"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sábado, 18 de junho de 2016

QUEM PUXOU O GATILHO?

O titulo da matéria - ilustrada com dramática fotografia do chinelo velho jogado no asfalto - diz “Menino de 10 anos é morto a tiro pela PM - Polícia Civil investiga versão oficial” (“OESP”, 4.6.2016, A-16).

Morador da conhecida Favela do Piolho, uma das que restaram com a construção inacabada do monotrilho da Av. Jornalista Roberto Marinho, o menino, cuja identidade foi preservada por força de lei, roubou um automóvel em companhia de amiguinho de 11 anos.

Por algum motivo despertaram suspeitas de policiais em patrulha nas imediações. Surgem aqui as versões conflitantes. Segundo a PM, do veículo roubado partiram dois disparos; de acordo com a mãe da vítima, as crianças estavam desarmadas e foram alvejadas após serem detidas.

A verdade jamais será conhecida. O caso dos autos, como diriam juízes, promotores e advogados, é mais um entre milhões de situações de abandono absoluto a que se encontra relegada parcela da população infanto-juvenil. A mãe, de 29 anos, informou ser empregada doméstica. O pai acusa passagens pela polícia por tráfico de drogas. Provavelmente estão separados. O menino vivia com a avó paterna.

Tudo indica que nos encontramos diante de quadro rotineiro de desagregação familiar. A Constituição afirma, com a solenidade dos textos grandiloquentes e vazios, que a “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado” (art. 226). Prossegue no mesmo tom: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”

Mentira. Poderia permanecer com o realismo fantástico do texto constitucional, ou enveredar pelo inoperante Estatuto da Criança e do Adolescente e deprecar, então, para atentarmos à disputa entre o falso e a realidade.

Crianças morrem diariamente aos milhares, vítimas da fome no agreste nordestino, como documentou o repórter Julio Maria, enviado especial de “O Estado” ao Ceará, a fim de investigar três famílias filmadas há dez anos pelo cineasta José Padilha, para o documentário “Garapa”. Aos que ignoram, “Garapa é o leite de quem não tem. Uma água levada ao fogão de barro logo pela manhã, quando as crianças sentem a dor da primeira fome. Água adoçada com açúcar, o mel que as deixará vivas por mais um dia” (“Aliás”, 22.5.2016, E-4).

Quando não morrem de fome, são abatidas pelo abandono, falta de comida, assistência médica, remédios, cuidados e carinhos, ou pela violência das grandes e pequenas cidades. Fenômeno recente, pouco conhecido, é o das avós-mães que assumem a criação do neto, órfão ou fruto de relacionamento passageiro e irresponsável dos pais.

Em 1975 a Câmara dos Deputados instituiu Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a investigar “O Problema da Criança e do Menor Adolescente no Brasil”. Outra CPI foi instalada em 1999, destinada a investigar o extermínio de crianças e adolescentes. O Relatório se inicia dizendo: “A morte programada e organizada de crianças e adolescentes constitui expressão maior da violência nos grandes centros urbanos”.

No caso do garoto morto, não acuso a Polícia Militar. O gatilho da pistola .40 foi acionado por sucessivos governos federais, estaduais e municipais, inertes diante da miséria em que permanecem milhões de crianças e adolescentes candidatos a engrossar as fileiras do crime pelo narcotráfico.

Desconheço governante do PMDB, PSDB, PT, que tenha dado prioridade à educação e à saúde. Gastos com escolas, assistência médica, hospitais, amparo à infância, à adolescência, a idosos, não trazem votos. Talvez seja por isso.

Nas favelas da Av. Jornalista Roberto Marinho, o contraste entre obras faraônicas do monotrilho e abrigos improvisados com restos de madeira ou papelão, põe a nu as dimensões da tragédia social.

A 8ª economia do mundo exibe, há décadas, para quem tiver olhos de ver, pavoroso genocídio cujas vítimas são crianças. Duas comissões parlamentares de inquérito não bastaram para sensibilizar o governo.

Miséria, abandono, violência são causas principais do massacre, em País que dizem ser republicano e democrático.



18 de junho de 2016
Almir Pazzianotto Pinto é advogado; foi Ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho.

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