"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

domingo, 16 de março de 2014

AS LIÇÕES QUE VÊM DO URUGUAI

Presidente Mujica dá exemplo ao evitar revanchismo, defender revalorização da política e afirmar que América Latina precisa construir acordos para pesar no mundo

José “Pepe” Mujica, 79 anos, é o 40º presidente do Uruguai. Ex-guerrilheiro tupamaro, lutou contra a ditadura que comandou o país entre 1973 e 1985. Participou de assaltos, sequestros e da tomada de Pando, em 1969, quando os tupamaros ocuparam a delegacia, o quartel dos bombeiros, a central telefônica e vários bancos de uma cidade. Passou 14 anos preso, sendo libertado em 1985.

A princípio, sua simplicidade extrema beirava o exotismo. A casa modesta numa fazendola perto da capital uruguaia; seu carro, um velho fusca; as roupas simplórias mesmo em atos oficiais; os 90% do salário doados à caridade; um único carro de polícia na segurança de sua casa. Trata-se de um ato de protesto, revelou, em entrevista ao GLOBO. “As repúblicas não vieram ao mundo para estabelecer novas cortes; nasceram para dizer que todos somos iguais (...)”.

Em 2013, ele pôs o pequeno Uruguai na vanguarda ao legalizar o aborto, o casamento gay e a maconha. Explicou: “Aplicamos um princípio muito simples: reconhecer os fatos”.

A frase vale tanto para as três ousadas iniciativas quanto para a postura do presidente uruguaio, livre do revanchismo que turva a visão política de outros líderes atuais que militaram na esquerda radical. E que dificulta consensos e a governabilidade. Mujica demonstra ter um senso realismo que falta, por exemplo, no outro lado do Rio da Prata, na Casa Rosada, sede do governo argentino.

Sobre seu passado de guerrilheiro, afirmou que “há 40 ou 50 anos, achávamos que chegar ao governo nos permitiria criar uma nova sociedade. Nossa maneira de pensar era ingênua, uma sociedade é muito complexa e o poder, muitíssimo mais complexo”. Se vê com simpatia movimentos de protesto, como a Primavera Árabe e mesmo as manifestações no Brasil, logo ressalva que “não levam a lugar nenhum”. Na sua opinião, “não construíram nada. Para construir, há que se criar uma mente política, coletiva, de longo prazo, com ideias, disciplina e método. Isto é antigo, ou parece antigo. Mas, sem interesses coletivos, é difícil mudar”. O presidente uruguaio não desfila a arrogância que alguns egressos da esquerda latino-americana da década de 70 ostentam hoje no poder.

Fato é que sob governos de uma esquerda que se revela moderna— ele sucedeu a Tabaré Vázquez, que deverá voltar à presidência —, organizada numa frente, o Uruguai, sem arroubos, salvacionismos e revanchismos se destaca no continente. Dos arredores de Montevidéu, Mujica envia a mensagem: “nós, latino-americanos, temos de ter a sabedoria de tratar de construir acordos para poder pesar neste mundo. Nós precisamos do Brasil, mas o Brasil necessita de nós todos, porque o desafio é de continentes.” Provavelmente, se ele tivesse mais voz no Mercosul, talvez o Brasil não estivesse preso num beco ideológico sem saída, emparedado entre a Argentina e a Venezuela. Mujica parece ser um dos raros estadistas na política latino-americana.

 
16 de março de 2014
Editorial O Globo

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