"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

OS 43 QUE FALTAM


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Como um grupo de estudantes desapareceu num estado dominado pelo tráfico
por Carol Pires
 

No dia em que 43 de seus companheiros desapareceriam, Uriel Alonso Solís ia até a porta do ônibus e voltava. Estava hesitante. Naquela sexta-feira amena, os calouros da Escola Normal Rural Raúl Isidro Burgos, do povoado de Ayotzinapa, no estado mexicano de Guerrero, iriam a uma cidade vizinha, Iguala, fazer boteo – as ações em que arrecadam dinheiro para manter as atividades da escola.“Eu me sentia culpado por eles. No meu povoado, vários pais chegaram a me apontar na rua porque eu tinha incentivado seus filhos a ir”, disse-me Alonso, ao relembrar os pormenores daquela noite de 26 de setembro de 2014, nove semanas antes.
De pele avermelhada, olhos astecas, maçãs do rosto pronunciadas e cabelos fartos, Alonso, como a maioria dos estudantes de Ayotzinapa, descende de camponeses indígenas. Ele parece mais sério que seus colegas normalistas. Enquanto os garotos abrem um sorrisão tanto quando acham graça como quando se envergonham, seu semblante é quase sempre fechado. As sobrancelhas graúdas também emprestam certa gravidade a seus 19 anos. Mas, ao contrário de outros veteranos que pegavam no pé dos mais novos, Alonso tornara-se amigo de vários calouros. Decidiu entrar no ônibus. E por que não?
Os dois veículos da empresa Estrella de Oro haviam sido confiscados dias antes pelos estudantes; para economizar a passagem, eles costumam usar os ônibus e depois os devolvem às empresas. Saíram de Ayotzinapa às seis da tarde, transportando cerca de cem alunos, todos homens, quase todos do 1º ano da Escola Normal. Uriel Alonso e outros quatro eram do 2º ano. Apenas um estudante do 3º seguiu com eles.
Os ônibus partiram em direção a Chilpancingo, capital do estado, à qual se chega por uma estrada estreita que serpenteia uma mata fechada e verde, salpicada aqui e ali de flores brancas das ipomeias, no México denominadas cazahuates. De lá, pegariam a rodovia em direção a Iguala, uma cidade histórica de pouco mais de 100 mil habitantes, a terceira maior de Guerrero.
Os rapazes tinham se conhecido cerca de dois meses antes. Muitos haviam saído pela primeira vez dos povoados rurais onde nasceram e, desde o início das aulas, em 22 de julho, passaram a conviver em regime de internato na escola – “a esperança de um lar”, como diz seu hino –, experimentando um cotidiano inédito de companheirismo.
Uriel Alonso viajava sério. Na véspera, os normalistas haviam feito boteo nas ruas de Chilpancingo – eles costumam parar o trânsito e pedir dinheiro aos motoristas –, e a polícia debelara a atividade. Alonso pressentia que os policiais de Iguala também pudessem reprimi-los. Dentro do ônibus, os amigos tanto insistiram que Alonso se rendeu às brincadeiras e acabou, ele também, abrindo um sorriso. Foram cantando e tirando sarro uns dos outros. Tinham energia, alegria, 17, 18, 19 anos.
Às seis da tarde, quando os jovens deixavam Ayotzinapa, a primeira-dama de Iguala, María de los Ángeles Pineda Villa, apresentava seu segundo balanço à frente do Sistema Municipal para o Desenvolvimento Integral da Família. María de los Ángeles é – e praticamente todos sabiam – filha e irmã de narcotraficantes do cartel Guerreros Unidos. Tinha planos maiores: queria ser prefeita de Iguala em 2015.
Os Guerreros Unidos são uma facção do cartel dos Beltrán, cujo chefe foi morto às vésperas do Natal de 2009, fuzilado por agentes da Marinha. Desde a morte do capo, duas facções do mesmo grupo brigam entre si: Guerreros Unidos e Los Rojos. As duas disputam o poder local com outro cartel, a Família Michoacana.
Casos assim se espalham pelo México e outros países latino-americanos. Se antes figuras como Pablo Escobar e “Chapo” Guzmán comandavam o tráfico com o poder de empresários multinacionais, hoje os grupos criminosos estão pulverizados. Sem capacidade de atuação hegemônica, sobrevivem do narcotráfico em menor escala, deextorsões, sequestros e formação de milícias.
 Por quase todo o país, esses cartéis e milícias vivem em simbiose com a polícia e a política. Em Iguala, eram a mesma pessoa.
 
