A política é o último refúgio do salafrário e a primeira vocação do esperto”. (Guillermo Cabrera Infante, escritor cubano exilado, 19 de abril de 1980)
O Partido Comunista Brasileiro era um partido político clandestino, tornado ilegal por decisão do Poder Judiciário através da Resolução nº 1341 de 7 de maio de 1947, do Tribunal Superior Eleitoral. Esse mesmo Tribunal Superior Eleitoral que em 1985, 42 anos depois, cometendo uma ilegalidade, aceitaria registrar provisoriamente aquele partido que ele próprio julgara ilegal e que ainda o era, pois a alteração introduzida na Constituição, tornando-o legal não havia sido publicada! Muitos dirão: Caramba! Eu não sabia!
Inicialmente, um pouco de História.
Realizado em São Paulo, na clandestinidade, em dezembro de 1967, o VI Congresso do PCB elegeu um Comitê Central composto por 32 membros efetivos e 24 suplentes, reelegendo oGrande Timoneiro Luiz Carlos Prestes para o cargo de Secretário-Geral.
A Resolução Política então aprovada representou a confirmação e, ao mesmo tempo, a atualização das linhas essenciais definidas pelo V Congresso, realizado em 1960. Ou seja, o partido manifestou-se firmemente a favor da “luta de massas, voltada para a conquista da democracia”, concebida como parte integrante da luta antiimperialista e pelo socialismo. O Informe de Balanço das atividades do Comitê Central que encerrava seu mandato, apresentado ao Congresso, afirmava que fora a partir da “Declaração de Março” (1958), que o PCB modificara sua linha política. Até então, as posições vigentes, consubstanciadas no programa aprovado no IV Congresso, realizado em 1954, após o suicídio de Getulio Vargas, dificultavam sobremaneira a inserção do partido no processo democrático. Diz esse Informe, literalmente:
“(...) Lutamos durante anos, sem qualquer sucesso, pela organização de uma Frente Democrática de Libertação Nacional que fosse a extensão da aliança operário-camponesa e estivesse, desde o início, sob a direção da classe operária e de sua vanguarda revolucionária. A hegemonia do proletariado na Frente Única era vista como imposição prévia a outras forças e não como resultado de um processo em que se associassem a experiência política das massas e a ação acertada dos comunistas (...) Somente rompendo com essa visão (em 1958), os comunistas puderam passar a exercer influência política considerável na vida nacional”.
Deve ser assinalado que as Teses para o VI Congresso, publicadas em 27 de março de 1964, quatro dias antes da Revolução, refletiam o profundo subjetivismo e baluartismo que então dominava a direção do partido. Nelas, exagerava-se a força do “movimento de massas”, sua combatividade e nível de organização; a força do “movimento operário” e sua influência na “Frente Nacionalista e Democrática”.
Exagerava-se também a influência dos comunistas e do “movimento antiimperialista” nas Forças Armadas. Essas Teses vislumbravam a perspectiva de uma vitória fácil e em curto prazo do comunismo no Brasil.
Em 1968, os comunistas apoiariam e participariam ativamente da formação da “Frente Ampla”, ajuntamento efêmero que objetivava unir forças e personalidades políticas variadas e incompatíveis, em especial Juscelino, Carlos Lacerda e João Goulart.
Em 1971, Luiz Carlos Prestes, por decisão da Comissão Executiva do partido, foi mandado para o exterior por medida de segurança, viajando para a União Soviética, onde ficou até a anistia de agosto de 1979. Logo depois, em 1973, foi adotada a decisão de retirar do Brasil, também por medida de segurança, um terço do Comitê Central. Nos anos de 1974 e 1975, o partido, no Brasil, sofreu um dos golpes mais rudes de toda a sua história, com o desmantelamento de parte substancial do Comitê Central que ficara no Brasil, e dos Comitês Estaduais em todo o país, com a prisão de centenas de militantes.
Anteriormente, em novembro de 1973, um documento do partido apelava para a formação de uma “Frente Patriótica Antifascista”. Esse foi considerado um dos documentos mais importantes do PCB em toda a sua história, embora, segundo alguns, aprovado tardiamente, pois se considerava, entre as esquerdas, que desde 1969 o regime político brasileiro poderia ser tachado de “fascista”.
