"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quinta-feira, 15 de maio de 2014

TRATADO DO PORÃO (1a. PARTE)



Com respeito e orgulho, apresento o meu digníssimo porão. Mede ele 2 por 2, mais ou menos. Cada um dos 4 m2 do meu porão tem sobre si 2,20 metros de altura. O compartimento abriga, portanto, aproximadamente 9 m3 de ar e de luz. Luz e ar que foram quase que completamente expulsos para dar lugar a toda sorte de objetos provindos dos mais variados confins. A altura deve ser enfatizada, mais do que o é no resto da casa, ou melhor, naquilo que não é o resto. Porquanto ninguém personifica melhor a categoria ‘resto’ do que o supracitado. Frente a ele, até a privada da área de serviço ganha ares de nobreza. Na escala de importância dos aposentos, o pobre do porão é o permanente postulante à lanterna, rebaixado que já se encontra.
 
Ainda que relegado a uma condição subalterna, é, por uma dessas inexplicáveis contradições habitacionais, mais exigente naquilo que o concerne. Apesar de não discriminar dos objetos pretendentes a nele se expatriarem nenhum requisito quanto à procedência, coloração ou característica física, impõe a estes a clara especificação, não apenas das dimensões de comprimento e largura, mas também as da altura. Para garantir o visto de entrada no porão, têm tais objetos de apresentar, em seu passaporte, explicitado seu volume. Essa seleção  é rigorosa e não há favorecimentos.
 
Aprovada sua admissão, os objetos ganham, em sua nova moradia, literalmente, outra dimensão, passando a estamparem sua real importância tridimensional, mensurada em metros cúbicos. Despem-se e despedem-se assim de sua antiga funcionalidade e passam à condição comum de ‘trambolhos’.
 
Todos, independente de sua origem, têm o mesmo valor relativo, proporcional a seu tamanho. Valendo-nos da terminologia marxista, poderíamos afirmar que os objetos do porão ficam desprovidos de suas intrínsecas características físicas e utilitárias, responsáveis pelo seu valor de uso, sobressaindo-se o valor social do m3, determinado pela superestrutura associada ao estágio das forças produtivas do senhorio. Naquela micro-sociedade vigora um regime exemplarmente igualitário, comunista, sem classes. Todos são, por baixo, nivelados e equitativamente designados como ‘cacarecos’.
 
Sua característica principal, ao serem acomodados em seu novo lar, passa a ser seu tamanho, não mais sua serventia. Enquanto na residência de origem, a pergunta habitual que os introduzia era “combina?”, “é bonito?”, “é de qualidade?”, "é útil?", “é funcional?”, em relação ao porão, a indagação determinante passa a ser “cabe?”
 
Um tapete 3 por 3, por exemplo, deixa de medir os 9 m2 que garbosamente ocupava na sala. Ao atravessar a porta de serviço e adentrar no porão, decai à mesma humilhante condição cilíndrica de 0,12 m3 que originalmente desempenhava na loja onde foi adquirido, abatida a depreciação física que deve ter corroído a parte nobre de sua exuberância, no período compreendido entre as datas da sua compra e de seu amargo descarte.
 
Reza a lenda que, tal como ocorre em Toy Story, à noite, fora do alcance dos vigilantes e perscrutadores olhares humanos, os objetos inanimados ganham vida no porão. Talvez conversem entre si, rememorando, com saudade, os magnânimos momentos quando eram imprescindíveis e venerados. Cada um tem uma triste história a narrar a seus companheiros de infortúnio, que remonta da sua concepção, fabricação, elaboração, passando por seu uso, o glorioso apogeu, até advir o inexorável período de declínio e o debacle físico que antecedeu a melancólica situação em que se encontram. Assim como presidiários em celas contíguas no corredor da morte, à espera do sinistro e inevitável destino que os aguarda, trocam confidências, estabelecem vínculos e comungam da dor por estarem relegados aos limites daquele ambiente inóspito, esquecido e quase nunca acessado pelas vivas almas. Recordam-se dos tempos de esplendor, onde podiam ser, com orgulho, ostentados. Mas não cedem à desesperança. Para não caírem no mais negro desespero, sonham com um futuro auspicioso onde a mudança de tempos e os descaminhos imprevisíveis da moda possam reabilitá-los e recompor sua essencialidade, podendo ser, novamente, objeto de admiração e ambição, sob novas bases. Quem sabe, até como valiosas antiguidades.
 
Com tais qualificações, o porão não chega a ser propriamente um cômodo. É quase um incômodo. O que se passa em seu interior, é motivo de vergonha, como denotam as expressões pouco dignas ‘porões do sistema’ ou ‘porões da ditadura’. Muitas vezes, são palcos de rituais satânicos, sacrifícios e outras aberrações humanas que pioram ainda mais a imagem que se faz desse recinto já tão segregado, que, ainda por cima, digo, ainda por baixo, fica no caminho para o inferno.
  
(continua...)
 
(Texto extraído do livro O QUE DE MIM SOU EU)
 
15 de maio de 2014
Sérgio Sayeg

À Cíntia

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