Em um e-mail que recebo de meu amigo Ricardo Arnt, se destaca uma bela, mas alarmante frase de Rubem Alves: “A vida é um fruto saboroso que cresce na parede do abismo”. A frase me esmurra e entorpece. Ela me pega em meio à leitura de A Festa da Insignificância, novo romance de Milan Kundera (Companhia das Letras). Uma delicada narrativa a respeito da fragilidade humana — que não exclui, ao contrário, intensifica a beleza de nossa aventura. O que dói na frase de Alves é, do mesmo modo, a demonstração de que a beleza se alia à insignificância. É de muito pouco — é de um abismo — que arrancamos a vida.
Apesar da arrogância e presunção, não deixamos de ser pequenos. A vida nos dá ninharias e — ainda que de nariz empinado — enchemos o peito. É tudo, de fato, muito pouco, mas justamente por isso comovente e admirável. Assim também sentem os quatro amigos parisienses que protagonizam o romance de Kundera. Diz Ramon a D’Ardelo: “A insignificância, meu amigo, é a essência da existência. Ela está conosco em toda parte e sempre. Ela está presente mesmo ali onde ninguém quer vê-la”. Mas, prossegue Ramon, não basta reconhecer a insignificância como alicerce da existência. O mais difícil vem depois: “É preciso amar a insignificância, é preciso aprender a amá-la”. Porque só assim chegamos um pouco mais perto de nós mesmos.
Em busca das migalhas que compõem a viagem humana, o romance de Kundera traça um inesperado paralelo entre a Paris de nossos dias e a União Soviética do passado. A figura onipresente de Joseph Stalin circula pelo relato. Apesar de seu poder, Stalin se envolve em situações em que a insignificância o suplanta. As maiores demonstrações de força não vêm, necessariamente, das grandes brutalidades, mas das pequenas resistências. Lendo as memórias de Nikita Khruschóv, um perplexo Alain descobre em Stalin, em alguns momentos, a presença da ternura. “A palavra ternura não combina com a reputação de Stalin, ele é o Lúcifer do século”, admite. Diante de seu auxiliar Mikhail Kalinin, e ainda que sem ceder aos apelos do poder, ele consegue provar de doces momentos de afeto. Originados não dos grandes atos, mas de pequenos sentimentos.
Já na velhice, o amigo sofre da próstata. Em espaços muito curtos, tem necessidade de ir ao mictório. Stalin o provoca, contando longas anedotas que Kalinin não ousa interromper. Nessas horas de sofreguidão, admira a resistência do amigo. “Sofrer para não molhar a cueca... Ser um mártir de sua higiene... Combater a urina que nasce, cresce, avança, que ameaça, ataca, mata...”. Leitor das memórias, Alain se pergunta: “Existe um heroísmo mais prosaico e mais humano?” Talvez a batalha contra a urina tenha sido a grande guerra que Kalinin lutou. Do mais desprezível, surge o mais grandioso.
Stalin, o inflexível, gostava de contar uma tola história sobre vinte e quatro perdizes que, durante uma caçada, encontrara pousadas em uma árvore. Só carregava consigo doze balas — e, por isso, matou apenas doze. Andou de volta os treze quilômetros até sua casa, pegou mais uma dúzia de balas, e voltou para matar as que restavam. Sempre que ouviam a história, seus companheiros bufavam de ódio. Como Stalin podia supor que acreditassem que as doze perdizes restantes permaneceram estáticas, na mesma posição, à sua espera? Ninguém entende que o ditador está brincando. Que ele os provoca. Levam a sério o insignificante e por isso sofrem. A experiência do poder é, também, a experiência da desprezível. É tudo muito pequeno.
Charles, outro amigo, fala sempre de uma peça de teatro que tem quase pronta, destinada às marionetes. Um dia, em um momento de sinceridade, ele desabafa a Alain: “Você entende, minha peça para marionetes é apenas uma brincadeira, uma tolice, eu não a escrevi, apenas a imagino, mas que posso fazer se nada mais me distrai...” No fim da peça que não consegue terminar — até porque nunca a escreveu — surgirá um anjo. Não sabe por quê. “No momento, sei apenas que no fim haverá um anjo”. Comenta Alain que uma das poucas coisas que sabemos a respeito dos anjos é que são magros. Tudo muito pouco — sonhos frágeis, detalhes inúteis —, mas é dessas ilusões que o pequeno Charles se alimenta.
