"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

terça-feira, 1 de abril de 2014

PÉ DE SAPATO

 

De início, ela quis impor o respeito. Logo no primeiro dia, dona Maricota entrou e foi dizendo para aqueles alunos do primeiro ano primário:
― Quero disciplina e respeito, se não, dou ponteirada!
 
A gente era pequeno demais e achava imenso, enorme, aquele ponteiro com que dona Maricota apontava a lição do quadro-negro e desapontava os malcriados com bordoadas justas e certeiras. De vez em quando, o subdiretor botava o nariz enorme pela porta entreaberta. Aí ela sorria. E a classe, logo no primeiro mês, começou a desconfiar que havia namoro.
 
Professora 1
 
Não sei por que é que ela implicou comigo. Acho que era por causa do «pé descalço ― pé calçado». É que pobre faz assim: compra um par de calçado só. Um irmão calça o pé direito, o outro calça o esquerdo. E o dedão de fora está sempre amarrado num pano sujo de poeira. Dona Maricota não gostava da tapeação. E intimidava:
 
― Seu Osvaldo, se esse pé não sarar até o dia 21 de abril, dou ponteirada!
É que, naquele tempo, o Brasil tinha sido descoberto no dia 21 de abril. Depois, descobriram o Brasil no dia 3 de maio. E a 21 de abril havia festa. Aí, então, os irmãos que calçavam o mesmo número tiravam o par ou ímpar.
 
Quem ganhava ia à festa. Eu nunca fui, talvez por causa do meu azar em jogo.
Entretanto, dona Maricota costumava sorrir para os três alunos mais bem penteados e bem vestidos da classe. Um deles era o Peixotinho, de colarinho sempre alvo e de gravatinha preta. Levava «manteiga do sítio de papai» para dona Maricota e era o primeiro da classe. Era talentoso na arte de agradar. E tinha um futuro brilhante. Dona Maricota acreditava no futuro do Peixotinho. Hoje, ele é vendedor de bananas na rua da Cantareira.
 
Foi um pó de arroz antigo, cheirado de passagem, que me trouxe essas lembranças de dona Maricota. E, apesar de tudo, a gente sente saudade do perfume tênue que a professora espalhava quando fazia o esforço de distribuir ponteiradas entre os «pé descalço ― pé calçado» da classe.
 
Interligne 23
 
(*) Osvaldo Molles (1913-1967) era paulista de Santos. Seu percurso foi eclético. Deixou rastro como escritor, romancista, contista, cronista, jornalista, radialista, compositor, letrista, roteirista. Soube captar, com olhar lírico, a alma da gente simples de seu tempo. Foi parceiro e amigo de Adoniran Barbosa, com quem compartilha a autoria de Tiro ao Álvaro (1960), gravada pelos Demônios da Garoa e por Elis Regina.
O conto aqui transcrito foi publicado no livro Piquenique Classe C ― Crônicas e flagrantes de São Paulo, lançado em 1962 pela Boa Leitura Editora. A obra, com 63 crônicas, traz ilustrações de Clóvis Graciano e prefácio de Hermínio Sacchetta. Reúne textos esparsos que o autor havia publicado em meia dúzia de periódicos, entre eles a Folha de São Paulo, a revista Manchete, o jornal Diário da Noite.
Àqueles que quiserem conhecer um pouco mais sobre Osvaldo Molles, recomendo uma visitinha ao site Cifrantiga. Aqui.
 
01 de abril de 2014
in brasil de longe

Nenhum comentário:

Postar um comentário