"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

domingo, 29 de maio de 2016

VALENTINA DE BOTAS: A NECESSIDADE DE PROTEGERMOS NOSSAS VIDAS DA MALDADE QUE AMEAÇA TUDO O QUE AMAMOS

Estupro, essa coisa anti e pré-civilizatória, não é de esquerda nem de direita; estupro não se presta nem a metáforas; estupro sequer é sexo: ESTUPRO É CRIME!


Meu irmão é o caçula e eu, a mais velha de cinco filhos: 14 anos de diferença entre nós dois. Papai, alagoano rígido de amor pedregoso e pedagógico, morto precocemente em 2013, não gostava de futebol. Então coube a mim, convertida ao esporte quando o melhor time do mundo ganhou o campeonato paulista depois de 23 anos, fazer do meu irmão um corintiano. Quando digo “fazer”, releve-se o exagero retórico da compreensível ascensão que os irmãos mais velhos pensam ter sobre os mais novos, e que eu, a bem da verdade, jamais pretendi.

Ao contrário, sempre lhes disse que não me seguissem, pois eu também estava meio perdida de mim mesma, ainda que me deparasse comigo vez ou outra num sobressalto sempre renovado: é curioso como, sem estranhá-la, ainda não me acostumei a esta mulher no espelho; como ainda só consigo tocar a existência das coisas e das pessoas e por ela ser tocada quando venço a presença tirânica desta eu em mim. 

Meu irmão acabou se metendo com bandidos das torcidas organizadas e com drogas. 
Aos 15 anos, era dependente delas, o que nos distanciou; e a paixão pelo time deixou de ser um caminho, no meio do qual costumávamos nos encontrar, para ser um constrangimento.

Quando teve alta do hospital onde se tratara de uma pneumonia decorrente do uso daquelas porcarias, não voltou para a casa dos nossos pais: o alagoano intransigente, entristecendo de morte o resto da família, e especialmente mamãe, não queria um “vagabundo aqui”. 

O garoto de 1,80 m, frágil em tudo com 55 kg e 17 anos de idade, veio morar comigo. 
Mamãe vinha nos visitar sempre e meu irmão perguntava do pai que batia o telefone quando o filho ligava: teu pai tem esse jeito, filho, mas guarde mágoa dele não, isso passa. Convalescente, sem trabalhar nem estudar, meu irmão começou a ver os filmes que eu tinha em casa como Casablanca, Meu Ódio Será Tua Herança, Bye Bye Brasil. Tudo do Monty Python, muita coisa do Hitchcock; outros clássicos e os ditos alternativos.

O arrebatamento dele quando assistiu a 2001 – Uma Odisseia… me deu a certeza de que aquilo poderia ser um caminho para reencontrá-lo, para nos reconhecermos. Então veio o contragolpe: também ele queria me mostrar os filmes “da hora” de que gostava. 

Meu suplício começou com a série “Máquina Mortífera”, culminou com o Jason e a serra elétrica (que é uma motosserra, explicação inútil e inoportuna), amenizou-se com umas bobagens do Eddie Murphy… 
Tudo horrível, mas nem me importei, pois estava ali pelo encontro, por nós, numa sensação boa e cálida de estar à mercê do amor fraternal em que nos redescobríamos. 
Então, vimos diretores de que ambos gostamos, como Clint Eastwood, cujo filme “O Estranho que Nós Amávamos” me lembra “A Casa de Bernarda Alba” do Lorca.

Obtivemos ajuda, meu irmão se tratou, criou juízo, ele e papai reataram mesmo com reservas incontornáveis e nossas pequenas vidas conseguiram se refazer naquele final começo dos anos 2000, quando já éramos uma nação em que criminalidade, violência e impunidade se somavam num cotidiano selvagem. 


16 anos depois, com o tráfico de drogas e armas fazendo a festa nas nossas fronteiras esburacadas, a marca de 60 mil assassinatos anuais e o inepto e indiferente regime lulopetista, que ignorou também essas desgraças, insensível ao fato de que elas devastam famílias e oprimem os brasileiros invisíveis na trama de poder perene do PT, o país perde dinheiro de várias formas enquanto se distancia da preciosa noção do valor da vida, configurado não só na preservação dela, mas também no direito de viver sem a ameaça cotidiana de agressões em quaisquer hora e lugar.

No Brasil sob o esgarçamento de princípios civilizatórios, como a proteção aos mais vulneráveis, o estupro da menina do Rio é banalizado como pretexto degradante para palanque e para a histeria contra a simples cantada. 

A peça de Lorca escrita ainda na guerra civil espanhola, para muitos, é uma alegoria da Espanha oprimida por Franco; para outros, da opressão contra a mulher representada na tirânica Bernarda Alba, a matriarca viúva que zelava pela reputação das filhas confinadas à casa e, consequentemente, da família numa Espanha de moral brutalmente opressora.

O confinamento e a repressão total levam à tragédia que, para a criada simplória, Poncia, explica-se pelo fato de que aquelas “son mujeres sin hombre”. 

Na minha visão pessoal – com a qual ninguém precisa concordar, nem dela discordar, pois nem tudo é questão de ser contra ou a favor, mas de reflexão –, “hombre”, no texto, passa a ser o outro/o diferente, pois era esse o elemento interditado na casa e cuja existência só era concebida como ameaça e, assim, estava dada a licença para atacá-lo; e o fato de o poder ser exercido de forma patologicamente tirânica por uma mulher sugere que tirania/violência não tem lado, gênero, ideologia, cor, credo e o que mais for.

Paulo Ghirardelli (professor universitário, espécie de educador esquerdista) disse que Rachel Sheherazade deveria ser “estuprada urgente”; Bolsonaro (dispensa apresentações) disse que Maria do Rosário não “merecia” que ele a estuprasse; Paulo Maluf (o do “rouba, mas faz”) disse “estupra, mas não mata”; Paulo Nogueira (jornalistazinho da esgotosfera) acha que o impeachment de Dilma Roussef é um estupro coletivo. 


Todos eles e demais militantes da cretinice precisam saber que estupro, essa coisa anti e pré-civilizatória, não é de esquerda nem de direita; estupro não se presta nem a metáforas; estupro sequer é sexo: ESTUPRO É CRIME! 
E é dispensável ser mulher, ter filhas ou mãe para repudiá-lo e jamais justificá-lo. Basta ser decente. 
E, por favor, pessoas das redes sociais, parem de fazer poesia ruim com o CRIME insuportável contra a menina do Rio.

Há três dias, meu irmão reuniu a família e amigos para comemorar o aniversário e uma promoção muito importante no trabalho; lembrou-se de papai a quem fez um brinde especial. 

Em minutos eu lhe contaria o que papai me fizera jurar somente dizer depois da morte dele: enquanto meu irmão morou comigo, papai me ligava todos os dias para ter notícias, ajudava com o dinheiro que podia e, tendo em mim uma informante dos horários do rapaz, via escondido o filho a quem se impôs amar de longe na tentativa de o fazer despertar para a necessidade de protegermos nossas pequenas vidas da grande maldade que ameaça tudo o que amamos.


29 de maio de 2016
in Augusto Nunes, Veja

Nenhum comentário:

Postar um comentário