bacalhau. Ali, vimos uma moda interessante. Duas, aliás. A primeira foi uma opção de menu que oferecia esse bar: uma coleção de pequenos copos, cada um com um trago de uma bebida portuguesa: vinho do porto branco e tinto, vinho verde, ginjinha, entre outras especialidades. A outra foi uma solução de reciclagem de calças jeans, usadas como floreiros e penduradas nas janelas. Estão por toda parte e trazem algo de novidade aos varais que se estendem, coloridos, nas fachadas das casas lusitanas.

Outra evolução em relação ao que você viu, José, foram as ruínas de Santa Clara a Velha. Primeiro que, ao contrário do padrão de nossa viagem e da tua descrição, fazia um dia de sol esplendoroso. Não entramos, mas caminhando ao redor do sítio, vimos claramente o belo trabalho de preservação do patrimônio que vem sendo feito ali. Outro contraste importante e gratificante em relação ao que teus olhos viram. É um lugar, realmente, muito bonito.

Outra ofegante subida, outra deslumbrante vista e nos encontramos com Santa Clara a Nova, a salvo das inundações do Mondego que perturbavam o convento velho. Abriga os restos da Rainha Santa Isabel, retratada em imagens por todos os lados.

E, na descida de regresso, reabastecemos energias em outro restaurante caseiro, identificado com uma placa que não dizia mais que “servimos almoço”. E servem bem. Outra refeição copiosa a preço módico.

Coimbra entrou em nosso roteiro porque não encontramos hospedagem em Viseu e foi um desvio de rota que valeu muito a pena. Ficamos cheios de vontade de ficar por ali, alugar um carro e ir para as “cidades de pedra”, passar uma noite mais para prestigiar o fado coimbrão, ou somente andar por suas agradáveis ruas do centro velho. Terminamos a passagem pela cidade apreciando a paisagem à beira do Mondego e fazendo planos para voltar. Quem sabe damos um jeito de reencontrar a senhora do trem e recuperar a oportunidade de saborear os carapauzinhos fritos em sua casa… E, dessa vez, sem choro!

02 de setembro de 2019
Filosofia de botequim

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