Com o título “O político que multiplicava”, O Globo publica nesta sexta-feira, 27.01.2017, artigo-depoimento de José Casado a respeito do ex-governador Sérgio Cabral e que a Tribuna da Internet reproduziu na íntegra.
Casado relembra Cabral naquela quinta-feira, 7 de outubro de 2010, quatro dias depois da reeleição no primeiro turno com 66,08% dos votos. Estimulado pelo artigo de Casado, também dou meu depoimento a respeito de Sérgio Cabral Filho.
Começo reiterando que odeio o pecado, não o pecador. Sou assim. Desde que me fiz advogado e comecei a advogar em 1971, nunca aceitei a imposição do Código Civil que obrigava abertura de inventário nos trinta dias seguintes à morte do inventariado.
Era uma tremenda maldade obrigar os familiares do falecido – ainda em pleno luto, em prantos e lágrimas – a contratar advogado e ir tratar dos papéis na Justiça.
Também nunca aceitei que processos, judiciais e extrajudiciais, em que figurasse como parte pessoa com idade igual ou superior a sessenta anos não tivessem um tratamento priorizado. Mas como poderia mudar isso, sem alterar as leis e sem ser parlamentar?
AUDIÊNCIA NA ALERJ – Foi quando me lembrei de Sérgio Cabral, então presidente da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). E um dia de manhã, mesmo sem conhecê-lo pessoalmente, fui lá, na Alerj. Me apresentei e logo, logo, Sérgio me recebeu: “Doutor Jorge Béja, é uma honra receber sua visita. Em que posso ajudar?“.
“A honra é minha, deputado. Nada vim pedir. Apenas sugerir”, foi minha resposta. E falei das duas leis que eram da minha iniciativa e que eu mesmo poderia redigir. Ele achou “espetacular” e pediu que eu preparasse tudo para “ontem”. Mas em dado momento, olhou para mim fechou o semblante e disse:
“Dr. Béja, esta lei que aumenta de 30 para 90 dias o prazo para abrir inventário sem pagar multa é ótima, mas, infelizmente, não posso levá-la à votação, por se tratar de matéria federal“.
“Não, deputado. A matéria é também estadual. Isto porque o credor da multa é o Estado. Ora, se o Estado pode, por lei, até dispensar e acabar com a multa, pode também aumentar o prazo para a sua não-incidência”, foi a minha resposta.
INICIATIVAS GENIAIS – Ao ouvir a resposta, Sérgio Cabral deu um pulo na cadeira. Fez os mais rasgados elogios a mim e tornou a pedir que as duas leis fossem logo redigidas.
E me fez um pedido: que mantivesse tudo em sigilo “para que alguém não se aproprie destas iniciativas geniais”, disse. Nos despedimos e voltei para o escritório.
Dois dias depois, as duas leis estavam prontas e redigidas. Cada uma com apenas dois artigos. Leis pequenas, mas de grande efeito social, como se constatou depois. Então, liguei para o deputado e marcamos um almoço para eu lhe entregar as duas leis. Escolhi o restaurante e lhe entreguei os dois projetos.
Para minha surpresa, vinte dias depois as leis estavam aprovadas. Quanto ao prazo da multa para inventário não aberto em 30 dias, os deputados aumentaram o prazo para 60 dias. Só nessa parte a lei foi alterada. E no tocante à prioridade dos processos dos idosos, a lei foi aprovada por inteiro e anos mais tarde a incorporaram ao Código de Processo Civil de 1973.
Dizem que foi o então deputado federal Milton Temer que levou a lei do Rio para Brasília e a tornou federal, passando a valer para todos os Estados. Ou seja, para o Brasil inteiro.
O ALMOÇO – Escolhi para almoçar com o presidente da Assembleia o restaurante XIV Bis, no aeroporto Santos Dumont. O ambiente, a higiene, o tratamento, a qualidade da comida e o piano de meia cauda Fritz Dobbert, que ficava aberto pertinho das mesas, o qual eu tocava sempre que ia – tudo isso me levou a preferir o XIV Bis para tudo, desde almoço sozinho, com convidados ou em celebrações do 23 de abril, Dia de São Jorge.
O pianista da casa, o craquíssimo Carlinhos, era completo. Pouco enxergava. Quase, quase cego. Mas tocava tudo, do popular ao clássico. E Carlinhos e os donos do XIV Bis sempre me pediam, quando chegava: “Não vai dar um canja hoje”? É claro que dava e agradecia. Muitas vezes chegava a uma da tarde para almoçar e só ia embora às sete, oito ou nove da noite. Raramente usava bebida alcoólica. E quando tomava uísque, não tocava. Não dá certo. Imaginem tocar Mozart, Chopin…de pileque, vendo dois teclados…
Sérgio Cabral e eu chegamos quase juntos. Ele só. Eu também. Sentamos. Lemos juntos os projetos das duas leis e ouvi dele mais de uma vez a exaltação: Maravilhoso!”. Almoçamos. E só depois, terminado o almoço, é que disse a ele: agora vou me levantar, vou até o piano e ouça; acho que você vai gostar. E toquei, delicadamente, suavemente e sobriamente (no almoço só bebemos água mineral), o “Sonho de Amor” (Rêve D’amour) de Liszt e “Devaneio” (Rêverie) de Schumann.
CABRAL CHOROU – Quando voltei à mesa, pertinho do piano, o deputado chorava. Até soluçava. Alguns frequentadores repararam. Mas se contiveram.
“Por que chora, perguntei”?
“Não conhecia esse seu outro lado… O senhor toca divinamente”, e explicou: “Estou passando um momento difícil na minha vida. Estou amando outra mulher”.