No final de novembro, numa manhã de sábado quente e seca, cheguei à Escola Normal Rural Raúl Isidro Burgos em uma das urvans– vans piratas – que ligam a capital estadual Chilpancingo a Tixtla, município ao qual pertence o povoado de Ayotzinapa (“rio de tartarugas”, em língua náhuatl). Na urvantambém viajava um casal de idosos.
Descemos os três na parada que dá acesso à escola. Saindo da estrada, uma escada conduz aos fundos de um conjunto de casas – uma principal, de pedra, e outras menores, de alvenaria pintada de vermelho e branco – construído numa antiga fazenda. Madalena, 65 anos, acompanhava o marido, Roberto Callo, de 72. Callo atendia a uma convocação para uma reunião de ex-alunos feita naquela manhã pela rádio da escola.
As escolas normais surgiram na França, em 1794, inspiradas no modelo alemão de preparação de professores de ensino primário. No México, ganharam força com a Revolução de 1910, quando o país era fundamentalmente rural. À medida que o pri, Partido Revolucionário Institucional, tornou-se um poder cada vez mais institucionalizado e menos revolucionário, perpetuando-se na Presidência por 71 anos ininterruptos, essas escolas – de caráter contestatório, marxista – foram sendo paulatinamente fechadas.
Das 36 escolas normais rurais que já existiram, hoje restaram apenas 17, a maioria exclusiva para homens, embora haja algumas mistas e femininas. Por serem poucas, são muito unidas. Num outdoor na estrada que contorna Ayotzinapa, os estudantes pintaram a mensagem: “Se o governo continuar reprimindo e fechando escolas normais rurais, o povo terá a última palavra.”
Madalena e Roberto Callo, filhos de camponeses, são do povoado de Tepechicotlán (“povo entre colinas sinuosas”), a três horas dali. Ele sustentou a mulher e os seis filhos com salário de professor primário graças à formação que recebeu em Ayotzinapa, e mais um modesto cultivo de feijão e milho. Os seis filhos do casal têm estudo superior e estão empregados. “Tenho muito orgulho de todos eles”, comentou a mulher.
Callo graduou-se em Ayotzinapa em 1964, um ano depois do estudante mais conhecido da escola, Lucio Cabañas. Naqueles anos, as guerrilhas se espalhavam por países latino-americanos; no México, ficaram concentradas em um único estado, Guerrero. E foi de Ayotzinapa que surgiu o principal líder rebelde da região: Lucio Cabañas, fundador do Partido de los Pobres, que se tornaria uma organização da esquerda armada. A sangrenta ofensiva do Estado contra os guerrilheiros ficou conhecida como “guerra suja”.
Ainda hoje, pequenas células guerrilheiras, como o Ejército Revolucionario del Pueblo Insurgente e o Ejército Popular Revolucionario, ambos de orientação maoista, seguem ativas nas montanhas de Guerrero.
Em 1962, quando Cabañas estudava em Ayotzinapa, 70% da população do estado eram pobres. Cinquenta anos depois, 69,7% continuam na pobreza. O narcotráfico assumiu o vazio deixado pelo governo. “Guerrero era o estado ideal”, escreveu recentemente o historiador mexicano Enrique Krauze no jornal espanhol El País: “Uma geografia acidentada (montanhas intricadas e incomunicáveis), uma cultura ancestral da violência, uma sociedade ressentida pelas sequelas da guerra suja e tão pobre – em alguns locais – como as zonas mais depauperadas da África.” Hoje, 98% da produção mexicana de papoula, matéria-prima da heroína, concentram-se em Guerrero.
Nessa nova realidade, a escola de Ayotzinapa – outrora um viveiro de guerrilheiros de esquerda – está agora mais associada às polícias comunitárias camponesas, conhecidas como autodefensas. Na porta da escola, a segurança é feita por homens desses grupos que não confiam nas polícias oficiais – armados, uniformizados e usando um capuz negro que esconde sua identidade.
Apontando os eucaliptos nas montanhas ao redor, Roberto Callo contou que ele e colegas de classe plantaram aquelas árvores, cinquenta anos atrás. Sobre Lucio Cabañas, morto em 1974 em um enfrentamento com o Exército, comentou: “Ele era humilde, alegre, tocava violão. E era um orador divino. A gente ia a concursos de oratória e ele vencia todos. Não se podia contestar nada do que dizia.”
Como líder estudantil de Ayotzinapa, Cabañas conseguiu, no começo da década de 60, aumentar o subsídio para a alimentação dos normalistas de 3,5 para 6,5 pesos por dia. Hoje, cada estudante recebe do governo estadual 35 pesos diá-rios (6 reais) para as três refeições.
Superados os degraus para alcançar os fundos da escola, Callo, o cabelo branco contrastando com o tom ocre da pele, anel dourado de formatura no dedo médio da mão esquerda, olhou a fachada do local onde morou dos 14 aos 20 anos e começou a chorar. Ali, uma faixa dizia: “Punição para os assassinos dos normalistas.”
 
De Chipancilgo em diante, por duas horas os ônibus com os estudantes percorreram a Carretera Federal 95, uma das melhores e mais bem conservadas estradas do país, ligando a Cidade do México à turística Acapulco, na costa do Pacífico.
Os normalistas chegaram a Iguala por volta das oito horas da noite. No centro da cidade, fizeram o boteosem maiores problemas. O dinheiro coletado tinha um destino: serviria para uma viagem à Cidade do México na quinta-feira seguinte, 2 de outubro, data em que ocorreu o Massacre de Tlatelolco, em 1968. Naquele ano, na esteira dos movimentos estudantis que pipocavam mundo afora, e às vésperas da abertura dos Jogos Olímpicos do México, em torno de 15 mil pessoas tomaram as ruas da capital, portando cravos vermelhos em sinal de protesto contra a repressão policial a um grupo de estudantes dias antes. Ao cair do sol, militares e policiais armados com tanques e blindados abriram fogo contra a multidão. O governo reconhece 40 mortos. Entidades civis falam em 300 vítimas.
Na escola rural de Ayotzinapa, os normalistas não só aprendem pedagogia como recebem formação política. Nos muros e paredes dos alojamentos veem-se pintados os rostos de revolucionários latinos – Che Guevara, subcomandante Marcos, Lucio Cabañas –, além de retratos de Marx e Lênin. Um dos muitos murais mostra um camponês. “Protestar es un derecho”, diz a legenda. Ao lado, a imagem de um policial agredindo um jovem traz a continuação da legenda: “Reprimir es un delito.” Eles queriam ir às celebrações de Tlatelolco para relembrar isso: que o protesto de estudantes era um direito, e a repressão policial, um delito.
Na rodoviária de Iguala, os normalistas confiscaram mais três ônibus, esses da empresa Costa Line. Pretendiam levá-los à escola, para que acomodassem todos aqueles que quisessem ir à Cidade do México, a quatro horas de viagem. Os estudantes seguem a tradição insurgente de Ayotzinapa, mas não são violentos. As empresas de transporte se habituaram à situação e entregam os veículos, sabendo que serão devolvidos.
Os cerca de 100 jovens que haviam viajado em dois ônibus agora se dividiram entre os cinco que constituíam sua frota. Os motoristas das empresas conduziam os veículos. Dois deles tomaram o rumo da Escola Normal pela saída sul da rodoviária; os outros três, pela saída norte. Uriel Alonso ia no último carro desse comboio de três.
Naquele momento, na Plaza de las Tres Garantías, a primeira-dama de Iguala e seu marido comemoravam em um baile a atuação dela como secretária da Família. O prefeito José Luis Abarca tinha uma rixa antiga com os normalistas. Um ano antes, eles haviam pichado a prefeitura, acusando-o de torturar e matar um líder camponês, o engenheiro Arturo Hernández Cardona – crime pelo qual passaria a responder oficialmente apenas depois do desaparecimento dos estudantes.
De acordo com a investigação da Procuradoria-Geral do México, ao tomar conhecimento da presença dos normalistas, o prefeito telefonou para o diretor municipal de Segurança Pública, Felipe Flórez Velázques, que por sua vez ordenou ao chefe de polícia, Francisco Salgado Valladares, que detivesse os jovens.
Na saída norte, os estudantes do último dos três ônibus – onde estava Uriel Alonso – viram pelo retrovisor que duas patrulhas da polícia os seguiam. Os policiais atiravam e um grupo desceu do ônibus em movimento, acreditando serem tiros de advertência. Quando os alunos perceberam que os ataques eram diretos, lançaram contra as viaturas pedras que encontraram na calçada. Alonso não voltou ao terceiro ônibus. Correu e subiu no primeiro deles, para liderar a fuga.
“Para onde vamos?”, perguntou o motorista da empresa Estrella de Oro. “Para Chilpancingo”, respondeu Alonso. Mais à frente, porém, no cruzamento da rua Álvarez com a avenida Periférico Norte, numa via residencial, outra patrulha fechou a passagem do comboio. Alonso voltou a descer do ônibus, junto com outros estudantes. Dessa vez deram de cara com policiais municipais armados com fuzis ar-15, que eles dispararam sem aviso.
 
