"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

AS ILUSÕES PERDIDAS E A IMORALIDADE JORNALÍSTICA


Honoré de Balzac é um dos nomes mais celebrados da literatura na história. Sua riquíssima produção, com mais de 90 títulos, será sempre objeto de estudos e admiração. Em sua “Comédia Humana”, conjunto de obras em que os personagens surgem, são citados ou viram protagonistas em diferentes títulos, ele tentou retratar cada detalhe minucioso da sociedade de seu tempo, sem poupar a ninguém. O cenário não poderia ser mais rico por se passar na França que se erguia após os grandes eventos sucessivos que foram a Revolução Francesa e a passagem de Napoleão Bonaparte.

Dentre todas as obras, “As Ilusões Perdidas” merece um destaque especial por, muito provavelmente, conter situações vividas pelo próprio Balzac em sua trajetória e por ser uma crítica severa ao submundo jornalístico. Neste romance acompanhamos a história de Luciano “de Rubempré”, um jovem ambicioso com bom talento literário que sai de sua pequena cidade no interior, onde era amado por sua irmã e tinha uma vida normal e bons relacionamentos (com um amigo tipógrafo, profissão exercida pelo próprio Balzac), com a obsessão de triunfar na alta sociedade de Paris. Chegando lá, Luciano começa a tomar conhecimento das particularidades do mundo literário e de sua relação promíscua com os meios jornalísticos. E é no universo jornalístico que ele consegue glória e desgraça, riqueza e miséria em pouquíssimo tempo.

O que está reproduzido abaixo é um dos momentos mais marcantes da história, quando Luciano toma uma lição de como publicar algo que ele não concorda, elogiando o que abomina. Porém, para entender melhor esta lição de imoralidade que parece ser seguida à risca nos meios jornalísticas do Brasil atual, optei por trazer um ponto anterior da história em que um “livreiro” prepara Luciano para este mundo, avisando-o sobre os riscos e vícios.

É uma leitura muito agradável e que, embora longa para a reprodução em um blog, vale a pena. Divirtam-se então:

PRIMEIRA PARTE: Luciano encontra um livreiro, que explica os vícios a que ele poderá se expor quando entrar em contato com o mundo jornalístico:

