A ideia é usar até R$ 3,7 bilhões do orçamento público nas campanhas eleitorais do ano que vem. É o valor que consta no parecer do deputado Cacá Leão, relator da Lei de Diretrizes Orçamentárias no Congresso. “Não acho que é um exagero”, sinalizou o presidente da Câmara, Rodrigo Maia.
“Orçamento público” é uma palavra elegante que significa o seguinte: dinheiro drenado do bolso do contribuinte para o caixa dos partidos políticos. Alguns dirão que não é nada. Se dividirmos pelo número de eleitores, dá R$ 25 por cabeça. O valor é pouco mais de 10% do que gastamos, todos os anos, com o Bolsa Família. Quem se preocupa com isso?
Uma boa sociedade democrática deveria se preocupar. Cada real retirado da conta do cidadão é um pequeno ato de violência. Qualquer despesa aprovada em Brasília deveria ser precedida dessa pergunta: é de fato crucial sacar mais R$ 25 ou R$ 50 do bolso de cada um?
No debate sobre o financiamento público de campanhas, não é apenas o montante do dinheiro público que importa, mas o impacto que ele gera sobre a qualidade da democracia. É melhor continuar despejando (ainda mais) dinheiro público nas eleições ou migrar para um modelo em que os partidos assumam a responsabilidade e busquem o apoio direto dos cidadãos?
Leia mais de Fernando Schüler
Milagre brasileiroQuem detém o monopólio da virtude?
De Viktor Orban a rainha da Inglaterra?
Sejamos claros: não há modelo ideal de financiamento eleitoral. O melhor é ver a questão pelo ângulo inverso: qual o modelo menos imperfeito? Aquele que mais ajuda ou o que mais prejudica, de verdade, a equidade nas eleições?
Acho curioso quando gente boa repete acriticamente a ideia de que o fundão eleitoral gera maior equidade eleitoral. Nas eleições do ano passado, pouco mais de um terço do valor foi drenado para os cofres do MDB, PT e PSDB. Parlamentares com mandato, que em regra controlam as máquinas partidárias, capturaram para si o maior quinhão. É isto que acontecerá no ano que vem, se seguirmos com este modelo. Prefeitos e vereadores com mandato concentrarão os recursos. Eles já dispõem do gabinete, poder de alocar recursos e acesso à mídia. Não é fácil entender de que maneira concentrar ainda mais dinheiro nas suas mãos pode favorecer a equidade nas eleições.
É evidente que o sistema de financiamento individual produzirá desigualdade entre os candidatos. A pergunta é: ela será maior do que a atualmente gerada pelo financiamento estatal? Teremos, como em 2018, um candidato com mais de R$ 50 milhões e outro com menos de R$ 2 milhões, sendo ambos competitivos? A resposta parece evidente, mesmo porque o volume de recursos em jogo será muito menor.
A experiência de 2018 igualmente pôs abaixo o mantra de que “no Brasil, as campanhas são caras”. Cansei de escutar, em debates país afora, que “a democracia custa caro” e que “na Europa é assim que funciona”. São frases deslocadas no tempo. A tecnologia digital vem produzindo uma revolução no mundo eleitoral: ela reduz brutalmente os custos de campanha, por um lado, e por outro cria mecanismos acessíveis a todos para mobilização de recursos.
Haverá menos dinheiro, de qualquer modo, nas campanhas? Sem dúvida. Menos estrutura, menos sofisticação, menos cabos eleitorais. Mais trabalho voluntário e contato direto com os eleitores. Ruim para a democracia? Não creio. O importante, em uma eleição, não é ter mais recursos, mas regras iguais para todos.
Alguns dirão que é mais difícil. De fato. Fácil é aprovar R$ 3,7 bilhões no Congresso e distribuir. Não precisa nem fazer lobby e não parece haver muita gente de fato preocupada com o assunto.
+ Maílson da Nóbrega: FGTS: liberação é positiva, mas apenas um paliativo
De minha parte, me preocupo. Não passa de cinismo usar o argumento dos mais fracos para justificar uma montanha de dinheiro público para nossa elite partidária. É um pouco como a retórica que escutamos no debate da reforma da Previdência, em que a defesa da “igualdade”, ao final do dia, resultou em um pacote de aposentadorias especiais para as corporações de sempre.
Confesso não ter lá muita esperança, mas quem sabe o país possa dar um pequeno grande passo para reaproximar o mundo político do bom senso, evitando que o vasto mar de distorções eleitorais a que assistimos em 2018 se repita, melancolicamente, nas eleições do ano que vem.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 18/07/2019
“Orçamento público” é uma palavra elegante que significa o seguinte: dinheiro drenado do bolso do contribuinte para o caixa dos partidos políticos. Alguns dirão que não é nada. Se dividirmos pelo número de eleitores, dá R$ 25 por cabeça. O valor é pouco mais de 10% do que gastamos, todos os anos, com o Bolsa Família. Quem se preocupa com isso?