A experiência da insignificância pode vir dos sentimentos mais prosaicos. Caminhando pelas ruas de Paris, Alain descobre que nas mulheres não são as coxas, nem os seios que o atraem, mas o umbigo. Pergunta-se: “Como definir o erotismo de um homem (ou de uma época) que vê a sedução feminina concentrada no meio do corpo, no umbigo?” Mais uma vez, é no que, para a maioria dos homens, não passa de um detalhe que o personagem de Kundera se detém. Ali ele se concentra. Ali guarda sua frágil atenção. Ali o desejo lhe brota.
O arrebatamento pode vir de coisas tão inesperadas quanto a ameaça de morte. D’Ardelo vai ao médico, pois teme estar com câncer. O diagnóstico, para seu desafogo, é negativo. Na saída do consultório, atravessando aliviado o Jardim de Luxemburgo, ele cruza com Ramon. Conta de onde está vindo. “Que foi que o médico disse?”, o amigo quer saber. Responde com uma única palavra, cheia de poder: “Câncer”. Por que mentiu? Não sabe responder. Mas por que, também, diria a verdade? Não pode negar que seu câncer imaginário o alegra. Não ela, a doença, mas a pequena farsa que produz. Também de migalhas, de sobras do assombroso, é feita a imaginação.
Além do mais, a insignificância tem suas vantagens. Em outro momento, os amigos refletem sobre a inutilidade de ser brilhante. O sujeito brilhante — supõe-se — “sabe tudo”. Mas diante dele, em vez de se aproximar, uma mulher logo se sente obrigada a entrar em competição. Ser brilhante é não só inútil, mas nocivo. Prossegue Ramon: “Ao passo que a insignificância a libera. A liberta das precauções. Não exige nenhuma presença de espírito. A torna despreocupada e, portanto, mais acessível”. São muitas as vantagens do pequeno — por isso, aceitar a insignificância, se a olhamos bem de perto, não é tão doloroso assim. Pode até trazer pequenas alegrias. É o fruto saboroso de que Rubem Alves nos fala.
Apesar da arrogância e presunção, não deixamos de ser pequenos. A vida nos dá ninharias e — ainda que de nariz empinado — enchemos o peito. É tudo, de fato, muito pouco, mas justamente por isso comovente e admirável. Assim também sentem os quatro amigos parisienses que protagonizam o romance de Kundera. Diz Ramon a D’Ardelo: “A insignificância, meu amigo, é a essência da existência. Ela está conosco em toda parte e sempre. Ela está presente mesmo ali onde ninguém quer vê-la”. Mas, prossegue Ramon, não basta reconhecer a insignificância como alicerce da existência. O mais difícil vem depois: “É preciso amar a insignificância, é preciso aprender a amá-la”. Porque só assim chegamos um pouco mais perto de nós mesmos.
Em busca das migalhas que compõem a viagem humana, o romance de Kundera traça um inesperado paralelo entre a Paris de nossos dias e a União Soviética do passado. A figura onipresente de Joseph Stalin circula pelo relato. Apesar de seu poder, Stalin se envolve em situações em que a insignificância o suplanta. As maiores demonstrações de força não vêm, necessariamente, das grandes brutalidades, mas das pequenas resistências. Lendo as memórias de Nikita Khruschóv, um perplexo Alain descobre em Stalin, em alguns momentos, a presença da ternura. “A palavra ternura não combina com a reputação de Stalin, ele é o Lúcifer do século”, admite. Diante de seu auxiliar Mikhail Kalinin, e ainda que sem ceder aos apelos do poder, ele consegue provar de doces momentos de afeto. Originados não dos grandes atos, mas de pequenos sentimentos.