— Meu caro — disse gravemente Estêvão Lousteau, olhando para a biqueira das botas que Luciano trouxera de Angoulême e que ainda usava para acabar com elas — aconselho-o a enegrecer as botas com sua tinta de escrever a fim de poupar graxa, a fazer palitos de suas penas para ter a aparência de haver jantado, quando passear, ao sair do Flicoteaux, pela linda alameda deste jardim, à procura de um banco qualquer. Torne-se segundo escrevente de oficial de justiça. se tem ânimo para isso, caixeiro se tem chumbo nos rins, ou soldado se gosta da música militar. O senhor tem capacidade para três poetas, mas antes de conseguir aparecer, terá seis vezes tempo para morrer de fome, se conta com o produto de suas poesias para viver. Ora, suas intenções, a julgar por suas palavras cheias de inexperiência, são as de cunhar moedas com o tinteiro. Não julgo a sua poesia; ela é superior em muito a todas as poesias que atravancam as prateleiras das livrarias. Esses elegantes “rouxinóis”, vendidos um pouco mais caro que os outros por causa do papel velino, vêm quase todos pousar às margens do Sena, onde o senhor poderá estudar seus cantos, se quiser um dia fazer uma instrutiva peregrinação pelos cais de Paris, desde a estante do pai Jerônimo, na ponte de Nossa Senhora, até a ponte Royal. Lá encontrará todos os Ensaios poéticos, Inspirações, Elevações, Hinos, Cantos, Baladas, Odes, enfim, todas as ninhadas descascadas nos últimos sete anos pelas musas, cobertas de poeira, salpicadas de lama pelos carros, violadas por todos os passantes que desejam ver a vinheta do título. O senhor não conhece pessoa alguma, não tem entrada em nenhum jornal, suas Margaridas ficarão castamente fechadas como as conserva aí; jamais desabrocharão ao sol da publicidade no prado das grandes margens, esmaltado pelos florões prodigalizados pelo ilustre Dauriat, o livreiro das celebridades, o rei das Galerias de Madeira. Meu pobre filho, também eu cheguei como você com o coração cheio de ilusões, impelido pelo amor da Arte, arrastado para a glória por invencíveis impulsos. E encontrei as dificuldades da profissão, as dificuldades das livrarias e o positivo da miséria. Minha exaltação, hoje abafada. minha primeira efervescência, escondiam-me o mecanismo do mundo. Foi preciso vê-lo, chocar-me com todas as suas engrenagens, ir de encontro aos seus eixos, engraxar-me nos óleos, ouvir o rangido das correntes e dos volantes. Como eu, irá saber que, sob todas as coisas belas com que sonhamos, agitam-se criaturas, paixões e necessidades. Será fatalmente arrastado a tomar parte em lutas horríveis, de obra contra obra, homem contra homem, partido contra partido, nas quais a gente precisa bater-se sistematicamente para não ser abandonada pelos seus. Esses combates ignóbeis desencantam a alma, depravam o coração e fatigam em pura perda, porque os nossos esforços hão de servir muitas vezes para fazer coroar um homem a quem odiamos, um talento de segunda classe, apresentado, a pesar nosso, como um génio. A vida literária tem também seus bastidores. Os êxitos roubados ou merecidos, eis o que a platéia aplaude. Os meios, sempre repugnantes, os comparsas degradantes, a claque e os encarregados da maquinaria, eis o que os cenários escondem. O senhor está ainda entre os espectadores. É tempo ainda, desista antes de pôr o pé sobre o primeiro degrau do trono disputado por tantas ambições, e não se desonre como eu, para poder viver. (Uma lágrima molhou os olhos de Estêvão Lousteau.) Sabe como é que eu vivo? — continuou com um acento de raiva. — Algum dinheiro que minha família me pôde dar foi logo malbaratado. Encontrava-me sem recursos depois de ter visto aceita uma peça no Théàtre-Français. No Théàtre-Français, a proteção de um príncipe ou de um primeiro gentil-homem da câmara real não é o suficiente para que se consiga abrir caminho: os artistas não cedem senão àqueles que ameaçam seu amor-próprio. Se o senhor tiver o poder de fazer com que digam que o jovem galã sofre de asma; que a jovem primeira dama esconde uma fistula onde quer que seja, que a soubrette tem mau hábito, será representado no dia seguinte. Não sei se daqui a dois anos eu, que lhe falo. estarei em condições de obter semelhante poder: são precisos muitos amigos. Onde, como e por que meio ganhar meu pão? É pergunta que me tenho feito muitas vezes ao sentir as ferroadas da fome. Depois de variadas tentativas, após haver escrito um romance anónimo comprado por duzentos francos pelo Doguereau, que com ele também não ganhou grande coisa, ficou provado que somente o jornalismo me poderia dar o que comer. Mas como entrar nessas barracas de feira? Não lhe contarei minhas diligências e minhas solicitações inúteis, nem seis meses passados a trabalhar como extra-numerário, a ouvir dizer que eu afugentava os assinantes, quando, pelo contrário, os atraía. Passemos por alto sobre esses vexames. Faço uma revista agora nos teatros do bulevar. quase de graça, para o jornal de Finot, esse gorducho que almoça ainda duas ou três vezes por mês no café Voltaire (mas onde você não vai!). Finot é o redator-chefe. Para viver, vendo as entradas que os diretores desses teatros me dão para recompensar minha “boa vontade” na crítica e os livros que as livrarias me mandam e dos quais devo falar. Enfim, eu trafico, depois que Finot se satisfaz, com os tributos “em espécie” mandados pelos industriais, a favor dos quais ou contra os quais ele me permite escrever alguns artigos. A Água carminativa, a Pasta das sultanas, o Óleo cerebral, a Mistura brasileira, pagam vinte ou trinta francos por um artigo engraçado. Sou forçado a ladrar atrás do livreiro que fornece poucos exemplares ao jornal; na direção ficam dois que Finot vende, e é preciso que haja outros dois para eu vender. O livreiro avaro de exemplares é desancado ainda que publique uma obra-prima. É ignóbil, mas vivo dessa profissão, eu, como centenas de outros. E não pense que o mundo político é mais belo que esse oficio literário: tudo em ambos é corrução. Os homens, neles, ou são corruptores ou corrompidos. Quando se trata de um empreendimento mais importante de livraria, o livreiro me paga, com medo de ser atacado. Assim, meus lucros estão sempre de acordo com os prospetos. Quando os prospetos surgem em erupções miliares, o dinheiro entra a rodo no meu bolso, e posso então regalar os meus amigos. Quando não há negócios de livraria, vou jantar no Flicoteaux. As artistas pagam também os elogios, mas as mais hábeis pagam as críticas; é que, mais que tudo, temem o silêncio. Desse modo é que uma crítica, feita para ser alhures contestada, vale mais e é mais bem paga do que um seco elogio, esquecido no dia seguinte. A polémica, meu caro, é o pedestal das celebridades. Nesse trabalho de espadachim das idéias e das reputações industriais, literárias e dramáticas, ganho cinqüenta escudos por mês, posso vender um romance por quinhentos francos, e começo a ser considerado um homem temível. Quando, em vez de viver em casa de Florina, à custa de um droguista que se dá ares de milord, estiver alojado em “minha” casa e trabalhando no grande jornal em que hei de manter um rodapé, nesse dia, meu caro, Florina se tornará uma grande artista. Quanto a mim, não sei o que poderei vir a ser então: ministro ou homem honesto, tudo é possível. (Levantou a cabeça humilhada, mergulhou na folhagem um olhar de desespero acusador, terrível.) E tenho uma bela tragédia aceita! E tenho em meus papéis um poema que há de morrer! E eu era bom e tinha o coração puro! Tenho por amante uma atriz do Panorama-Dramatique, eu, que sonhava belos amores entre as mais distintas mulheres, da alta roda! Enfim, por causa de um exemplar recusado ao meu jornal pelo livreiro, digo mal de um livro que em Verdade acho belo!