Um dia antes de encontrar o casal Callo na van pirata que me conduzia à Escola Normal, eu já visitara o local. Fui recebida então por dois alunos, Sergio Bastian Memije, de 21 anos, do 2º ano, e Benito Juarez Saldaña, de 22 anos, do 3º.
A noite de 26 de setembro não havia sido – me contaram os dois – a primeira vez que normalistas daquela escola ficaram frente a frente com os fuzis ar-15 das polícias de Guerrero. Na estrada, pouco antes do ponto de parada das vans e dos ônibus, há uma cruz com as inscrições “Juan Manuel Huikan Huikan” e “12 de outubro 1988”. Ali, entre os eucaliptos, Huikan Huikan caiu morto com um tiro no peito, disparado pela polícia estadual enquanto ele e outros normalistas faziam a guarda da escola.
No pátio próximo à quadra de esportes, há outra homenagem em memória dos normalistas Gabriel Echeverría de Jesús e Jorge Alexis Herrera Pino, também assassinados pela polícia durante uma passeata que os estudantes fizeram pela Autopista del Sol, em 2011, reivindicando que o governador cumprisse os acordos de aumentar os repasses à escola.
Nas três vezes em que o encontrei, Sergio Bastian estava sempre bem-vestido, com roupas esportivas novas – ainda que de marcas falsificadas, como as de outros estudantes –, banho recém-tomado, barba feita e gel no cabelo. No dia em que me recebeu na escola, calçava tênis impecavelmente branco e vestia uma camisa da seleção da Croácia. Ele torce pelo Cruz Azul e admira o Palmeiras. No time da escola, joga como lateral esquerdo. “Quero ser jogador de futebol e político”, brincou.
Bastian é da Casa do Ativista, grupo de estudo de alunos interessados em política. Formar-se pela Escola Normal foi a maneira que encontrou para conseguir um emprego que um dia lhe permita pagar o curso que realmente deseja, de arqueólogo ou historiador.
A Escola Normal de Ayotzinapa – que a cada mês de julho oferece 140 vagas – todo ano costuma ter 500 candidatos, que prestam um exame com 200 perguntas. Os bem-sucedidos passam, então, por uma etapa de provação que consiste em ficar uma semana em regime de quartel. Acordam às cinco horas da manhã, correm, cultivam a terra, pastoreiam os animais e participam de ciclos de estudo das oito da noite às três da manhã. Às cinco, começa tudo de novo. Quem aguenta está dentro.
“Aqui é para filhos de camponeses, de gente pobre. Só que, em algum momento, filhos de burgueses, de funcionários públicos, começaram a entrar. Por isso estabeleceram o trabalho de campo nos testes”, contou Bastian, que perdeu 3 quilos nas primeiras semanas de aula em Ayotzinapa.
Nascido em Coyuca de Benítez, a quatro horas da escola, ele só estuda porque recebe uma bolsa do governo federal para jovens do campo, de mil pesos mexicanos (182 reais). Com isso cobre as despesas que a Escola Normal não pode prover, como transporte. Em troca, durante uma semana por mês ele dá aula para crianças em Chihuahua, a vinte horas de Ayotzinapa, quase na fronteira do México com o Texas.
 