No penúltimo número do jornal “Voz Operária”, editado clandestinamente no Brasil, em abril de 1975, um editorial suicida levantou a palavra-de-ordem de “apertar o cerco” contra o governo e o regime. Então, o partido já estava totalmente desmantelado. No último número editado no Brasil, no mês seguinte - pois a gráfica que imprimia o jornal, instalada no porão de uma casa, no bairro de Campo Grande, no Rio de Janeiro, foi desmantelada pelos Órgãos de Segurança -, há uma afirmação patética em seu subjetivismo: “viver para lutar”.
A “Voz Operária” somente voltaria a ser editada cerca de um ano depois, no exterior, com a ajuda financeira dos partidos comunistas da Europa Ocidental.
Como já havia ocorrido em abril de 1945, em 1979 os comunistas foram novamente anistiados. No governo seguinte, de José Sarney, foi convocada uma Assembléia Nacional Constituinte e, em maio de 1985, o partido voltou a ser legalizado, num ato administrativo manifestamente ilegal do governo federal, como se verá adiante.
Menos de seis meses depois de seu regresso ao Brasil em decorrência da anistia, Prestes, em maio de 1980, deu divulgação a um documento de sua autoria, intitulado “Carta aos Comunistas”, propondo a rebelião das bases do partido contra o Comitê Central e retomando a antiga tese de “construção de um novo partido”, sugerindo o que, em termos partidários, pode ser considerado como uma aberração: a convocação de um Congresso partidário do qual participariam “todos os comunistas” (e não apenas os militantes).
Após a publicação dessa carta, Prestes, por decisão do Comitê Central, foi removido do cargo de Secretário-Geral, sendo substituído por Giocondo Gerbasi Alves Dias, conhecido no partido como “Cabo Dias”, por ter participado da Intentona Comunista, em Natal, Rio Grande do Norte, quando cabo do Exército.
Prosseguindo cronologicamente, em 13 de dezembro de 1982, em São Paulo, uma tentativa do partido de realizar o VII Congresso foi obstada pelos Órgãos de Inteligência Militares e pela Polícia Federal, sendo indiciados em Inquérito Policial cerca de 90 militantes detidos no local onde esse Congresso seria realizado. Entre os detidos, todo o Comitê Central, o que redundou em um Inquérito realizado pela Polícia Federal, em São Paulo.
O processo, no entanto, não chegou a ir a julgamento, pois em maio de 1985, o Ministro da Justiça, Fernando Lyra, assessorado pelo Consultor Jurídico do Ministério, o sr. Marcelo Cerqueira - então militante do PCB e depois do Partido Popular Socialista, que se dizia “herdeiro político do PCB” - autorizou que o Diário Oficial da União publicasse, em 8 de maio de 1985, os documentos (Manifesto, Programa e Estatuto) necessários a que, de acordo com a Lei Orgânica dos Partidos Políticos, o partido pudesse dar entrada, no Tribunal Superior Eleitoral, do pedido de registro provisório.
Nesse mesmo dia 8 de maio, o Congresso Nacional havia aprovado, por consenso das lideranças, ou seja, sem qualquer votação - o que, à vista da Constituição é manifestamente ilegal - uma Emenda Constitucional que alterava diversos artigos da Constituição. Entre os artigos alterados figurava o de número 152, que passou a ter a seguinte redação: “É livre a criação de partidos políticos, sua organização e funcionamento, resguardadas a soberania nacional, o regime democrático, o pluralismo partidário e os direitos fundamentais da pessoa humana (...)”.
O autor dessa Emenda foi o então deputado federal pelo PMDB de Pernambuco Roberto Freire, que desde o VII Congresso, realizado clandestinamente no escritório de um advogado, em São Paulo, em 1984, integrava o Comitê Central do PCB.
Registre-se que essa modificação na Constituição, votada em 8 de maio, somente viria a ser publicada no Diário Oficial de 16 de maio de 1985, data em que, juridicamente, passou a vigorar. Ou seja, oito dias depois desse mesmo Diário Oficial da União ter publicado os documentos do PCB – Manifesto, Programa e Estatutos -!
