"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

A MOSCA E A VACA


Ney Messias
 

Não sei quem é o deputado Geraldo Freire, mas vejo que ele é esplêndido como deputado que se esqueceu do resto. Comentam os jornais que esse parlamentar, indagando sobre se sabia alguma coisa acerca da suspensão do recesso parlamentar, respondeu: “Não sei dizer nada. Ainda não pude habituar-me à idéia do recesso. Venho diariamente à Câmara, como se tudo estivesse normal”. Depois citou um filme do Gordo e do Magro, em que o Magro, durante uma guerra, foi posto de sentinela na fronteira da Alemanha com a Alsácia. Veio a paz e esqueceram de comunicar a novidade ao Magro que, depois de vinte anos, foi encontrado em seu posto, caminhando de um lado para o outro. E o deputado Geraldo Freire conclui: “Estou como o Magro, na minha trincheira. Esta sala... o edifício do Congresso! Ainda não me dei conta do recesso”.

Isso é admirável. Dizem que o pingüim choca os seus ovos nas patas, e que se alguém substitui os ovos por pedrinhas, ele continua chocando sem se aperceber de que não conseguirá descascar pingüins: heroísmo cego da maternidade que choca. Há ainda o caso dos místicos mergulhados nas suas visões transindividuais: com as mãos fechadas não notam o crescimento das unhas nem a passagem do tempo, motivo pelo qual as unhas crescem e atravessam a palma das mãos e vão sair triunfantes no dorso. São casos heróicos como o do Magro posto de sentinela durante vinte anos, sem saber da paz. Tudo isso me lembra a parábola da mosca encharcada de metafísica. “Esta sala... esta cadeira... o edifício do Congresso! Ainda não me dei conta do recesso” — eis o que uma mosca metafísica bem que poderia pensar indefinidamente.

Querem a história da mosca? Pois vou contá-la.

Ela estava pousada na grama do campo, a pensar na definição do indefinível, quando a vaca veio e comeu a grama em que ela sonhava. A divina mosca não interrompeu as suas meditações. Quando foi engolida estava pensando no «elã vital» de Bergson, e em suas relações com a «enteléquia» de Driesch. Quando passou pela garganta da vaca, sem saber de nada a não ser dos seus transcendentes pensamentos, meditou em que, segundo os ensinamentos de Aristóteles em seu tratado De Anima, Plotino chama a inteligência de «nous poiêticos», o que quer dizer «mente ativa», distinguindo-a do «nous patéticos», o que quer dizer «mente passiva».

Embora toda a escuridão em que estava mergulhada, a mosca de heróica metafísica continuou pensando: atrás do universo material, de que nosso corpo faz parte, Plotino e os antigos pensadores da índia divisam a torrente da vida cósmica que se manifesta no Universo, e da qual o Universo é a expressão. Tudo isso não passa - pensava a mosca - de «longe» de Heráclito e dos estóicos, a razão imanente do fluir perpétuo das coisas. Mas os estóicos, que professavam um singular panteísmo, faziam do «Logos», ou da «razão seminal» como eles diziam, a causa primária da existência.

A mosca mal sentiu um baque surdo que sacudiu toda a sua estrutura entomológica, e continuou pensando: talvez estivesse na «razão seminal» estóica, a «natureza naturante» de Jacob Bohème, que é o Deus que demarrou da «natureza inaturada» para acabar sendo, como todas as moscas, e os demais seres menos importantes da escala animal, a «natureza naturada» que está perto do júbilo do ser, que é a alegria dos entes que perderam a transcendência mas que ganharam o gozo do pecado e a suprema possibilidade da reconciliação que decorre das paixões dominadas e dos instintos refreados.

Pensava nisto a mosca quando abriu os olhos para o mundo aqui e agora do real. Viu então, com espanto, que a vaca já ia longe: viu-a de costas, sacudindo o rabo, no gesto magnífico da plena exoneração. Mas continuou pensando: «O processo mediante o qual, segundo Plotino. o «Uno» se manifesta através do “Nous” e do “Logos” não possui um caráter cronológico, mas lógico. É um processo eterno, a processão criadora, a que corresponde, na natureza naturada, o contraprocesso da ascenção reintegradora».

É como se pensasse: «Esta sala... esta cadeira... o edifício do Congresso! Ainda não me dei conta do recesso», enquanto a vaca se sumia no horizonte, que por acaso não é horizonte algum.

* Ney Messias foi um dos mais brilhantes cronistas que o Brasil já teve. Como não participava de igrejas literárias ou ideológicas, morreu praticamente desconhecido, em Porto Alegre, em 1970. Boa parte das crônicas escritas enquanto agonizava foram por mim compiladas na antologia O Construtor de Mistérios, hoje só encontradiça em sebos.

05 de junho de 2014
in janer cristaldo

Nenhum comentário:

Postar um comentário