Luciano, comovido até às lágrimas, apertou a mão de Estêvão.

— Fora do mundo literário — disse o jornalista levantando-se e se dirigindo para a grande alameda do Observatório, por onde os dois poetas caminharam como para dar mais ar aos pulmões – não há uma só pessoa que conheça a horrível odisséia pela qual se chega ao que é preciso chamar, segundo o talento, a voga, a moda, a reputação, o renome, a celebridade, o favor do público; diferentes degraus que levam à glória e que não a substituem nunca. Esse fenómeno moral, tão brilhante, compõe-se de mil incidentes que variam com tal rapidez, que não há exemplos de dois homens que houvessem triunfado por caminhos iguais. Canalis e Nathan são dois fatos dissemelhantes que não se repetirão jamais. De Arthez, que se esfalfa a trabalhar, tornar-se-á célebre por um outro qualquer acaso. Essa tão desejada reputação é, quase sempre, uma prostituta coroada. Sim. para as baixas obras da literatura, ela representa a pobre moça que se enregela pelas esquinas; para a literatura de segunda classe, é a manteúda que sai dos lugares suspeitos do jornalismo e a quem eu sirvo de rufião; para a literatura vitoriosa, é a brilhante cortesã insolente que possui bens, paga contribuições no Estado, recebe os grandes senhores, a quem trata e maltrata, tem sua libré, sua carruagem, e pode fazer esperar os credores ávidos ! Ai daqueles para quem ela é, como para mim outrora e hoje para o senhor, um anjo de asas matizadas, revestido de alva túnica, trazendo numa das mãos uma palma verde e na outra uma espada flamejante, partilhando a um tempo da abstração mitológica que vive no fundo de um poço e da pobre menina virtuosa exilada num arrabalde, que se enriquece unicamente pelas claridades da virtude e em conseqüência de uma nobre coragem, e que voa para os céus com o caráter imaculado, quando não morre enlameada, bolinada, violada, esquecida, no carro dos pobres. Os homens de cérebro cintados de bronze, corações ainda quentes sob as camadas de neve da experiência, são raros nesta terra que aí vê a nossos pés! — continuou ele, mostrando a grande cidade que fumegava ao cair do dia.