Já na velhice, o amigo sofre da próstata. Em espaços muito curtos, tem necessidade de ir ao mictório. Stalin o provoca, contando longas anedotas que Kalinin não ousa interromper. Nessas horas de sofreguidão, admira a resistência do amigo. “Sofrer para não molhar a cueca... Ser um mártir de sua higiene... Combater a urina que nasce, cresce, avança, que ameaça, ataca, mata...”. Leitor das memórias, Alain se pergunta: “Existe um heroísmo mais prosaico e mais humano?” Talvez a batalha contra a urina tenha sido a grande guerra que Kalinin lutou. Do mais desprezível, surge o mais grandioso.
Stalin, o inflexível, gostava de contar uma tola história sobre vinte e quatro perdizes que, durante uma caçada, encontrara pousadas em uma árvore. Só carregava consigo doze balas — e, por isso, matou apenas doze. Andou de volta os treze quilômetros até sua casa, pegou mais uma dúzia de balas, e voltou para matar as que restavam. Sempre que ouviam a história, seus companheiros bufavam de ódio. Como Stalin podia supor que acreditassem que as doze perdizes restantes permaneceram estáticas, na mesma posição, à sua espera? Ninguém entende que o ditador está brincando. Que ele os provoca. Levam a sério o insignificante e por isso sofrem. A experiência do poder é, também, a experiência da desprezível. É tudo muito pequeno.
Charles, outro amigo, fala sempre de uma peça de teatro que tem quase pronta, destinada às marionetes. Um dia, em um momento de sinceridade, ele desabafa a Alain: “Você entende, minha peça para marionetes é apenas uma brincadeira, uma tolice, eu não a escrevi, apenas a imagino, mas que posso fazer se nada mais me distrai...” No fim da peça que não consegue terminar — até porque nunca a escreveu — surgirá um anjo. Não sabe por quê. “No momento, sei apenas que no fim haverá um anjo”. Comenta Alain que uma das poucas coisas que sabemos a respeito dos anjos é que são magros. Tudo muito pouco — sonhos frágeis, detalhes inúteis —, mas é dessas ilusões que o pequeno Charles se alimenta.
A experiência da insignificância pode vir dos sentimentos mais prosaicos. Caminhando pelas ruas de Paris, Alain descobre que nas mulheres não são as coxas, nem os seios que o atraem, mas o umbigo. Pergunta-se: “Como definir o erotismo de um homem (ou de uma época) que vê a sedução feminina concentrada no meio do corpo, no umbigo?” Mais uma vez, é no que, para a maioria dos homens, não passa de um detalhe que o personagem de Kundera se detém. Ali ele se concentra. Ali guarda sua frágil atenção. Ali o desejo lhe brota.
O arrebatamento pode vir de coisas tão inesperadas quanto a ameaça de morte. D’Ardelo vai ao médico, pois teme estar com câncer. O diagnóstico, para seu desafogo, é negativo. Na saída do consultório, atravessando aliviado o Jardim de Luxemburgo, ele cruza com Ramon. Conta de onde está vindo. “Que foi que o médico disse?”, o amigo quer saber. Responde com uma única palavra, cheia de poder: “Câncer”. Por que mentiu? Não sabe responder. Mas por que, também, diria a verdade? Não pode negar que seu câncer imaginário o alegra. Não ela, a doença, mas a pequena farsa que produz. Também de migalhas, de sobras do assombroso, é feita a imaginação.
Além do mais, a insignificância tem suas vantagens. Em outro momento, os amigos refletem sobre a inutilidade de ser brilhante. O sujeito brilhante — supõe-se — “sabe tudo”. Mas diante dele, em vez de se aproximar, uma mulher logo se sente obrigada a entrar em competição. Ser brilhante é não só inútil, mas nocivo. Prossegue Ramon: “Ao passo que a insignificância a libera. A liberta das precauções. Não exige nenhuma presença de espírito. A torna despreocupada e, portanto, mais acessível”. São muitas as vantagens do pequeno — por isso, aceitar a insignificância, se a olhamos bem de perto, não é tão doloroso assim. Pode até trazer pequenas alegrias. É o fruto saboroso de que Rubem Alves nos fala.
29 de agosto de 2014
José Castello, Gazeta do Povo, PR
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