Na primeira rajada de ar-15 disparada pelos policiais municipais de Iguala contra os normalistas que tentavam deixar a cidade pela saída norte, Uriel Alonso olhou para o chão e viu o amigo Aldo Gutiérrez Solano caído, baleado na cabeça.
“Tive que me jogar no chão, me arrastar por baixo do ônibus, como os militares”, recordou Alonso, sentado numa mureta da escola de Ayotzinapa. No sufoco do momento, parte dos estudantes que haviam descido para o asfalto retornou ao primeiro dos três ônibus que seguiam em comboio com os normalistas. Outros, como Alonso, permaneceram no chão, escondidos entre o primeiro e o segundo veículos.
Os policiais – em torno de 35, segundo Uriel Alonso – disparavam um, dois, três tiros, e paravam. Em seguida soltavam rajadas indiscriminadas. Os rapazes gritavam que eram estudantes, que não estavam fazendo nada de mal. Pediam, por favor, uma ambulância para Aldo Gutiérrez.
Deitado entre os ônibus, Alonso sacou o celular e conseguiu fazer dois vídeos, escuros e tremidos. No primeiro, de seis minutos, escuta-se apenas o barulho dos motores e Alonso dizendo: “Estamos gravando, companheiros. Por que estão apontando pra gente?” Em outro momento, desafia: “Aponta, aponta, cabrón, que eu estou gravando. Que bonito, matando estudantes... mas se [você] é bom para apontar assim, quem dera fosse contra um narco...”
Ao fundo, vozes insistem: “Somos estudantes”, “Precisamos de uma ambulância para um companheiro que está morrendo”, “Chamem os paramédicos”, “Vamos levá-lo, mas baixem as armas”, “Não temos armas, não temos armas, não temos armas, senhor, tenha coração.”
Alonso também usou o celular para pedir socorro. No número público de emergência, a telefonista parecia não entender o pedido. “Ela perguntava: ‘Mas para que você quer ajuda? O que foram fazer aí? De onde são?’ Me deu raiva, desliguei e chamei os companheiros da escola”, contou Alonso. O tiroteio durou entre nove e meia e onze da noite.
Em meio aos tiros, Alonso avistou policiais retirando vários estudantes do terceiro ônibus e mandando-os deitar no chão, com o rosto virado para baixo. “Eu pensei em me entregar, mas meus companheiros não deixaram, me abraçaram e não me deixaram ir”, relatou Alonso. Ele também viu quando chegaram mais carros, maiores. Vinte e nove estudantes que estavam estirados no asfalto foram embarcados com as mãos na cabeça. Só então a polícia foi embora.
Por volta de uma da manhã, os estudantes publicaram no grupo de Facebook da escola: “Alerta agora em Ayotzinapa... há alunos feridos num enfrentamento com a polícia... confirmaremos em seguida.” Chovia em Iguala e os estudantes que não haviam sido levados pela polícia seguiam ali com os ônibus metralhados, esperando uma ambulância para Aldo Gutiérrez, que só foi socorrido três horas depois de baleado. Ele continua em coma, mantido vivo com a ajuda de aparelhos.
 
Na Escola Normal de Ayotzinapa, os normalistas são desafiados a descobrir uma vocação. Há uma banda marcial, grupos de rondalla (roda de viola), de danças típicas, além de equipes de futebol, vôlei e basquete, e oficina de selaria. Os mais sérios se reúnem na equipe de ordem, que assegura a limpeza e o sossego entre os rapazes. Os mais politizados entram para a Casa do Ativista.
Benito Juárez Saldaña se interessou por comunicação; comanda a rádio comunitária “Voces Nuestras, Voz de Todxs”. “Aqui você desperta. Ensinam coisas que não se ensinam nas outras escolas”, disse.
Juárez – cujo nome homenageia o primeiro presidente mexicano de origem indígena, no século XIX – é mais baixo e corpulento que os demais, afável, mas estava quase sempre com cara fechada e aspecto cansado. Havia dois meses que sua rotina saíra dos eixos, entre marchas de protesto e viagens pelo país para participar de assembleias estudantis.
Responsável pela comunicação, Juárez também faz tomasde rádios – invade rádios comerciais e pede para ler comunicados. No dia em que nos conhecemos no final de novembro, havia entrado na rádio 97.1 fm da capital estadual Chilpancingo, e os funcionários lhe deram meia hora na programação. No dia seguinte, foi recebido com beijos na bochecha e lhe disseram que poderia falar o tempo que quisesse. Ele ocupou duas horas.
Benito Juárez e o colega Sergio Bastian me ofereceram um tour pela escola. Passamos pelos vários dormitórios (cada um com um nome: Ratoneras, Cavernas, Los Olvidadose La Gloria), pela quadra de esportes, pela cafeteria, pelos campos de flores lilases, pelos chiqueiros e pastos, agora quase abandonados. Terminamos num amplo estacionamento onde havia pelo menos dez ônibus e caminhões de multinacionais alimentícias. Eram os veículos que os estudantes confiscaram provisoriamente para seu transporte e para apanhar alimentos.
Nas últimas semanas de novembro, os estudantes estavam interceptando mais veículos do que o habitual, com vistas à pressão política, explicaram. Perguntei se manter os motoristas na escola junto com os caminhões não os prejudicaria. “Não, eles gostam, porque enquanto ficam aqui a gente oferece tudo e eles descansam. Se não estivessem aqui, estariam fazendo jornadas longas”, disse Benito Juárez. O céu já escurecia e os motoristas estavam sentados num gramado, conversando.
No dia seguinte, um deles se aproximou, perguntou de onde eu era e me convidou para conhecer seu estado natal, Morelos, vizinho a Guerrero. Um dia depois, procurei o grupo para saber quanto ganhavam enquanto estavam ali, mas os motoristas disseram que os normalistas os haviam proibido de falar comigo.
“Já nos contaram que você é repórter, e até sabiam sobre o que conversamos”, disse-me um deles. Insisti e ele contou que estava ali havia quarenta dias, sem poder ver a família. Os estudantes lhe pagavam 300 pesos (54 reais) por dia, além da alimentação. Se estivesse trabalhando, ele ganharia 500 pesos (91 reais) por dia. Estava perdendo tempo e dinheiro. Não iria embora por conta própria porque a empresa o responsabilizaria pelo caminhão que viesse a abandonar. (Em dezembro, empresas e normalistas fizeram um acordo para o revezamento dos motoristas; cada um ficaria dez dias a serviço dos jovens.)
 
