"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

A CARTA VAZADA

Ao comentar um conto de Edgar Alan Poe, A Carta Roubada, o psicanalista francês Jacques Lacan escreveu uma de suas diatribes mais intrigantes. Sugeriu que, mesmo quando desviada criminosamente do percurso que deveria seguir, “uma carta sempre encontra o seu destinatário”. Ao que você vai perguntar: quer dizer que se um ladrão afanar um envelope destinado a outra pessoa e ler seu conteúdo a carta terá chegado ao destinatário? Na opinião de Lacan, sim.

A ideia é mais ou menos a seguinte: o destinatário da carta não é aquele cujo nome aparece no envelope, mas aquele que puder lê-la. “Certo” ou “errado”, tanto faz, o leitor assume o lugar do destinatário. Segundo esse peculiaríssimo entendimento da rede postal, uma carta é um sujeito autônomo. Ao atingir o seu leitor (o seu destinatário), põe em marcha a trama dos acontecimentos, seja essa trama uma peça de ficção (como na obra de Poe) ou um ato psicanalítico (como na interpretação de Lacan). Em resumo, uma carta, roubada ou não, move a história.

Não nos esqueçamos de que, em francês, língua de Lacan, e em inglês, língua de Poe, as palavras “letra” e “carta” podem ser rigorosamente uma única: lettre eletter. Portanto, ao escrever a palavra “carta”, eles também escrevem a palavra “letra”. O que dizem sobre uma vale para a outra. Se nos dispusermos a acompanhá-los, veremos que a letra tem poderes surpreendentes. Inscrita numa folha de papel, segue livremente o seu caminho e, ao dar de cara com o seu leitor, vai provocar seus efeitos sobre a humanidade.

Uma carta ou uma letra sempre encontram o seu destino: eis o problema do Brasil ou, dependendo do ponto de vista, eis a solução.

Todo mundo, um dia, comete uma carta. O vice-presidente Michel Temer cometeu a sua. Datada de 7 de novembro de 2015, a dele foi remetida à “Senhora Presidente”. E foi “vazada” para a imprensa. Não foi exatamente “roubada”, mas “vazada”. E só depois de “vazada” realizou a sua vocação mais sincera. O escriba redigiu cada uma daquelas sílabas pensando não apenas em Dilma Rousseff, mas nas multidões. A peça (antológica desde já) foi indisfarçavelmente escrita como carta aberta. Embora se tenha instalado um mal-estar logo após o “vazamento” (com o Palácio do Jaburu, endereço do remetente, e o Palácio do Planalto, endereço do destinatário, acusando-se reciprocamente de indiscrição), aquelas letras foram postas no papel para aparecer no papel dos jornais. Somente depois de “vazadas” encontraram os seus verdadeiros destinatários: eu, você e aqueles que, para minha angústia, não estão lendo este meu artigo, mas seguramente leram a carta do vice. O destinatário somos todos nós.

Edgar Alan Poe criava contos de terror. Foi um dos autores prediletos de Hollywood, ainda nos tempos do preto e branco. Os protagonistas daqueles velhos filmes, hoje considerados clássicos (ou cult), eram uns tipos exóticos, que já naquela época tinham ar de gente antiga. Com cabelos grisalhos bem aparados e fixados com laquê, o nariz afilado sob a testa carregada de pó de arroz e vincada pela idade, astros como Peter Cushing, que tinha costeletas, e Vincent Price, que envergava um bigodinho de Zorro, causavam calafrios nas plateias. Vestiam-se bem, com elegância e sisudez. Em sua palidez de cinza claro, tinham a aparência de coveiros em traje de gala. Outras vezes pareciam mordomos em castelos com teias de aranha e sem luz elétrica. No semblante traziam um misto de suspeição e imperturbabilidade. Suas figuras mortíferas gelavam a espinha de brasileiros e brasileiras que conviviam com líderes reais menos gélidos na vida real, como Ademar de Barros e Jânio Quadros. É claro que, ontem como hoje, ninguém ficaria indiferente se, de uma hora para outra, um híbrido de Peter Cushing e Vincent Price irrompesse na cena política. Qualquer um morreria de medo.

Michel Temer, por certo, não tem nada que ver com Price ou Cushing. Comparado aos dois, o nosso vice-presidente é exuberantemente corado, atlético, ágil, espontâneo, jovial e em nada lembra um coveiro. Ou um mordomo. Temer entra em cena como a nova esperança de governabilidade para um país que parece “um trem fora dos trilhos”, para usar a expressão de ninguém menos que Luiz Inácio Lula da Silva. Mais do que uma esperança, Temer é o best-seller da semana. É um sucesso de público e de crítica. A Folha de S.Paulo, em seu editorial de ontem, classificou de “infeliz” a carta que ele escreveu, mas reconheceu nela um arrazoado legítimo. Já este jornal, o Estado, também em editorial de ontem, chamou-a de “o fato político mais relevante desde o início do processo de impeachment”.

Uma leitura não exclui a outra. A relevância do documento (histórico desde já) está no seu caráter de aviso prévio de afastamento. Temer não rompe com Dilma, mas adverte que sua paciência com os maus modos da titular está chegando ao fim do prazo de validade. O vice ainda não pulou fora do castelo mal-assombrado desse governo, mas já abriu a janela que dá para o jardim ensolarado.

De outro lado, a infelicidade de certas passagens constrange. Ao reclamar, por exemplo, de não ter sido convidado para o encontro entre Dilma e o vice-presidente americano, Joe Biden, Temer se rende ao melodrama vulgar, como se o impasse nacional pudesse ser resolvido pelo muxoxo de um vice que deseja ser protagonista. Expressamente: “Perdi todo o protagonismo político que tinha no passado e que poderia ter sido usado pelo governo”. Ato falho mais revelador, impossível. O protagonismo de um governo não cabe ao vice, mas ao titular. Salta do texto o desejo inconfesso de inverter as posições.

Vivemos dias tenebrosos, em que o funéreo, o inconsciente e o político se engalfinham na escuridão. Que o senso de responsabilidade histórica ilumine os parlamentares encantoados entre o filme de terror e o divã.



10 de dezembro de 2015
Eugênio Bucci

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