De todos inúmeros atributos que definem o militante de esquerda (seja nos intelectuais orgânicos ou no baixo clero militante), diria que a incrível capacidade de deslocar a realidade para adequar as suas convicções ideológicas é a mais espantosa. Se fosse definir essa patologia psicológica com uma palavra seria: duplipensar!
"Duplipensar quer dizer a capacidade de guardar simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias, e aceitá-las ambas.
"Duplipensar quer dizer a capacidade de guardar simultaneamente na cabeça duas crenças contraditórias, e aceitá-las ambas.
O intelectual do Partido sabe em que direção suas lembranças devem ser alteradas; portanto sabe que está aplicando um truque na realidade; mas pelo exercício do duplipensar ele se convence também de que a realidade não
está sendo violada. O processo tem de ser consciente, ou não seria realizado com a precisão suficiente, mas também deve ser inconsciente, ou provocaria uma sensação de falsidade e, portanto, de culpa. O duplipensar é a pedra basilar do Ingsoc, já que a ação essencial do Partido é usar a fraude consciente ao mesmo tempo que conserva a firmeza de propósito que acompanha a honestidade completa.
Dizer mentiras deliberadas e nelas acreditar piamente, esquecer qualquer fato que se haja tornado inconveniente, e depois, quando de novo se tornar preciso, arrancá-lo do olvido o tempo suficiente à sua utilidade, negar a existência da realidade objetiva e ao mesmo tempo perceber a realidade que se nega - tudo isso é indispensável.
Mesmo no emprego da palavra duplipensar é necessário duplipensar. Pois, usando-se a palavra admite-se que se está mexendo na realidade; é preciso um novo ato de duplipensar para apagar essa percepção e assim por diante, indefinidamente, a mentira sempre um passo além da realidade. Em última análise, foi por meio do duplipensar que o Partido conseguiu - e, tanto quanto sabemos, continuará, milhares de anos - deter o curso da história.
No passado, as oligarquias caíram do poder por se ossificarem ou se amolecerem. Ou se tornaram estúpidas e arrogantes, deixando de se ajustar às novas circunstâncias, e foram derribadas; ou se tornaram liberais e covardes, fizeram concessões quando deviam ter usado fôrça, e por isso foram apeadas do poder. Em outras palavras, caíram pela consciência ou a inconsciência. A grande obra do Partido é ter produzido um sistema de pensamento no qual ambas as condições podem co-existir. Não poderia ser permanente o domínio do Partido em nenhuma outra base intelectual.
Para se dominar, e continuar dominando, é preciso deslocar o sentido de realidade. Pois o segredo do mando é combinar a crença na própria infalibilidade com a capacidade de aprender com os erros anteriores." (George Orwell, 1984)
Só assim, com uma série infinita de falsificações e distorções, o militante consegue compatibilizar sua visão de mundo com a realidade que o circunscreve. É simplesmente impossível tentar debater de forma coerente, com ele, sem cair numa espiral sem fim de fraudes e confusão mental - sem a qual a sua ideologia dissolve-se no solvente da realidade.
Todo o apelo emocional que fomenta a militância, todo o ódio irracional, toda histeria psicológica, tem como objetivo, basilar, a viabilização do duplipensar. A psiquê do militante é bombardeada constantemente por infindáveis ataques emocionais para molda-la e flexibiliza-la ao frenético e delirante processo que envolve o duplipensar.
Por mais gritante que seja a prova, por mais absurda que seja a falsificação, por mais insustentável que seja a posição do partido, nada abala a fé incondicional que surge com o duplipensar, pois a fraude é um elemento intrínseco à consciência do militante.
06 de novembro de 2014
in graça no país das maravilhas
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