Jornalistas locais chegaram à saída norte de Iguala no início da madrugada de 27 de setembro, quando os normalistas que escaparam de ser detidos esperavam ajuda para o colega ferido na cabeça. Enquanto os repórteres colhiam o depoimento dos estudantes, alguns carros pretos e uma caminhonete vermelha se aproximaram. Dos automóveis, desceram homens com o rosto coberto por máscaras negras, atirando com metralhadoras calibre .50 e pistolas 9 milímetros – armas de guerra. Dois estudantes foram fatalmente atingidos: Daniel Solís Gallardo e Julio César Ramírez.
Uriel Alonso fugiu e se escondeu a duas quadras dali, num terreno baldio, com mais cinco companheiros. Por cinco horas,estiveram imóveis, no escuro, até que colegas os socorreram. Outros estudantes se ocultaram em casas, hospitais, onde puderam. Enquanto isso, polícia e homens de preto procuravam normalistas por Iguala.
Uma equipe de futebol da terceira divisão, Los Avispones, viajava de Iguala a Chilpancingo num ônibus de turismo e foi atingida a tiros na estrada. Um jogador de 14 anos e o motorista do ônibus morreram. O veículo caiu num barranco e vários atletas ficaram feridos. Uma dona de casa que estava num táxi também morreu baleada. Vinte e cinco pessoas confundidas com estudantes saíram feridas na noite do massacre.
Logo se soube que os dois ônibus que deixaram a rodoviária de Iguala pela saída sul também haviam sido atacados pela polícia. Os normalistas do segundo ônibus fugiram apavorados e se salvaram. Os do primeiro foram levados. Num primeiro momento, os estudantes de Ayotzinapa que foram à delegacia e à Procuradoria de Iguala em busca dos detidos pensavam que faltassem 57 companheiros. Vários, porém, foram emergindo de seus esconderijos. Quarenta e três nunca reapareceram.
Pela manhã, o corpo do normalista Júlio Cesar Mondragón, o Chilango, foi encontrado na beira da estrada. Sua pele e seus olhos haviam sido arrancados do rosto enquanto ele ainda estava vivo, segundo o perito que examinou seu corpo. As mãos e os braços foram queimados com cigarro. As costas receberam golpes que deixaram marcas. Olhando uma foto, ao ver a polo vermelha e o cachecol cor de café, Alonso reconheceu o corpo do amigo. Mondragón tinha 22 anos e era o único dos rapazes que tinha filho: a menina Melisa Sayuri nascera quinze dias antes. Ele havia passado duas semanas com a recém-nascida e chegara a Ayotzinapa na sexta-feira, pouco antes da partida dos ônibus.
Jornais mexicanos costumam comparar os índices de violência do México e do Brasil. Em números absolutos, somos recordistas mundiais de assassinatos. No México, o crime é frequentemente mais espetaculoso. Em janeiro de 2009, um homem foi acusado de ter dissolvido 300 corpos em ácido, a mando do cartel de Tijuana. Em agosto de 2010, 72 imigrantes que tentavam chegar aos Estados Unidos foram executados pelo cartel dos Zetas. Em novembro de 2011, às vésperas da abertura da Feira Internacional do Livro de Guadalajara, a maior do mundo em língua espanhola, duas caminhonetes e um carro foram abandonados em uma ponte da cidade, com 26 cadáveres.
A tortura é uma assinatura dos cartéis. Por isso o corpo de Júlio Cesar Mondragón não foi ocultado como os demais. Era uma mensagem. Outra estratégia do terror é o desaparecimento forçado, quando os familiares vivem uma eterna espera de alguém que não sabem estar vivo ou morto.
 
Damián Arnulfo Marcos tem 60 anos, mas quase não exibe rugas ou cabelos brancos. Tem os olhos puxados, as maçãs do rosto saltadas, os lábios grossos e os dentes grandes como seu filho, Felipe Arnulfo Rosa. Como todos os agricultores pobres de sua idade, veste camisa de botão e sandálias huarache, de tiras de couro.
Damián Arnulfo não fala espanhol, só mixteco, língua da quarta maior população indígena do México, depois dos nahuas, maias e zapotecos. Sem entender o que se comenta a seu redor, desde o final de setembro Arnulfo vive na Escola Normal de Ayotzinapa, à espera de notícias do filho. O normalista Felipe havia estado com a família oito dias antes de desaparecer. Contou ao pai e à prima, Catalina Madero, que a rotina na escola era pesada, mas que ele suportaria para poder estudar; que alguns meninos aprontavam, mas que todos o respeitavam. Ao final da visita, Catalina preparou umas tortilhas para ele levar à escola.
Catalina Madero vive no município de Ayutla de Los Libres, a quatro horas da escola, e o tio, Damián Arnulfo, em Rancho Papa, um povoado de cerca de 200 pessoas, ao qual se chega depois de oito horas de caminhada, cruzando um rio na serra. Nos fins de semana, Arnulfo vai a Ayutla vender cana.
Na sexta-feira, 26 de setembro, Felipe telefonou para a prima por volta das cinco da tarde, do celular de um amigo, contando que ia a Iguala. Pediu que a jovem informasse o pai, quando chegasse a Ayutla, de que ele precisava de 200 pesos (36 reais) para comprar um par de tênis.
Um afilhado de Catalina, Pedro, também normalista, lhe telefonou por volta das dez da noite para contar que os estudantes em Iguala haviam sido atacados. O rapaz disse que chegou a entrar no ônibus, mas desceu quando soube que naquela noite haveria ensaio da rondalla. Catalina então telefonou para o celular do qual havia recebido a chamada de Felipe, mas ninguém respondeu.
Avisado do ocorrido, Damián Arnulfo só conseguiu chegar a Ayotzinapa na segunda-feira. Chovera muito em seu povoado, o rio estava cheio. Quando o nível baixou um pouco, atravessou a correnteza com a água batendo na altura do peito. Carregava consigo 3 mil pesos (547 reais), arrecadados entre parentes e vizinhos para pagar a fiança de Felipe. O pai o imaginava preso, já que fora detido pela polícia.
No quarto onde Felipe Arnulfo dormia, Catalina encontrou o que o primo deixou para trás: o celular, 800 pesos (144 reais) de economias, tênis, camisas, cadernos. Ao me mostrar os pertences, Catalina descobriu um saco azul que ainda não tinha visto. Dentro dele, um punhado de tortilhas secas, as tortilhas que ela havia preparado para ele.
Desde o dia em que soube do desaparecimento do filho, Damián Arnulfo sofre com uma inflamação no dente molar que também lhe causa dor de ouvido. A plantação de cana, da qual vive, está abandonada. “Sim, era seu único”, disse Catalina, quando perguntei se o tio tinha mais filhos. “Seu único filho homem”, continuou – uma resposta comum entre alguns camponeses, que valorizam mais os descendentes homens. Arnulfo também tem uma filha, de 22 anos.
Catalina me traduzia o que o tio respondia em mixteco. “Felipe era muito colaborador. Era, não: é. Porque a gente acha que ele está vivo”, disse Arnulfo. Pais e mães de Ayotzinapa querem que se fale de seus filhos empregando os verbos no tempo presente. Felipe não tem namorada, é muito tranquilo, ajuda os vizinhos em tarefas comunitárias, não tem frescura para comer. Seu prato favorito é caldo de carne.
“Nós aqui temos água, comida. Mas à noite, quando começamos a conversar, é quando choramos. Porque a gente não sabe se eles comem, se tomam água, se batem neles, o que estão fazendo. Não sabemos nada”, disse Catalina com um fiapo de voz. Damián Arnulfo seguia sentado ao seu lado, ouvidos moucos, olhar perdido, como no dia em que ele e os outros pais se reuniram por seis horas com o presidente do México, Enrique Peña Nieto.
 
