O tema caminhoneiros se impõe. Já me pronunciei no calor da hora, em pequenos comentários no Facebook. Desde o início, reconheci minha ignorância sobre uma categoria de trabalhadores da qual só me aproximei no velho seriado Carga pesada. Li, chocado, a avalanche de juízos definitivos propagados pelas redes sociais por especialistas instantâneos. Fugindo das respostas ligeiras e das avaliações precipitadas, pretendo apenas levantar questões que permanecem abertas.
Começo pelos caminhoneiros. Surgiram dúvidas legítimas sobre o caráter do movimento, que se espalhou em velocidade inédita. Num setor em que 55% dos caminhões pertencem a empresas de porte variado, qual teria sido a influência patronal na paralisação? Não é um pormenor. Aqui no Rio, conhecemos muito bem como funcionam as greves dos ônibus. Quando a máfia do transporte urbano quer aumentar a arrecadação, escala motoristas e cobradores para pressionar o governo e conseguir o aumento das passagens. O lucro dos empresários é muito maior do que os reajustes salariais.
OUTROS INTERESSES – Com uma categoria heterogênea, sem lideranças claras e comando unificado, é preciso cuidado na hora de declarar solidariedade. Demandas justas, como a redução no preço do diesel, podem encobrir interesses dos donos de frotas.
O direito de greve é uma conquista histórica dos trabalhadores. Nele não se mexe. No entanto, sempre houve, dentro do movimento sindical, um debate relevante sobre o limite de paralisações em setores que afetam gravemente a vida cotidiana. Não me refiro a pequenos e passageiros transtornos, mas a questões de vida e morte. Esticar demais a corda pode transformar uma greve com apoio popular no início num pesadelo que prejudica a vida de outros trabalhadores. As consequências são econômicas e políticas.
BLOQUEIOS ERRADOS – No caso dos caminhoneiros, vi, com tristeza e apreensão, o bloqueio de produtos químicos para tratamento d’água e de material hospitalar (com cancelamento de cirurgias e iminente paralisação de sessões de diálise; posso imaginar a angústia dos pacientes). Alimento deixou de ser entregue em creches e escolas públicas. Sem merenda, elas fecharam, transtornando a rotina de milhares de trabalhadores. Nos últimos dias, ouvi gente irritada pedindo intervenção militar “para acabar com a bagunça”. Coisa que setores do movimento caminhoneiro também fizeram. Isso, analiso mais adiante.
Temer e sua trupe demonstraram ser negociadores desastrados. No final, o atendimento de todas as demandas do movimento abrirá um buraco no orçamento nacional estimado em R$ 10 bilhões. De onde sairá esta dinheirama, se o governo gasta mais do que arrecada (mesmo descontada a despesa com pagamento de juros da dívida pública)? Hoje, o ministro da Fazenda já deu a senha: falou em aumento de impostos.
OUTRO CAPÍTULO – A Petrobras é um capítulo à parte. A política de preços de uma companhia petrolífera não é matéria trivial. Muito menos apenas técnica. Acho que merece um debate com muita informação, de um lado, e mobilização, de outro. Em nenhum momento da história da estatal ela dialogou sobre isso com o povo. No mínimo para qualificar as eventuais críticas. Talvez porque nunca tenha sido uma empresa verdadeiramente pública.
A greve convocada pelos petroleiros para quarta-feira talvez seja um tiro no pé, com timing duvidoso. A população começa a ver uma saída para o desabastecimento, que pode demorar dias, e já se assusta com outra paralisação.
Lideranças petroleiras afirmam que será a maior da história da categoria. Provavelmente bravata, o movimento sindical brasileiro foi desidratado na era petista, quando a conciliação de classe mascarou os conflitos. Temo que, neste momento, o resultado seja levar mais água para o moinho da direita.
CORRUPÇÃO – Ainda sobre a estatal do petróleo, é bom lembrar que a companhia quase foi demolida pela associação tóxica de compadrio, corrupção e aparelhamento. A prática de preços artificialmente baixos trouxe enormes prejuízos a ela e garantiu as margens de lucro das empresas de transporte rodoviário.
Em 2015, a Petros, fundo de pensão da Petrobras, revelou um prejuízo monumental e são os funcionários, inclusive os aposentados, que estão pagando a festa. Os culpados pelo rombo não foram identificados. Não dá para debater a sério os problemas atuais sem levar em conta estes fatos, sob pena de se cair numa ilusão nostálgica.
Em determinado momento da paralisação, uma enorme faixa apareceu na frente da REDUC, defendendo uma intervenção militar. Outras apareceram em várias rodovias. Seria leviano afirmar que esta é a posição dos caminhoneiros. No entanto, é o indício de um estado de espírito que se espalha, nutrindo a extrema-direita.
Posso entender que a paralisação caminhoneira poderia ter um efeito demonstração, a inspirar outros setores. Sem, entretanto, politizar este espelho, sem articular plataformas comuns com os setores organizados, certas paralisações não passariam de ações oportunistas. Estrategicamente ocas e politicamente explosivas.
CAMPANHA ELEITORAL – A gente está às vésperas do início de uma campanha eleitoral decisiva. A centro-direita parece a mariposa do Adoniran Barbosa (As mariposa quando chega o frio/Fica dando vorta em vorta da lâmpida pra si isquentá), procurando uma “lâmpida” pra se esquentar. A esquerda não tem plataforma de unidade para o evidente cenário sem Lula. Aliás, iludir não é novidade para uma parte do nosso campo.
Lembram o que o Stédile, a quem respeito como liderança do movimento social mais organizado do país, disse no comício de Porto Alegre, um dia antes do julgamento do Lula no TRF-4 ? “E aqui vai o recado para a dona Polícia Federal e para a Justiça: não pensem que vocês mandam no país. Nós, dos movimentos populares, não aceitaremos de forma nenhuma que o nosso companheiro Lula seja preso”.
Bem, todos sabem o que aconteceu. A extrema-direita está comendo pelas beiradas, coagulando as insatisfações e multiplicando nas redes sociais os discursos da ordem e do ódio. Ninguém sabe aonde pode chegar. Nesta conjuntura movediça, qualquer passo mal dado pode ter consequências devastadoras.
30 de maio de 2018
Jacques Gruman
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