"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

O LADRÃO DO TEMPO


 A usura é um roubo, portanto o usurário um ladrão. E antes de tudo, como todos os ladrões, um ladrão de propriedade. Thomas de Chobham o diz bem: "O usurário comete um furto (furtum) ou uma usura (usurum) ou uma rapina (rapinam), pois recebe um bem alheio (rem alienam) contra a vontade do 'proprietário' (invito domino), isto é, de Deus".

O usurário é um ladrão particular; mesmo que não perturbe a ordem pública (nec turbat rem publica), seu roubo é particularmente odioso na medida em que rouba a Deus. Que vende ele, de fato, senão o tempo que passa entre o momento em que empresta e aquele em que é reembolsado com juros? Ora, o tempo pertence somente a Deus. Todos os contemporâneos o dizem, depois de Santo Anselmo e de Pedro Lombardo: "O usurário não vende ao devedor nada que lhe pertença, somente o tempo, que pertence a Deus. Ele, portanto,não pode tirar proveito da venda de um bem alheio".

Mais explícito, mas expressando um lugar comum da época, a Tabula exemplorum relembra: "Os usurários são ladrões, pois vendem o tempo, que não lhes pertence, e vender o bem alheio, contra a vontade do possuidor, é um roubo".(41) Ladrão de "propriedade", depois ladrão de tempo, o caso do usurário se agrava. Pois a "propriedade" — noção que, na Idade Média, reaparece verdadeiramente apenas com o Direito Romano nos séculos XII e XIII e se aplica quase somente para os bens móveis — pertence aos homens. O tempo pertence a Deus, e somente a Ele. Os sinos repicam em seu louvor, nessa época em que o relógio mecânico ainda não havia aparecido, pois só virá à luz no final do século XIII.

Thomas de Chobham o diz claramente, na seqüência do texto citado mais acima (p. 10): "Assim o usurário não vende a seu devedor nada que lhe pertença, mas apenas o tempo, que pertence a Deus (sed tantum tempus quod dei est). Como ele vende uma coisa alheia, disso não deve tirar nenhum proveito".

A Tabula exemplorum é mais explícita. Evoca a venda dos dias e das noites de que lembra a significação ao mesmo tempo antropológica e simbólica. O dia é a luz, o meio que torna possível o uso pelo homem de seu sentido visual, mas que expressa também a matéria luminosa da alma, do mundo e de Deus. A noite é o repouso, o tempo de tranqüilidade, de recuperação (a menos que seja perturbada pelos sonhos) para o homem. É também o tempo místico da ausência de instabilidade, de inquietação, de tormento. O dia e a noite são os duplos terrestres dos dois bens escatológicos, a luz e a paz. Pois ao lado da noite infernal, há uma noite terrestre em que se pode pressentir o Paraíso. São estes os dois bens supremos que o usurário vende.

Um outro manuscrito do século XIII, da Biblioteca Nacional de Paris, sintetiza bem e de maneira mais completa que a Tabula a figura desse pecador e desse ladrão que é o usurário.

"Os usurários pecam contra a natureza querendo fazer dinheiro gerar dinheiro, como cavalo com cavalo ou mulo com mulo. Além disso os usurários são ladrões (latrones), pois vendem o tempo, que não lhes pertence, e vender um bem alheio, contra a vontade do possuidor é um roubo. Ademais, como nada vendem a não ser a espera do dinheiro, isto é, o tempo, vendem os dias e as noites. Mas o dia é o tempo da claridade e a noite o tempo do repouso. Portanto, não é justo que tenham a luz e o repouso eternos."

Tal é a lógica infernal do usurário.

Esse roubo do tempo é um argumento particularmente sensível aos clérigos tradicionalistas entre os séculos XII e XIII, num momento em que os valores e as práticas socioculturais se transformam, em que os homens se apropriam de fragmentos de prerrogativas divinas, em que o território dos monopólios divinos se estreita. Deus também deve dar aos homens certos valores que descem do Céu à Terra, conceder-lhes "liberdades", "privilégios".