Peña Nieto reconquistou a Presidência do México para o pri em 2012, depois de dois governos consecutivos do Partido da Ação Nacional, pan, associação de direita que conseguiu quebrar as sete décadas de hegemonia dos revolucionários institucionais. É um jovem advogado de porte aristocrático, casado com uma atriz de novelas. De topete inabalável e sangue político, foi governador do estado do México, assim como seu tio e padrinho.
Ele assumiu a Presidência prometendo reformas estruturais na economia, na educação e em setores importantes como o petróleo, do qual a sucateada estatal Pemex detinha monopólio. A imprensa internacional foi bastante generosa com ele. Capa de uma edição recente da revista Time, foi descrito como o salvador do México. Em 2013, o país foi a segunda economia que mais atraiu investimentos estrangeiros na América Latina, abocanhando 38 bilhões de dólares (o Brasil recebeu 64 bilhões).
O presidente mexicano tentou manter longe da esfera do governo federal o massacre em Iguala. Cobrou uma resposta do governo de Guerrero. No início de novembro, deixou o país para ir à China, sem ter visitado Iguala ou se reunido com os familiares das vítimas. “Peña Nieto é o primeiro telepresidente do México”, registrou o escritor mexicano Juan Villoro. “Suas reformas ofereceram uma nova novela nacional, mas muito cedo a realidade o atropelou. Para sobreviver terá que sair da tela e enfrentar o que está fora dela: um país dolorosamente verdadeiro.”
A imprensa internacional também começou a cobrar uma atitude do presidente. “Embora sejam impressionantes as reformas de Peña Nieto, o México nunca conseguirá alcançar o potencial que deseja sem um honesto e eficiente sistema de justiça criminal. Sua democracia vai perder legitimidade se os seus políticos continuarem a tolerar a corrupção”, publicou The Economist.
Não era a primeira vez que a realidade interrompia a telenovela que o México reivindicava protagonizar. O Massacre de Tlatelolco já havia tisnado a imagem do país às vésperas das Olimpíadas. Em 1994, o Exército Zapatista de Libertação Nacional se rebelou em Chiapas por mais direitos sociais no dia em que entrava em vigor o Tratado de Livre Comércio da América do Norte, com Canadá e Estados Unidos.
Peña Nieto assumiu a interlocução diante do caso Aytozinapa quando viu a expectativa sobre suas reformas murcharem e os protestos ganharem apoio mundial. O presidente convocou uma reunião com os pais dos normalistas na residência oficial de Los Pinos. Damián Arnulfo, proibido de entrar com um tradutor, não compreendeu o que o mandatário disse. Porém, saiu da reunião com uma opinião: “Você percebe pela cara da pessoa quando ela está mentindo.”
 
A partir do momento em que os 43 normalistas foram apartados dos companheiros e detidos, o que se sabe procede das conclusões da Procuradoria-Geral da República do México, recentemente postas em dúvida pela imprensa do país. Segundo a Procuradoria, os 43 estudantes foram levados até a delegacia de Iguala. Agentes da polícia de Cocula, cidade vizinha, pegaram os 43 jovens na delegacia, trocaram as placas de seus carros e os conduziram até a entrada de uma montanha conhecida como Loma de Coyotes.
Lá, os estudantes teriam sido entregues a sicários do cartel Guerreros Unidos. O chefe dos sicários, Gildardo López Astudillo, avisou Sidronio Casarrubias, o comandante do grupo, que os desordeiros pertenciam à quadrilha rival, Los Rojos. Casarrubias então ordenou a execução “em defesa do território”.
Os 43 foram postos em um caminhão e uma caminhonete usados para carregar animais. Ainda segundo as investigações da Procuradoria da República, com base na confissão de três sicários, eles foram conduzidos ao lixão de Cocula. De acordo com os assassinos, quinze dos estudantes teriam chegado ao lixão já mortos por asfixia. Os sobreviventes foram obrigados a descer, um a um. Caminharam até um declive, deitaram no chão e foram submetidos a um interrogatório: “Vocês são dos Rojos?” “Não, somos estudantes”, respondiam a seus algozes. Um a um foram mortos com tiros na cabeça.
Os corpos dos rapazes foram jogados no fundo do lixão, dispostos dentro de um círculo formado por pedras, e amontoados uns sobre os outros “como se fossem lenha”, segundo um dos assassinos confessos. Por cima, jogaram pneus, lenha, gasolina e diesel. Arderam da uma da manhã às cinco da tarde do dia seguinte, quando os sicários voltaram, jogaram terra para esfriar as cinzas e recolheram tudo em sacos pretos, depois atirados em um rio.
O que a polícia pôde encontrar estava tão calcinado, disse o procurador-geral Jesús Murillo Karam, que os restos de dentes se pulverizavam ao menor toque. Desapareciam.
O relato do procurador-geral enfureceu o México. A riqueza de detalhes, a crueldade dos assassinatos e a frieza de Karam, que ao final da entrevista coletiva disse “Já me cansei”, levaram milhares de pessoas às ruas de todo o país. Os manifestantes lotaram o Zócalo, a praça central da Cidade do México. Na internet, a comoção vinha seguida da hashtag#yamecansé. Artistas se uniram à causa. Na Feira do Livro de Guadalajara, houve marchas, discursos. Escritores pediam ao público que contasse até 43. Conte vagarosamente de um até 43: é insuportável.
À inconformidade social, somaram-se importantes revelações da imprensa. A primeira-dama do México – a atriz de novelas Angélica Rivera – acabara de exibir numa revista de celebridades sua espetacular mansão branca, avaliada em 7 milhões de dólares. Descobriu-se que o imóvel estava registrado em nome da empresa de Juan Armando Hinojosa Cantú, amigo de Peña Nieto beneficiado com gordos contratos públicos.
As passeatas do México tiveram uma evolução parecida com as do Brasil em 2013 – irromperam pontuais e pequenas, movidas por uma razão. Aqui, foram
as passagens de ônibus. Lá, Ayotzinapa. E também lá tomaram outra dimensão, contra toda a classe política. Se antes, após cada massacre, os cartéis eram apontados como os vilões, o caso Aytozinapa despertou a sociedade mexicana para o fato de que a violência é institucionalizada e é difícil identificar quem se salva desse baile macabro.