Uma visão do Cenáculo passou rapidamente diante dos olhos de Luciano e o deixou comovido, mas foi arrastado por Lousteau, que continuava sua espantosa lamentação.

— São raros e esparsos nesta cuba em fermentação. Raros como os verdadeiros amantes no mundo amoroso, raros como as fortunas honestas no mundo das finanças, raros como um homem puro no jornalismo. A experiência do primeiro que me disse isto que lhe estou dizendo perdeu-se, como a minha será sem dúvida inútil para o senhor. Idêntico ardor precipita todos os anos, da província para cá, número igual, para não dizer crescente, de ambições imberbes que se lançam, cabeça erguida e coração altivo, no assalto da Moda, essa espécie de Princesa Tourandocte dos Mil e Um Dias, para quem cada qual deseja ser o Príncipe Calaf! Mas nenhum consegue decifrar o enigma. Tombam todos na fossa da desgraça, na lama do jornal, nos charcos das livrarias. Respigam, esses mendigos, artigos biográficos, crónicas e “fatos de Paris” nos jornais, ou livros encomendados por lógicos negociantes de papel impresso, que preferem a asneira vendida em quinze dias à obra-prima que leva tempo para ser colocada. Lagartas esmagadas antes de se tornarem borboletas vivem de vergonhas e de infâmias, prontos a morder ou a gabar um talento nascente, por ordem de um paxá do Constitutionnel, da Quotidienne, dos Débats, a um sinal dos livreiros, a pedido de um camarada invejoso, ou, muitas vezes, por um jantar.

— Hei de triunfar !

— Bem! — respondeu o jornalista — mais um cristão que desce à arena para se entregar às feras. Meu caro, esta noite há uma representação no Panorama-Dramatique, só começa às oito horas: são seis. Vá pôr a sua melhor roupa, torne-se enfim apresentável. Venha buscar-me. Moro na rua de La Harpe, nos altos do café Servel, no quarto andar. Passaremos primeiro pela casa de Dauriat. O senhor persiste, não é verdade? Pois bem, far-lhe-ei conhecer esta noite um dos reis da livraria e alguns jornalistas. Depois do espetáculo, cearemos na casa de minha amante com alguns amigos, porque nosso jantar não pode ser contado como uma refeição. Ali há de encontrar Finot, o redator-chefe e proprietário do meu jornal. Conhece o dito de Minette, do Vaudeville: — O tempo é um grande bacalhau? Pois bem, para nós, o acaso é também um grande bacalhau, é preciso tentá-lo.

— Jamais hei de esquecer este dia — falou Luciano.

— Venha munido de seu manuscrito e esteja bem trajado, menos por causa de Florina que do livreiro.

A bonomia de camarada, que sucedeu ao grito violento do poeta ao pintar a guerra literária, tocou Luciano tão vivamente como o havia comovido outrora, no mesmo local, a palavra grave e religiosa de Arthez.