Concluindo: o Ministério da Justiça publicou, no órgão oficial da União, os documentos de um partido político clandestino, tornado ilegal por decisão do Poder Judiciário através da Resolução nº 1341 de 7 de maio de 1947, do Tribunal Superior Eleitoral. Esse mesmo Tribunal Superior Eleitoral que em 1985, 42 anos depois, aceitaria registrar provisoriamente aquele partido que ele próprio julgara ilegal e que ainda o era, pois a modificação introduzida na Constituição ainda não havia sido publicada!
Nesse sentido, é altamente elucidativa a matéria referente ao deputado Roberto Freire, publicada pelo jornal “O Estado de São Paulo” de 9 de maio de 1985: “Segundo o deputado, a publicação do Manifesto no Diário Oficial da União foi resultado de uma negociação com o Ministro da Justiça, Fernando Lyra, a quem está subordinado o Departamento de Imprensa Nacional, e com o próprio presidente Sarney”.
Sobre esse fato, inusitado e surpreendente, de o Diário Oficial da União publicar documentos de um partido ainda ilegal, vejamos alguns trechos da decisão do Juiz-Auditor da Terceira Auditoria de São Paulo, ao determinar, em 30 de setembro de 1985, o arquivamento do processo oriundo do Inquérito Policial, realizado pela Polícia Federal, em São Paulo, que havia indiciado, em dezembro de 1982, os 11 membros da Comissão Executiva Nacional do PCB, pelo crime previsto no artigo 25 da Lei de Segurança Nacional: “Fazer funcionar, de fato, partido político dissolvido por decisão judicial”. O Juiz-Auditor, ao mandar o inquérito para o arquivo, baseou-se no artigo 6º da Emenda Constitucional apresentada pelo deputado Roberto Freire, anteriormente referida. O despacho do Juiz-Auditor aposto nos autos do processo, diz o seguinte:
“(...) Indubitavelmente o Partido Comunista Brasileiro já se encontrava em funcionamento de fato desde tempos anteriores à Emenda Constitucional nº 25/85, consoantes as provas documentais robustas contidas no presente Inquérito Policial, inteligentemente relacionadas e relatadas às folhas 135/187, onde além da demonstração de todos os atos e movimentos praticados pelos conhecidos membros do citado partido, durante anos, juntaram-se documentos sólidos de verdade provando a agilização e o funcionamento do conhecido “partidão” no seio da sociedade brasileira, inclusive com comemorações de aniversário de fundação em próprio da municipalidade paulistana, fato eficazmente comprovado no Relatório, onde novamente o lúcido Encarregado do Inquérito reitera seu Relatório anterior.
(...) A publicação juntada às folhas 205 é o marco documental do funcionamento de fato da agremiação comunista naquela era, inclusive com a apresentação da “Comissão Provisória”, que coincidentemente são os mesmos elementos que vieram a ser registrados junto ao Tribunal Superior Eleitoral, a despeito de estarem, todos eles, respondendo a processo-crime junto à 1ª Auditoria desta 2º Circunscrição Judiciária Militar (Processo nº 09/83.5), cujo teor da denúncia vem acostado às folhas 220/228.
Igualmente incrível é que a publicação do Programa, Estatutos e Manifesto do Partido Comunista Brasileiro, no Diário Oficial da União, ocorreu ANTES que houvesse qualquer legislação complementar permitindo que tal fato acontecesse, conquanto tais publicações foram feitas na seção I do Diário Oficial da União publicado em 8 de maio de 1985 (páginas 7032 a7042), enquanto que a Emenda Constitucional nº 25 foi publicada no Diário Oficial da União na data de 16 de maio de 1985, portanto 8 dias depois, quando então os partidos ATÉ A DATA DESSA EMENDA, que tenham tido seus registros anteriores cancelados ou cassados, PODERÃO ORGANIZAR-SE, desde que atendidos os princípios estabelecidos no “caput” e itens do artigo 152 da Constituição Federal.
Ora, o que foi feito antes é irregular, porquanto o articulado citado no artigo 6º da Emenda Constitucional nº 25 dá ênfase a que os partidos nas condições descritas SÓ PODERIAM REORGANIZAR-SE a partir de 16 de maio de 1985, e não antes (...).