 
Os três principais partidos políticos do México foram chamuscados. O ex-presidente Felipe Calderón, dopan, havia tomado como bandeira a guerra ao tráfico e colocara o Exército para combater os cartéis. Em linhas gerais, fez com que os narcostambém se armassem para a guerra – com armas traficadas dos Estados Unidos, o primeiro mercado mundial de consumo de drogas. É um mercado que ninguém quer perder. Saldo: 70 mil mortos e 26 mil desaparecidos, segundo números oficiais.
Peña Nieto tentou adotar um perfil parecido com o do presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos: afastando do discurso público o tema da violência, só mencionava os cartéis quando anunciava a prisão de um líder importante. O problema assim pareceria menor, e mais eficiente o governo. Mas, outra vez, a realidade atropelou a novela.
Por fim, oprd, de esquerda, que até aqui conseguira se manter apartado das denúncias mais pesadas, viu-se contaminado pela atuação do governador de Guerrero e do prefeito de Iguala, ambos parte dos seus quadros. Um dos fundadores e mais respeitados políticos do prd, Cuauhtémoc Cárdenas, deixou o partido. Seria como se Lula abandonasse o pt, ou Fernando Henrique Cardoso o PSDB.
O governador Ángel Aguirre renunciou, e o prefeito José Luis Abarca e a mulher, María de los Ángeles, foram presos depois de ficarem mais de um mês foragidos. No México, o índice de impunidade chega a 98%. Talvez tenha sido por essa razão, acreditam as organizações de direitos humanos locais, que o prefeito calculou que poderia dar cabo de 43 pessoas e sair impune. A polícia encontrou Abarca e a mulher numa casa na periferia da Cidade do México, de chão de cimento e teto de zinco, com apenas uma cama e uma mesa, cortina de papel e alguns vira-latas na porta.
O jornalista Diego Enrique Osorno, autor do livro El Cártel de Sinaloa, me disse recentemente que o caso Ayotzinapa é um divisor de águas na percepção dos mexicanos sobre a guerra às drogas. Se há alguns anos uma caravana pela paz conduzida pelo poeta Javier Sicilia – atravessando estados do México e dos Estados Unidos – deu voz às vítimas, agora os pais de Ayotzinapa têm jogado luz nos algozes.
“Ninguém mais acredita que esse seja um episódio apenas criminal. Criou-se uma narrativa de que os Guerreros Unidos são um supercartel. Faça-me o favor! São uns pistoleiros que trabalham para alguém que tem poder.” E acrescentou que o narco-Estado em que o México se transformou – situação levada ao paroxismo em Guerrero, seu estado mais pobre – faz com que a tragédia em Iguala exija respostas mais complexas do que apenas culpar um grupo bandoleiro.
Em suas colunas em jornais e sites, o jornalista vem propondo que as investigações contemplem as Forças Armadas, que em anos recentes perderam prestígio e orçamento, e que portanto poderiam ter interesse numa crise política e social que as reconduzisse à linha de frente da guerra às drogas. O caso Iguala também desviou a atenção de um escândalo histórico para o Exército: a revelação de que, em julho deste ano, num município ao sul da Cidade do México, soldados assassinaram a sangue-frio 22 supostos narcotraficantes.
Há um batalhão do Exército a 300 metros de onde os estudantes foram atacados em Iguala. Em que pese todo o pandemônio, nenhum militar foi ver o que ocorria. Osorno tem recebido ameaças de morte. Em meados de dezembro, a revista mexicana Procesodenunciou que a Polícia Federal, que monitorava as ações dos normalistas, também estaria envolvida diretamente no massacre – o que a instituição nega. Segundo a publicação, o relato que os sicários do cartel Guerreros Unidos fizeram à Procuradoria-Geral pode não ter validade, uma vez que ele teria sido obtido mediante tortura.
 