Animado pela perspectiva de uma luta imediata entre ele e os homens, o inexperiente rapaz não calculava, absolutamente, a realidade dos sofrimentos morais que o jornalismo lhe pressagiava. Não se sabia colocado entre dois caminhos diferentes, entre dois sistemas representados pelo Cenáculo e pelo jornalismo, dos quais um era longo, honrado, seguro; o outro semeado de escolhos e perigoso, cheio de charcos lamacentos onde sua consciência teria de se conspurcar. Seu caráter levava-o a escolher o caminho mais curto e aparentemente mais agradável, a empregar os meios decisivos e rápidos. Não via, naquele momento, nenhuma diferença entre a nobre amizade de de Arthez e a fácil camaradagem de Lousteau. Aquele espírito inconstante percebeu no jornal uma arma ao seu alcance, sentiu-se bastante hábil para a manejar e desejou tomá-la. Deslumbrado pelos oferecimentos de seu novo amigo, cuja mão tocou a sua com uma negligência que lhe pareceu graciosa, poderia acaso adivinhar que no exército da imprensa todos precisam de amigos, como os generais precisam de soldados? Lousteau, vendo-o resoluto, aliciava-o na esperança de o prender a si. O jornalista estava em seu primeiro amigo, como Luciano em seu primeiro protetor: um queria passar a cabo de esquadra, o outro queria ser soldado.

***

SEGUNDA PARTE: Luciano ganha reputação entre grupo de jornalistas e escritores imorais após fazer uma crítica devastadora ao mais recente livro de um escritor de boa reputação na época, Nathan. E então se encontra com o grupo de jornalistas, onde ouve uma lição de como elogiar e criticar uma obra e seu autor sem sentir nada do que está escrevendo:


— Queres mesmo — perguntou Lousteau — fazer de Nathan um inimigo? Nathan é jornalista, tem amigos, ele te pregaria uma boa peça na tua primeira publicação. Não tens O Archeiro de Carlos IXpara vender? Vimos Nathan esta manhã, está desesperado; mas, vais escrever um artigo em que lhe borrifarás elogios pela cara.

— Como! depois do meu artigo contra seu livro, vocês querem. . . — perguntou Luciano.

Emílio Blondet, Heitor Merlin, Estêvão Lousteau, Feliciano Vernou, todos, enfim, interromperam Luciano com um acesso de riso.

— Tu o convidaste para cear aqui depois de amanhã ! — lembrou-lhe Blondet.

— Teu artigo — disse Lousteau — não foi assinado. Feliciano, que não é novato como tu, não esqueceu de pôr-lhe ao pé um C, com o qual poderás, de agora em diante, assinar teus artigos em seu jornal, que é Esquerda pura. Todos nós somos da oposição. Feliciano teve a delicadeza de não comprometer tuas futuras opiniões. Na loja de Heitor, cujo jornal é do Centro-direita, poderás assinar com um L. Fica-se anônimo no ataque, mas assina-se, e muito bem, o elogio.

— As assinaturas não me inquietam — disse Luciano — , mas não vejo o que se possa dizer a favor do livro.

— Pensavas então aquilo que escreveste? — perguntou Heitor a Luciano.

— Sim.

— Ah! meu pequeno — atalhou Blondet —, eu te julgava mais forte ! Não, palavra de honra olhando tua fronte, eu te dotava de uma onipotência semelhante à dos grandes espíritos, todos eles assaz poderosamente constituídos a fim de serem capazes de considerar todas as coisas sob o seu duplo aspecto. Em literatura, meu pequeno, todas as idéias têm direito e avesso; ninguém pode arcar com a resposabilidade de dizer qual o avesso. Tudo é bilateral no domínio do pensamento. As idéias são binárias. Jano é o mito da crítica e o símbolo do talento. Triangular não há senão Deus! O que eleva Moliêre e Corneille acima dos outros não é a faculdade de fazer Alceste dizer sim e Filinto, Otávio e Cila não? Rousseau, na Nova Heloísa, escreveu uma carta a favor e outra contra o duelo; ousarias assumir a sua verdadeira opinião? Quem de nós poderia pronunciar-se e Aquiles? Qual é o herói de Homero? Qual foi a intenção de Richardson? A crítica deve contemplar as obras sob todos os seus aspectos. Nós somos, enfim, uns grandes enredadores.