É de se somar ao presente decisório o fato de que o artigo 152 da Constituição vigente, em seu item II, trata do princípio da NÃO SUBORDINAÇÃO dos partidos políticos a entidades ou governo estrangeiro. No entanto, é do sobejo conhecimento público a “bandeira” utilizada pelo Partido Comunista Brasileiro, cuja figuração reproduz a Bandeira Nacional de conhecido país, por sinal também ligado ao comunismo internacional, cujas famosas “Internacionais Comunistas”, diretamente dirigidas por esse país, determinam os comportamentos de todos os partidos comunistas do mundo.
Se se fizer um exame do Estatuto, do Programa e do Manifesto publicados em 8 de maio último, ver-se-á a repetição dos fatos rapidamente narrados acima, como forma de atuação partidária.
Em um exame superficial do notável julgamento havido em 1947, quando o Tribunal Superior Eleitoral decidiu, por maioria de votos, pelo cancelamento do registro do Partido Comunista “do” Brasil, ver-se-ão repetidas uma série de informações e pareceres lá discutidos e que se mostram novamente apresentados no novel registro, feito e acatado pelo Egrégio Tribunal Superior Eleitoral.
Data máxima vênia, onde há extremismo não pode haver democracia, principalmente se o objetivo extremado seja no sentido de fazer dominar uma só classe, uma só idéia, uma só força política, um só pensamento, uma só decisão”.
E finaliza o Juiz-Auditor:
“Na condição de magistrado e subordinado ao estipêndio legal que determina julgar no livre convencimento dos fatos, sem condições de legislar, mas somente de aplicar a lei, (a lei, agora artigo 6º da Emenda Constitucional nº 25/85 e a Lei 7.332/85), considero que o Partido Comunista Brasileiro está em condições de atuar e inscrever-se, desde que respeitando os ditames legais impostos.
Assim sendo, na dinâmica da própria legislação, que respeitamos e temos que aplicar, somos por determinar o ARQUIVAMENTO do presente Inquérito Policial, observando-se as cautelas devidas.”
As lúcidas considerações contidas na sentença proferida pelo Juiz-Auditor da 3ª Auditoria de São Paulo a respeito da ilegalidade do processo que precedeu a legalização do PCB, que classificou, com parcimônia, como “irregular”, carecem de qualquer comentário.
Mais uma vez o PCB não mudou. A Lei é que foi mudada!
01 de novembro de 2014
Carlos I. S. Azambuja é Historiador.
O Partido Comunista Brasileiro era um partido político clandestino, tornado ilegal por decisão do Poder Judiciário através da Resolução nº 1341 de 7 de maio de 1947, do Tribunal Superior Eleitoral. Esse mesmo Tribunal Superior Eleitoral que em 1985, 42 anos depois, cometendo uma ilegalidade, aceitaria registrar provisoriamente aquele partido que ele próprio julgara ilegal e que ainda o era, pois a alteração introduzida na Constituição, tornando-o legal não havia sido publicada! Muitos dirão: Caramba! Eu não sabia!
Inicialmente, um pouco de História.
Realizado em São Paulo, na clandestinidade, em dezembro de 1967, o VI Congresso do PCB elegeu um Comitê Central composto por 32 membros efetivos e 24 suplentes, reelegendo oGrande Timoneiro Luiz Carlos Prestes para o cargo de Secretário-Geral.
A Resolução Política então aprovada representou a confirmação e, ao mesmo tempo, a atualização das linhas essenciais definidas pelo V Congresso, realizado em 1960. Ou seja, o partido manifestou-se firmemente a favor da “luta de massas, voltada para a conquista da democracia”, concebida como parte integrante da luta antiimperialista e pelo socialismo. O Informe de Balanço das atividades do Comitê Central que encerrava seu mandato, apresentado ao Congresso, afirmava que fora a partir da “Declaração de Março” (1958), que o PCB modificara sua linha política. Até então, as posições vigentes, consubstanciadas no programa aprovado no IV Congresso, realizado em 1954, após o suicídio de Getulio Vargas, dificultavam sobremaneira a inserção do partido no processo democrático. Diz esse Informe, literalmente:
“(...) Lutamos durante anos, sem qualquer sucesso, pela organização de uma Frente Democrática de Libertação Nacional que fosse a extensão da aliança operário-camponesa e estivesse, desde o início, sob a direção da classe operária e de sua vanguarda revolucionária. A hegemonia do proletariado na Frente Única era vista como imposição prévia a outras forças e não como resultado de um processo em que se associassem a experiência política das massas e a ação acertada dos comunistas (...) Somente rompendo com essa visão (em 1958), os comunistas puderam passar a exercer influência política considerável na vida nacional”.
Deve ser assinalado que as Teses para o VI Congresso, publicadas em 27 de março de 1964, quatro dias antes da Revolução, refletiam o profundo subjetivismo e baluartismo que então dominava a direção do partido. Nelas, exagerava-se a força do “movimento de massas”, sua combatividade e nível de organização; a força do “movimento operário” e sua influência na “Frente Nacionalista e Democrática”.
Exagerava-se também a influência dos comunistas e do “movimento antiimperialista” nas Forças Armadas. Essas Teses vislumbravam a perspectiva de uma vitória fácil e em curto prazo do comunismo no Brasil.
Em 1968, os comunistas apoiariam e participariam ativamente da formação da “Frente Ampla”, ajuntamento efêmero que objetivava unir forças e personalidades políticas variadas e incompatíveis, em especial Juscelino, Carlos Lacerda e João Goulart.
Em 1971, Luiz Carlos Prestes, por decisão da Comissão Executiva do partido, foi mandado para o exterior por medida de segurança, viajando para a União Soviética, onde ficou até a anistia de agosto de 1979. Logo depois, em 1973, foi adotada a decisão de retirar do Brasil, também por medida de segurança, um terço do Comitê Central. Nos anos de 1974 e 1975, o partido, no Brasil, sofreu um dos golpes mais rudes de toda a sua história, com o desmantelamento de parte substancial do Comitê Central que ficara no Brasil, e dos Comitês Estaduais em todo o país, com a prisão de centenas de militantes.
Anteriormente, em novembro de 1973, um documento do partido apelava para a formação de uma “Frente Patriótica Antifascista”. Esse foi considerado um dos documentos mais importantes do PCB em toda a sua história, embora, segundo alguns, aprovado tardiamente, pois se considerava, entre as esquerdas, que desde 1969 o regime político brasileiro poderia ser tachado de “fascista”.
No penúltimo número do jornal “Voz Operária”, editado clandestinamente no Brasil, em abril de 1975, um editorial suicida levantou a palavra-de-ordem de “apertar o cerco” contra o governo e o regime. Então, o partido já estava totalmente desmantelado. No último número editado no Brasil, no mês seguinte - pois a gráfica que imprimia o jornal, instalada no porão de uma casa, no bairro de Campo Grande, no Rio de Janeiro, foi desmantelada pelos Órgãos de Segurança -, há uma afirmação patética em seu subjetivismo: “viver para lutar”.
A “Voz Operária” somente voltaria a ser editada cerca de um ano depois, no exterior, com a ajuda financeira dos partidos comunistas da Europa Ocidental.
Como já havia ocorrido em abril de 1945, em 1979 os comunistas foram novamente anistiados. No governo seguinte, de José Sarney, foi convocada uma Assembléia Nacional Constituinte e, em maio de 1985, o partido voltou a ser legalizado, num ato administrativo manifestamente ilegal do governo federal, como se verá adiante.
Menos de seis meses depois de seu regresso ao Brasil em decorrência da anistia, Prestes, em maio de 1980, deu divulgação a um documento de sua autoria, intitulado “Carta aos Comunistas”, propondo a rebelião das bases do partido contra o Comitê Central e retomando a antiga tese de “construção de um novo partido”, sugerindo o que, em termos partidários, pode ser considerado como uma aberração: a convocação de um Congresso partidário do qual participariam “todos os comunistas” (e não apenas os militantes).
Após a publicação dessa carta, Prestes, por decisão do Comitê Central, foi removido do cargo de Secretário-Geral, sendo substituído por Giocondo Gerbasi Alves Dias, conhecido no partido como “Cabo Dias”, por ter participado da Intentona Comunista, em Natal, Rio Grande do Norte, quando cabo do Exército.
Prosseguindo cronologicamente, em 13 de dezembro de 1982, em São Paulo, uma tentativa do partido de realizar o VII Congresso foi obstada pelos Órgãos de Inteligência Militares e pela Polícia Federal, sendo indiciados em Inquérito Policial cerca de 90 militantes detidos no local onde esse Congresso seria realizado. Entre os detidos, todo o Comitê Central, o que redundou em um Inquérito realizado pela Polícia Federal, em São Paulo.
O processo, no entanto, não chegou a ir a julgamento, pois em maio de 1985, o Ministro da Justiça, Fernando Lyra, assessorado pelo Consultor Jurídico do Ministério, o sr. Marcelo Cerqueira - então militante do PCB e depois do Partido Popular Socialista, que se dizia “herdeiro político do PCB” - autorizou que o Diário Oficial da União publicasse, em 8 de maio de 1985, os documentos (Manifesto, Programa e Estatuto) necessários a que, de acordo com a Lei Orgânica dos Partidos Políticos, o partido pudesse dar entrada, no Tribunal Superior Eleitoral, do pedido de registro provisório.
Nesse mesmo dia 8 de maio, o Congresso Nacional havia aprovado, por consenso das lideranças, ou seja, sem qualquer votação - o que, à vista da Constituição é manifestamente ilegal - uma Emenda Constitucional que alterava diversos artigos da Constituição. Entre os artigos alterados figurava o de número 152, que passou a ter a seguinte redação: “É livre a criação de partidos políticos, sua organização e funcionamento, resguardadas a soberania nacional, o regime democrático, o pluralismo partidário e os direitos fundamentais da pessoa humana (...)”.
O autor dessa Emenda foi o então deputado federal pelo PMDB de Pernambuco Roberto Freire, que desde o VII Congresso, realizado clandestinamente no escritório de um advogado, em São Paulo, em 1984, integrava o Comitê Central do PCB.
Registre-se que essa modificação na Constituição, votada em 8 de maio, somente viria a ser publicada no Diário Oficial de 16 de maio de 1985, data em que, juridicamente, passou a vigorar. Ou seja, oito dias depois desse mesmo Diário Oficial da União ter publicado os documentos do PCB – Manifesto, Programa e Estatutos -!
Concluindo: o Ministério da Justiça publicou, no órgão oficial da União, os documentos de um partido político clandestino, tornado ilegal por decisão do Poder Judiciário através da Resolução nº 1341 de 7 de maio de 1947, do Tribunal Superior Eleitoral. Esse mesmo Tribunal Superior Eleitoral que em 1985, 42 anos depois, aceitaria registrar provisoriamente aquele partido que ele próprio julgara ilegal e que ainda o era, pois a modificação introduzida na Constituição ainda não havia sido publicada!
Nesse sentido, é altamente elucidativa a matéria referente ao deputado Roberto Freire, publicada pelo jornal “O Estado de São Paulo” de 9 de maio de 1985: “Segundo o deputado, a publicação do Manifesto no Diário Oficial da União foi resultado de uma negociação com o Ministro da Justiça, Fernando Lyra, a quem está subordinado o Departamento de Imprensa Nacional, e com o próprio presidente Sarney”.
Sobre esse fato, inusitado e surpreendente, de o Diário Oficial da União publicar documentos de um partido ainda ilegal, vejamos alguns trechos da decisão do Juiz-Auditor da Terceira Auditoria de São Paulo, ao determinar, em 30 de setembro de 1985, o arquivamento do processo oriundo do Inquérito Policial, realizado pela Polícia Federal, em São Paulo, que havia indiciado, em dezembro de 1982, os 11 membros da Comissão Executiva Nacional do PCB, pelo crime previsto no artigo 25 da Lei de Segurança Nacional: “Fazer funcionar, de fato, partido político dissolvido por decisão judicial”. O Juiz-Auditor, ao mandar o inquérito para o arquivo, baseou-se no artigo 6º da Emenda Constitucional apresentada pelo deputado Roberto Freire, anteriormente referida. O despacho do Juiz-Auditor aposto nos autos do processo, diz o seguinte:
“(...) Indubitavelmente o Partido Comunista Brasileiro já se encontrava em funcionamento de fato desde tempos anteriores à Emenda Constitucional nº 25/85, consoantes as provas documentais robustas contidas no presente Inquérito Policial, inteligentemente relacionadas e relatadas às folhas 135/187, onde além da demonstração de todos os atos e movimentos praticados pelos conhecidos membros do citado partido, durante anos, juntaram-se documentos sólidos de verdade provando a agilização e o funcionamento do conhecido “partidão” no seio da sociedade brasileira, inclusive com comemorações de aniversário de fundação em próprio da municipalidade paulistana, fato eficazmente comprovado no Relatório, onde novamente o lúcido Encarregado do Inquérito reitera seu Relatório anterior.
(...) A publicação juntada às folhas 205 é o marco documental do funcionamento de fato da agremiação comunista naquela era, inclusive com a apresentação da “Comissão Provisória”, que coincidentemente são os mesmos elementos que vieram a ser registrados junto ao Tribunal Superior Eleitoral, a despeito de estarem, todos eles, respondendo a processo-crime junto à 1ª Auditoria desta 2º Circunscrição Judiciária Militar (Processo nº 09/83.5), cujo teor da denúncia vem acostado às folhas 220/228.
Igualmente incrível é que a publicação do Programa, Estatutos e Manifesto do Partido Comunista Brasileiro, no Diário Oficial da União, ocorreu ANTES que houvesse qualquer legislação complementar permitindo que tal fato acontecesse, conquanto tais publicações foram feitas na seção I do Diário Oficial da União publicado em 8 de maio de 1985 (páginas 7032 a7042), enquanto que a Emenda Constitucional nº 25 foi publicada no Diário Oficial da União na data de 16 de maio de 1985, portanto 8 dias depois, quando então os partidos ATÉ A DATA DESSA EMENDA, que tenham tido seus registros anteriores cancelados ou cassados, PODERÃO ORGANIZAR-SE, desde que atendidos os princípios estabelecidos no “caput” e itens do artigo 152 da Constituição Federal.
Ora, o que foi feito antes é irregular, porquanto o articulado citado no artigo 6º da Emenda Constitucional nº 25 dá ênfase a que os partidos nas condições descritas SÓ PODERIAM REORGANIZAR-SE a partir de 16 de maio de 1985, e não antes (...).
É de se somar ao presente decisório o fato de que o artigo 152 da Constituição vigente, em seu item II, trata do princípio da NÃO SUBORDINAÇÃO dos partidos políticos a entidades ou governo estrangeiro. No entanto, é do sobejo conhecimento público a “bandeira” utilizada pelo Partido Comunista Brasileiro, cuja figuração reproduz a Bandeira Nacional de conhecido país, por sinal também ligado ao comunismo internacional, cujas famosas “Internacionais Comunistas”, diretamente dirigidas por esse país, determinam os comportamentos de todos os partidos comunistas do mundo.
Se se fizer um exame do Estatuto, do Programa e do Manifesto publicados em 8 de maio último, ver-se-á a repetição dos fatos rapidamente narrados acima, como forma de atuação partidária.
Em um exame superficial do notável julgamento havido em 1947, quando o Tribunal Superior Eleitoral decidiu, por maioria de votos, pelo cancelamento do registro do Partido Comunista “do” Brasil, ver-se-ão repetidas uma série de informações e pareceres lá discutidos e que se mostram novamente apresentados no novel registro, feito e acatado pelo Egrégio Tribunal Superior Eleitoral.
Data máxima vênia, onde há extremismo não pode haver democracia, principalmente se o objetivo extremado seja no sentido de fazer dominar uma só classe, uma só idéia, uma só força política, um só pensamento, uma só decisão”.
E finaliza o Juiz-Auditor:
“Na condição de magistrado e subordinado ao estipêndio legal que determina julgar no livre convencimento dos fatos, sem condições de legislar, mas somente de aplicar a lei, (a lei, agora artigo 6º da Emenda Constitucional nº 25/85 e a Lei 7.332/85), considero que o Partido Comunista Brasileiro está em condições de atuar e inscrever-se, desde que respeitando os ditames legais impostos.
Assim sendo, na dinâmica da própria legislação, que respeitamos e temos que aplicar, somos por determinar o ARQUIVAMENTO do presente Inquérito Policial, observando-se as cautelas devidas.”
As lúcidas considerações contidas na sentença proferida pelo Juiz-Auditor da 3ª Auditoria de São Paulo a respeito da ilegalidade do processo que precedeu a legalização do PCB, que classificou, com parcimônia, como “irregular”, carecem de qualquer comentário.
Mais uma vez o PCB não mudou. A Lei é que foi mudada!
01 de novembro de 2014
Carlos I. S. Azambuja é Historiador.
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