Apesar de o procurador-geral mexicano ter afirmado que os 43 estudantes estavam mortos, os pais não arredaram pé da Escola Normal Rural Raúl Isidro Burgos. Um mês depois da entrevista coletiva do procurador, a mãe e o padrasto do normalista Antonio Santana Maestro estavam morando na escola com os dois filhos mais novos – Juanito, de 5 anos, e Maykop (pronuncia-se Michael, mas a mãe quis grafar em russo por ter visto esse nome em uma enciclopédia), de 6 meses. Quando chegou, o bebê tinha 3 meses. Ele chora se fica muito tempo longe da quadra esportiva, onde muitos pais passam o dia à espera de notícias. Pensa que sua casa é ali.
A quadra é rodeada por murais com mensagens políticas. Ao redor, vê-se o verde das montanhas e as espatódeas de flores vermelhas plantadas pelos alunos. O hino da escola diz: “Ayotzinapa, és um grande colorido de beleza e tradição. Ayotzinapa, sempre tão sorridente, mas conheces a dor.” Perto de uma das cestas de basquete, foram colocadas 43 cadeiras com as fotos dos normalistas desaparecidos e outras quatro para os três estudantes mortos e o colega que fora atingido na cabeça.
Numa tarde de novembro, Juanito corria pela quadra, tirando fotos com a minha câmera. Cansou-se e me disse: “Tira uma de mim com o meu irmão?” Abraçou a cadeira laranja vazia com a imagem de Antonio e sorriu para a máquina.
Além de insistirem que os filhos estão vivos, os pais levantam dúvidas sobre a versão da Procuradoria-Geral. Na madrugada do massacre, choveu a cântaros em Iguala – 27 litros por metro quadrado. Como uma fogueira pôde queimar por tantas horas? Segundo especialistas, num crematório profissional, cada 45 quilos de massa corporal demoram uma hora para cremar. Como 43 corpos foram pulverizados em menos de um dia? Como todas essas cinzas foram alocadas em poucos sacos plásticos? É possível que alguns tenham sido mortos ali, mas não todos, argumentam.
Para as famílias, os meninos podem estar sequestrados em algum lugar. Os grupos camponeses de autodefesa continuam escavando os arredores de Iguala. Foram encontrados trinta corpos em fossas clandestinas. Como escreveu Juan Villoro, “escavar a terra em Guerrero é um inevitável ato forense”. Se não são os estudantes, quem são essas pessoas?
Ezequiel Mora, 63 anos, acabou de almoçar arroz e feijão com tortilhas, preparados por voluntárias. Lavava seus talheres quando comentou que esperava por Alexander Mora, 19 anos, o mais novo dos seis filhos. Viúvo, deixou aos cuidados dos mais velhos as plantações de milho, hibisco, abóbora e feijão, e desde então está em Ayotzinapa.
Olheiras profundas marcando os olhos indígenas, a pele queimada de sol, o primeiro botão da camisa aberto mostrando o crucifixo de madeira no pescoço, Mora está triste, mas não chora. Contou que a relação com os filhos – que ele preferiu que fossem criados pela avó desde que ficou viúvo – é respeitosa, mas sem manifestações de carinho. Nunca os abraçou. Perguntei por quê. “Assim somos nós”, disse.
Mora sempre se preocupou com o fato de Alexander viver na escola em Ayotzinapa, onde foi aceito após a segunda tentativa. “Eu não queria que ele viesse, já tinha começado os estudos lá na nossa cidade. Sabe o amo que engorda cavalos? Quando você o tem à vista, fica mais tranquilo.” Na sexta-feira de 26 de setembro, ele telefonou várias vezes, tentando confirmar se Alexander havia recebido os 500 pesos (91 reais) que ele mandara.
Um senhor se aproximou e avisou que um grupo estava se organizando para procurar pelos estudantes em quartéis de Guerrero e também na casa de um ex-governador, onde se desconfiava haver um cativeiro.
Dez dias depois da nossa conversa, no dia 6 de dezembro – 71 dias após o desaparecimento dos estudantes –, uma equipe forense argentina reconheceu por teste de dna o primeiro normalista desaparecido: era Alexander Mora. Os outros 42 seguem sendo tratados como desaparecidos.
 
Era um sábado à tarde do final de novembro e Uriel Alonso Solís estava com uma espinha de peixe engastada na garganta. De manhã, viajara até sua casa em Xalpatlahuac (“campo grande”, em náhuatl) para almoçar com a mãe, que lhe serviu peixe. Como a equipe do Médicos Sem Fronteiras que atende a escola desde o episódio em Iguala não conseguiu ajudá-lo, Alonso decidiu procurar o posto de saúde na sede do município de Tixtla.
“A gente ficou morto em vida”, disse ele, sentado no banco da frente do carro, sem olhar para trás. “Às vezes parece que nada importa mais, nem minha própria vida. Eu falei para os pais: se aceitassem uma troca, eu me entregaria no lugar deles.” Depois, passou a divagar sobre algumas estudantes de outra escola normal que o acusaram de autoritário. Ele não se via assim, mas agora achava que elas tinham razão.
A fila no posto estava longa. Um amigo de Alonso conversou com um sujeito e ele foi atendido de imediato. Voltou feliz. “Valeu a pena. O peixe estava gostoso.”
De volta a Ayotzinapa, quis mostrar seu quarto privilegiado de membro do comitê estudantil: tem piso de cerâmica, paredes pintadas de branco, armário e um peixe beta no aquário. Jogou-se na cama – camisa polo cinza com o brasão da escola e chuteira – e introduziu o assunto: “Uma vez uma menina pegou na minha mão. Mas eu fiquei nervoso e saí de perto.”
Uma fotógrafa me acompanhava e Alonso quis nos levar até nosso hotel em Chilpancingo, a capital do estado, a quinze minutos dali. Telefonou para um estudante encarregado dos transportes e fomos ziguezagueando serra abaixo numa caminhonete branca, cabine dupla, nova, retida por eles da Prefeitura de Aguascalientes.
Alonso alternava as músicas no som do carro, mostrando suas canções rancheras favoritas. Estava apaixonado por uma garota do seu povoado. Intercalava momentos de temor e tristeza, a síndrome de sobrevivente e dilemas típicos da sua idade: um garoto de 19 anos.
“Às vezes sonho com a noite do tiroteio, aí acordo suando”, contou. Fazia algum tempo que já não sonhava com os colegas. Da última vez, os 43 lhe apareceram vestidos de branco. Ele perguntou se estavam bem, e um deles respondeu: “Nos esqueça por um instante. Queremos descansar.”

05 de janeiro de 2015
in Revista Piaui

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