— Você liga então importância às coisas que escreve? — perguntou-lhe Vernou com ar de zombaria. — Mas nós somos negociantes de frases e vivemos de nosso comércio. Quando você quiser fazer uma grande e bela obra, um livro, enfim, poderá colocar nele os seus pensamentos sua alma, amá-lo, defendê-lo; mas artigos, lidos hoje e amanhã esquecidos, esses não valem a meus olhos senão aquilo que por eles nos pagam. Se você dá tanta importância a tais bobagens, fará então o sinal da cruz e invocará o Espírito Santo para escrever um prospeto?

Pareciam todos assombrados de encontrar em Luciano tais escrúpulos, e acabaram de rasgar-lhe a toga pretexta para vestir-lhe a túnica viril dos jornalistas.

— Sabes com que palavras Nathan se consolou depois de haver lido o teu artigo? perguntou Lousteau.

— Como poderia saber?

— Nathan bradou: “Os pequenos artigos passam, as grandes obras permanecem!” Esse homem virá cear aqui, dentro de dois dias, e deverá prosternar-se a teus pés, beijar tuas esporas e te dizer que és um grande homem.

— Seria engraçado — admitiu Luciano.

— Engraçado? — continuou Blondet. — É necessário.

— Meus amigos, bem que o desejaria — concedeu Luciano, já um pouco embriagado -; mas como fazer?

— Bem — respondeu Lousteau —, escreve para o jornal de Merlin três belas colunas onde te refutes a ti mesmo. Depois de haver gozado o furor de Nathan, acabamos de lhe dizer que dentro em pouco ele nos haveria de agradecer pela polémica cerrada, com a ajuda da qual iríamos fazer seu livro ser vendido em oito dias. Neste momento és, a seus olhos, um espião, um canalha, um tolo; depois de amanhã serás um grande homem, um cabeça forte, um varão de Plutarco! Nathan te abraçará, considerando-te o seu melhor amigo. Dauriat veio ver-te e tens três notas de mil francos; a peça foi pregada. Faltam-te agora a estima e a amizade de Nathan. Somente o livreiro deve ser apanhado. Só devemos imolar e perseguir os nossos inimigos. Se se tratasse de um homem que tivesse conquistado nome sem o nosso auxílio, de um talento incômodo que fosse necessário anular, não faríamos semelhante réplica; mas Nathan é um dos nossos amigos, Blondet o fez atacar no Mercure para dar-se o prazer de responder no Débats. Desse modo, a primeira edição do livro se esgotou!

— Meus amigos, palavra de homem honesto, sou incapaz de escrever duas palavras de elogio a esse livro…

— Terás mais cem francos — disse Merlin —, assim Nathan já te haverá rendido dez luíses, sem contar um artigo que poderás escrever para o semanário de Finot e que te será pago a cem francos por Dauriat e cem francos pela revista. Total: vinte luíses!

— Mas que hei de dizer? -— perguntou Luciano.

— Escuta aqui, de que modo podes te arranjar, meu filho — respondeu Blondet concentrando-se. — Dirás: A inveja, que persegue todas as belas obras como o verme aos bons frutos, tentou morder este livro. Para conseguir encontrar-lhe defeitos, a crítica foi obrigada a inventar teorias com o propósito de distinguir duas literaturas: a que se entrega às idéias e a que recorre às imagens. Aí chegado, meu pequeno, dirás que a última perfeição da arte literária é exprimir a idéia pela imagem. Procurando provar que a imagem é toda a poesia, lamentarás ser tão pouca a poesia que a nossa língua comporta. Falarás nas censuras que nos são feitas pelos estrangeiros sobre o positivismo do nosso estilo e louvarás Canalis e Nathan pelos serviços que prestam à França poetizando a sua língua. Combate tua argumentação precedente, fazendo ver que evoluímos do século XVIII para cá. Inventa o Progresso! (uma admirável mistificação destinada aos burgueses). Nossa jovem literatura procede por quadros em que se concentram todos os gêneros: — a comédia e o drama, descrições, caracteres, diálogos, ligados pelos laços brilhantes de um enredo interessante. O romance, que requer sentimento, estilo e imagens, é a maior das criações modernas. Sucede à comédia, que, entre os costumes modernos, não é mais possível com suas velhas leis. Ele entrelaça o fato e a idéia num enredo que exige o espírito de La Bruyêre e sua moral incisiva, os caracteres tratados como os entendia Moliêre, os grandes recursos cénicos de Shakespeare, e a pintura dos mais delicados matizes da paixão — único tesouro que nos legaram os nossos predecessores. Por isso, é o romance muito superior à discussão fria e matemática, à seca análise do século XVIII. O romance, dirás tu, sentenciosamente, é uma epopéia divertida. Cita Corina, apoia-te na Sra. de Stael. O século XVIII pôs em equação todos os assuntos; o século XIX, encarregado de tirar as conclusões. optou pelas realidades, porém realidades que vivem e andam; ele põe, enfim, em jogo a paixão, elemento desconhecido de Voltaire. Tirada contra Voltaire. Quanto a Rousseau, não fez senão vestir raciocínios e sistemas. Júlia e Clara são enteléquias, não têm carne nem ossos. Podes insistir nesse tema e dizer que devemos à paz, aos Bourbons, uma literatura moça e original, pois estarás escrevendo para um jornal do Centro-direita. Zomba dos fazedores de sistemas. Podes enfim bradar num belo movimento: Quantos erros aí estão, quantas ilusões, no artigo do nosso confrade! E para quê? Para depreciar uma bela obra, para enganar o público e chegar a esta conclusão: Um livro que se vende; não se vende. Proh pudor! Brada Proh pudor! essa honesta’ exclamação servirá para animar o leitor. Anuncia, finalmente, a decadência da crítica.

Conclusão: existe uma única literatura, a dos livros interessantes. Nathan segue por uma estrada nova; compreendeu a sua época e corresponde às suas necessidades. A necessidade da nossa época é o drama. O drama é a aspiração de um século no qual a política é uma tragicomédia perpétua. Não vimos nós em vinte anos, perguntarás, os quatro dramas da Revolução, do Diretório, do Império e da Restauração? Desse ponto em diante descambarás pelo ditirambo do elogio. e a segunda edição voará. Ouve de que maneira! Sábado próximo encherás uma página do nosso semanário e assinarás DE RUBEMPRÉ com todas as letras. Nesse último artigo, dirás: É próprio das belas obras levantar amplas discussões. Nesta semana, tal jornal disse tal coisa do livro de Nathan, e tal outro deu-lhe uma vigorosa resposta. Criticarás a ambos os críticos — C. e L. -; dirás, de passagem, duas palavras polidas a meu respeito, a propósito do primeiro artigo que escrevi no Débats, e terminarás afirmando que o livro de Nathan é o mais belo da época. É como se nada dissesses, porque isso se diz de todos os livros. Terás ganho quatrocentos francos nesta semana, além do prazer de haver escrito a verdade nalgum lugar. As pessoas sensatas hão de dar razão a C. ou a L. ou a Rubempré, ou, talvez, a todos os três! A mitologia, que é uma das maiores invenções humanas, colocou a Verdade no fundo de um poço; para a tirar não são precisos baldes? Terás fornecido três em vez de um, ao público. Aí está, meu filho. Vamos !