Bom, ao ouvir esse desabafo, me contive. Fiquei calado. Não tinha – nem nunca tive – a menor intimidade com Sérgio Cabral para ficar perguntando a respeito de tão delicada e perigosa situação. Depois, nos levantamos e deixamos o XIV Bis. Descemos os 19 degraus da escada que leva ao saguão do aeroporto, entramos no carro oficial e partimos. Ele ficou na Alerj e pediu ao motorista para me levar até a Rua Acre, onde fica meu escritório.
OUTRO ENCONTRO – Depois disso, Cabral foi senador, e duas vezes governador. E só me encontrei com ele, casualmente, na TV Educativa. Já governador, ele deixava o programa “Sem Censura”, do qual participou e me encontrou na entrada da emissora, pois eu ia participar no programa seguinte. Quando me viu, deu um forte abraço. Entregou um cartão com o seu e-mail privativo, convidou-me para dirigir o Procon (convite que nunca respondi). E nunca mais nos vimos. Vez ou outra nos comunicamos por mensagens e-mail, três delas marcantes.
Sempre tratei Sérgio Cabral de você. E ele sempre me chamou, ora de “Dr. Béja”, ora de “Mestre Dr. Béja”.
COMPLEXO DO ALEMÃO – Quando ocorreu a tomada do Alemão, o Globo publicou no dia seguinte uma grande foto na capa de um “caveirão” da PM e montados na viatura apareciam 12 crianças sorrindo. Na mensagem que enviei “O Retrato 12X12 de Sérgio Cabral”, o parabenizei. E descrevi que imaginei na foto cada criança segurando cada letra do nome Sérgio Cabral. Tratei-o de “Herói e Bem-Aventurado”. Herói, porque enfrentou e venceu os criminosos. Bem-Aventurado numa alusão ao Sermão da Montanha (“bem-aventurados os pacificadores, porque deles é o reino dos céus”).
Sérgio Cabral recebeu a mensagem e a encaminhou a todo o seu secretariado, amigos e parentes, com cópia para mim. Na tela apareceram encaminhamento para mais de 50 endereços e-mails. E uma das respostas dos destinatários que marcaram veio do pai, Sérgio Cabral: “Querido filho, uma mensagem como esta, partindo de quem partiu, vale mais do que uma eleição. Beijos do seu pai”.
APELO AO GOVERNADOR – Em outra ocasião, a viúva de um meu ex-professor de desenho agonizava há dez dias no Hospital Estadual Azevedo Lima (HEAL), no Fonseca, em Niterói. Tinha mais de 90 de idade. Fêmur fraturado e precisava operar imediatamente para não morrer. Um ex-aluno, médico, foi até lá e constatou a gravidade. Fui avisado pela filha. Então mandei mensagem ao governador, e dona Josélia foi operada em 24 horas.
Cabral repassou o texto do meu e-mail para o diretor do HEAL e pediu providência imediata “sem retardo”, escreveu. Operada e curada, dona Josélia deixou o hospital andando e foi para sua casa.
Vejo agora que para conseguir que o bebê Gabriel fosse operado imediatamente para não ficar definitivamente cego por causa de um “glaucoma congênito” nos dois olhos, eu tive que pegar pesado com o prefeito Crivella, com sua chefe de gabinete, Margarett Cabral e com seu assessor de imprensa. Mandei-lhes, primeiro, pedidos de socorro. Sem resposta e sem socorro, mandei então textos duros, por e-mail e pela Tribuna da Internet, como aconteceu semana retrasada. Só assim conseguimos.
QUEM ERA CABRAL – “Ele foi uma criança doce e meiga. Éramos vizinhos e amigos no Engenho Novo, onde Sérgio nasceu. Eu estava no ginásio e depois no científico e acompanhei de perto o crescimento do Sérgio. Já adolescente, era estudioso, prestativo e se dava com todo o mundo. Depois, entrei para a faculdade de Medicina e mudei de lá. De vez em quando Magaly e eu nos falávamos“, me confidenciou em 2010 ou 2011 a dermatologista Dra. Ludmilla, cujo sobrenome não recordo.
Desde que nos relacionamos, toda vez que eu lia o nome em Sérgio Cabral em situação difícil nos jornais, eu cobrava dele. Que me respondia pelo e-mail, dizendo que estava fora disso e que eu me despreocupasse. Me despreocupei mesmo. Até que veio essa avalanche de acusações contra ele.
São três ordens de prisão. Onde anda sua defesa? Ou a situação é indefensável? Quando Cabral foi preso, sem prévio processo, sem ter sido ouvido, sem estar ao menos indiciado, me revoltei. Por conta própria dei entrada num Habeas-Corpus que foi negado. O desembargador entendeu que meus fundamentos eram “abstratos”. Mas não eram. Naquela ocasião eu só indaguei para que servia a prisão, se o ex-governador tem residência fixa, de todos conhecida, não tem antecedente penal, nunca foi processado e menos ainda condenado por um juiz singular ou por um tribunal.
UMA TRISTE ESCOLHA – Hoje, 27 de janeiro de 2017, é o dia do aniversário dele. Completa 54 anos e está preso. Aliás, três vezes preso, porque a Justiça expediu três ordens de prisão preventiva. Se estivesse com ele, eu lhe diria:
“Se tudo – e nem precisa ser tudo – que a Polícia Federal, a Receita Federal, a Procuradoria da República e os juízes doutores Bretas e Moro acusam você for mesmo verdade, é duro constatar que a vida, o destino, a sorte, a predestinação deu ao seu livre arbítrio dois caminhos a seguir: um, o de chegar à presidência do Brasil; outro, o de ir para o cárcere e nele acabar com sua vida. Creio que você escolheu este último”.
28 de janeiro de 2017
Jorge Béja
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