Uma boa sociedade democrática deveria se preocupar. Cada real retirado da conta do cidadão é um pequeno ato de violência. Qualquer despesa aprovada em Brasília deveria ser precedida dessa pergunta: é de fato crucial sacar mais R$ 25 ou R$ 50 do bolso de cada um?
No debate sobre o financiamento público de campanhas, não é apenas o montante do dinheiro público que importa, mas o impacto que ele gera sobre a qualidade da democracia. É melhor continuar despejando (ainda mais) dinheiro público nas eleições ou migrar para um modelo em que os partidos assumam a responsabilidade e busquem o apoio direto dos cidadãos?
Leia mais de Fernando Schüler
Milagre brasileiroQuem detém o monopólio da virtude?
De Viktor Orban a rainha da Inglaterra?
Sejamos claros: não há modelo ideal de financiamento eleitoral. O melhor é ver a questão pelo ângulo inverso: qual o modelo menos imperfeito? Aquele que mais ajuda ou o que mais prejudica, de verdade, a equidade nas eleições?
Acho curioso quando gente boa repete acriticamente a ideia de que o fundão eleitoral gera maior equidade eleitoral. Nas eleições do ano passado, pouco mais de um terço do valor foi drenado para os cofres do MDB, PT e PSDB. Parlamentares com mandato, que em regra controlam as máquinas partidárias, capturaram para si o maior quinhão. É isto que acontecerá no ano que vem, se seguirmos com este modelo. Prefeitos e vereadores com mandato concentrarão os recursos. Eles já dispõem do gabinete, poder de alocar recursos e acesso à mídia. Não é fácil entender de que maneira concentrar ainda mais dinheiro nas suas mãos pode favorecer a equidade nas eleições.
É evidente que o sistema de financiamento individual produzirá desigualdade entre os candidatos. A pergunta é: ela será maior do que a atualmente gerada pelo financiamento estatal? Teremos, como em 2018, um candidato com mais de R$ 50 milhões e outro com menos de R$ 2 milhões, sendo ambos competitivos? A resposta parece evidente, mesmo porque o volume de recursos em jogo será muito menor.
A experiência de 2018 igualmente pôs abaixo o mantra de que “no Brasil, as campanhas são caras”. Cansei de escutar, em debates país afora, que “a democracia custa caro” e que “na Europa é assim que funciona”. São frases deslocadas no tempo. A tecnologia digital vem produzindo uma revolução no mundo eleitoral: ela reduz brutalmente os custos de campanha, por um lado, e por outro cria mecanismos acessíveis a todos para mobilização de recursos.
Haverá menos dinheiro, de qualquer modo, nas campanhas? Sem dúvida. Menos estrutura, menos sofisticação, menos cabos eleitorais. Mais trabalho voluntário e contato direto com os eleitores. Ruim para a democracia? Não creio. O importante, em uma eleição, não é ter mais recursos, mas regras iguais para todos.
Alguns dirão que é mais difícil. De fato. Fácil é aprovar R$ 3,7 bilhões no Congresso e distribuir. Não precisa nem fazer lobby e não parece haver muita gente de fato preocupada com o assunto.
+ Maílson da Nóbrega: FGTS: liberação é positiva, mas apenas um paliativo
De minha parte, me preocupo. Não passa de cinismo usar o argumento dos mais fracos para justificar uma montanha de dinheiro público para nossa elite partidária. É um pouco como a retórica que escutamos no debate da reforma da Previdência, em que a defesa da “igualdade”, ao final do dia, resultou em um pacote de aposentadorias especiais para as corporações de sempre.
Confesso não ter lá muita esperança, mas quem sabe o país possa dar um pequeno grande passo para reaproximar o mundo político do bom senso, evitando que o vasto mar de distorções eleitorais a que assistimos em 2018 se repita, melancolicamente, nas eleições do ano que vem.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 18/07/2019
Fernando Luís Schuler
Professor em tempo integral no Insper, curador do Projeto Fronteiras do Pensamento, articulista, consultor de empresas e organizações civis nas áreas de cultura, ciências políticas, gestão e terceiro setor. Doutor em filosofia e mestre em ciências políticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Foi secretário de estado da Justiça e do Desenvolvimento Social do Rio Grande do Sul. Foi diretor do Ibmec, no Rio de Janeiro.
Professor em tempo integral no Insper, curador do Projeto Fronteiras do Pensamento, articulista, consultor de empresas e organizações civis nas áreas de cultura, ciências políticas, gestão e terceiro setor. Doutor em filosofia e mestre em ciências políticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Foi secretário de estado da Justiça e do Desenvolvimento Social do Rio Grande do Sul. Foi diretor do Ibmec, no Rio de Janeiro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário