"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

TRATADO DO PORÃO (2a. PARTE)

TRATADO DO PORÃO (2a PARTE)


Os porões fazem lembrar lugares furtivos onde se ocultam produtos do roubo, atividades ilícitas, fugitivos da resistência armada, vítimas de sequestros e cadáveres recém encomendados. Com esses escusos empregos que deles se faz, somado à habitual falta de cuidados e de limpeza em sua manutenção, acabam se constituindo em habitats perfeitos para baratas, aranhas, cupins, ratos e outros animais escrotos que sobreviverão à hecatombe nuclear.

Por outro lado, a ameaça do holocausto atômico pode vir a reabilitar esses execrados aposentos subterrâneos como última esperança de sobrevivência da raça humana, reserva de vida no planeta. Esse espaço agourento nem mesmo a radioatividade ousa invadir. Tal redentora perspectiva não é, todavia, suficiente para recobrar sua desgastada imagem ante as honoráveis famílias.

Ninguém pensa em mostrá-los às visitas. “E aqui o nosso lindo porão: latas de tinta, tênis furado, ladrilhos de banheiro, roupas velhas da vovó, desentupidor de privada, raticida, caixa de arruelas, uma mala sem alça, o sofá roxo rasgado, baralho de mico, LPs Xou da Xuxa, um bambolê torto, livros de aritmética, coleção Barsa juvenil, revistas Sentinela e Amiga, um mapa de Aparecida, três vidros de maionese vazios e enfeites de presépio. Adiante uma linda barata morta. Aceita mais um pedaço de bolo de tâmara?”

Alguns dão-lhes um fim mais digno, transformando-os em adegas ou estúdios. Uma exceção às regras dos porões, tanto que, quando é trocada sua finalidade, o nome ‘porão’ é imediatamente suprimido.

Nas antigas residências, o porão era item obrigatório, não apenas como local para guarda de objetos e mantimentos, mas também como refúgio, proteção contra intempéries e entesouramento de valores. A arquitetura moderna, mais funcional e minimalista, defrontando-se com a problemática da escassez de espaço, tentou relegá-lo aos porões da história. Todavia, percebe-se que outros cômodos, como o quarto de empregada ou a área de serviço passaram a desempenhar a mesma função de despensa, indispensável. O que demonstra que os tempos não extinguiram a necessidade que motivou sua concepção original.

Mesmo tendo o porão sido suprimido das novas residências, assim como o foram os sótãos (ainda populares em filmes de terror), como seus préstimos ainda eram requisitados, criaram nova versão, localizando-os, no caso de edifícios, em minúsculos espaços ao lado da garagem, possivelmente para sanar algum problema de engenharia. Aliás, esse é o meu caso. Conferi a condição de ‘porão’ a uma espécie de antro adjacente ao estacionamento do prédio em que resido, o qual cada condômino pode utilizar para depositar suas inutilidades.

Essa confusão de nomenclatura explica-se pelo fato de que o conceito ’porão’, outrora caracterizado pela sua subterrânea localização geográfica, passou, em alguns casos, a ser tipificado pelo ofício que desempenha. O porão, independente de sua localização, é apenas depositário de bugigangas e afins. Ou seja, pelos entulhos e bagulhos que nele se porão.
(continua...)
 
(Texto extraído do livro O QUE DE MIM SOU EU)
À Cíntia
 
15 de maio de 2014
Sérgio Sayeg
 

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