Luciano estava aturdido. Blondet beijou-o nas duas faces, dizendo:

— Vou para a minha loja. Cada qual foi para a sua loja. Para aqueles homens fortes, o jornal não passava de uma loja. Todos deveriam tornar a encontrar-se à noite nas Galerias de Madeira onde Luciano iria assinar o contrato com Dauriat. Florina e Lousteau, Luciano e Corália, Blondet e Finot jantavam no Palais-Royal, onde du Bruel banqueteava o diretor do Panorama-Dramatique.

— Eles têm razão! — exclamou Luciano, quando ficou a sós com Corália. — Os homens devem ser instrumentos nas mãos dos seres fortes. Quatrocentos francos por três artigos! Doguereau mos daria depois de muito regatear, por um livro que me custou dois anos de trabalho.

— Faze crítica depois — disse Corália – diverte-te! Não serei esta noite andaluza? Amanhã não me transformarei em cigana e no dia seguinte, em homem? Faze como eu, dá-lhes caretas pelo seu dinheiro, e vivamos felizes!

Luciano, seduzido pelo paradoxo, fez com que seu espírito montasse essa caprichosa mula, filha de Pégaso e da burra de Balaão. Pós-se a galopar pelos campos do pensamento. durante o passeio pelo Bosque, e descobriu belezas originais na tese de Blondet. Jantou como costumam jantar as criaturas felizes. Assinou em casa de Dauriat um contrato mediante o qual lhe cedia a plena propriedade do manuscrito das Margaridas, sem ver nisso qualquer inconveniente. Foi em seguida dar uma volta até ao jornal, onde rabiscou duas colunas, e voltou para a rua de Vendóme. No dia seguinte pela manhã sentiu que as idéias da véspera haviam germinado em seu cérebro, como acontece com todas as inteligências cheias de seiva cujas faculdades tenham sido pouco usadas. Sentiu prazer em meditar o novo artigo e atirou-se a ele com ardor. Sob sua pena surgiram as belezas que a contradição faz nascer. Foi espirituoso e zombeteiro, abalançou-se mesmo a novas considerações sobre o sentimento e a imagem na literatura. Engenhoso e fino, encontrou, para fazer o elogio de Nathan, suas primeiras impressões da leitura do livro no gabinete literário no pátio do Comércio. De contundente e áspero crítico, de satírico, tornou-se poeta nas frases finais que se balançaram majestosamente como um incensório carregado de perfumes se balança frente ao altar.

— Cem francos, Coralia ! — lembrou ele. mostrando as oito tiras de papel escritas, enquanto ela se vestia.

Na boa disposição em que estava. escreveu logo em duas penadas o terrível artigo, prometido a Blondet, contra Chátelet e a Sra. de Bargeton. Gozou naquela manhã um dos mais vivos prazeres íntimos do jornalista: o de aguçar um epigrama, polir-lhe a lâmina fria que há de ter por bainha o coração da vítima, deixando o cabo esculpido para os leitores. O público admira o trabalho artístico do punhal, não compreende a malícia, ignora que o aço da frase espirituosa, corrompido pela vingança, mergulha num amor-próprio alvejado com requinte, ferido por mil golpes. Este horrível prazer, sombrio e solitário, degustado sem testemunhas, é como um duelo com um ausente, ferido a distância com a haste de uma pena, como se o jornalista possuísse o poder fantástico concedido aos desejos daqueles que, nos contos árabes, possuem talismãs. O epigrama é a inteligência do ódio, do ódio que é herdeiro de todas as más paixões do homem, tal como o amor concentra todas as suas boas qualidades. Aliás, não há um só homem que não se julgue inteligente quando se vinga, pela mesma razão por que não há um só a quem o amor não proporcione gozos.

Apesar da facilidade,da vulgaridade dessa espécie de espírito na França, ele é sempre bem acolhido. O artigo de Luciano deveria elevar, e elevou, ao auge a reputação de malícia e de maldade do jornal. Penetrou até o âmago de dois corações, feriu profundamente a Sra. de Bargeton, sua ex-Laura, e o Barão Chátelet, seu rival.


16 de novembro de 2017
arca reaça


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