Uma outra categoria profissional conhece na mesma época uma evolução paralela. São os "novos" intelectuais, que, fora das escolas monásticas ou catedralícias, ensinam na cidade a estudantes, de quem recebem um pagamento, a collecta. São Bernardo, entre outros, os repreendeu como sendo "vendedores, mercadores de palavras". E o que vendem eles? A ciência, a ciência, que, como o tempo, pertence apenas a Deus.

Mas esses ladrões de ciência logo serão justificados. Em primeiro lugar por seu trabalho. Na qualidade de trabalhadores intelectuais, os novos mestres escolares serão admitidos na sociedade reconhecida de sua época e na sociedade dos eleitos: aquela que deve prolongar no Além e para sempre os merecedores aqui de baixo. Eleitos que podem ser, desde que justos e obedientes a Deus, tanto os privilegiados quanto os oprimidos desta terra.

A Igreja exalta os pobres, mas reconhece de boa vontade os ricos dignos de sua riqueza pela pureza das origens desta e pelas virtudes de sua utilização. Estranha situação a do usurário medieval. Numa perspectiva de longa duração, o historiador de hoje reconhece-lhe a qualidade de precursor de um sistema econômico que, apesar de suas injustiças e de seus defeitos, inscreve-se, no Ocidente, na trajetória de um progresso: o capitalismo. Em seu tempo, aquele homem foi desonrado, segundo todos os pontos de vista da época.

Na longa tradição judaico-cristã ele é condenado. O livro sagrado faz pesar sobre ele uma maldição bimilenar. Os novos valores também o rejeitam como inimigo do presente. A grande promoção é a do trabalho e dos trabalhadores. Ora, ele é um ocioso particularmente escandaloso. Pois o diabólico trabalho do dinheiro que ele impulsiona não passa do corolário de sua odiosa ociosidade.

Ainda a esse respeito Thomas de Chobham o diz claramente: "O usurário quer adquirir um lucro sem nenhum trabalho e até dormindo, o que vai contra o preceito do Senhor que diz: 'Comerás teu pão com o suor de teu rosto' (Gênesis, III, 19)".

O usurário age contra o plano do Criador. Os homens da Idade Média viram antes de tudo no trabalho o castigo do pecado original, uma penitência. Depois, sem renegar essa perspectiva penitencia!, valorizaram cada vez mais o trabalho, instrumento de resgate, de dignidade, de salvação; colaboração à obra do Criador, que, depois de ter trabalhado, repousou no sétimo dia. Trabalho, querida preocupação, que é preciso separar da alienação, para dele fazer, individual ou coletivamente, o difícil caminho da libertação.

Nesta construção do progresso da humanidade, o usurário é um desertor. É no século XIII que os pensadores fazem do trabalho o fundamento da riqueza e da salvação, tanto no plano escatológico quanto no plano, diríamos nós, econômico. "Que cada um coma o pão que ganhou com seu esforço, que os amadores e os ociosos sejam banidos", lança Roberto de Courçon na cara dos usurários. E Gabriel Le Bras comenta convenientemente: "O maior argumento contra a usura é que o trabalho constitui a verdadeira fonte das riquezas (...). A única fonte da riqueza é o trabalho do espírito e do corpo. Não há outra justificativa de ganho senão a atividade do homem".

A única probabilidade de salvação do usurário, já que todo o seu lucro é mal adquirido, é a restituição integral do que ganhou. Thomas de Chobham é bastante claro: "Como a regra canônica é que o pecado nunca é redimido se o que foi roubado não for restituído, é claro que o usurário não pode ser considerado como um penitente sincero se não restituir tudo o que extorquiu através da usura".

Cesário de Heisterbach também o diz na seqüência da resposta do monge ao noviço: "É difícil ao usurário corrigir seu pecado, pois Deus só faz as pazes com ele se o que foi roubado for restituído".

Etienne de Bourbon e a Tabula exemplorum utilizam a respeito da restituição das usuras o mesmo exemplo destinado a mostrar como a maldição do usurário pode estender-se a seus herdeiros, se eles não obedecerem ao dever de restituição. Ser amigo do usurário é perigosamente comprometedor.

Eis a versão do dominicano: "Ouvi contar pelo irmão Raul de Varey, prior dos dominicanos de Clermont no momento do negócio, que um usurário, se arrependendo na hora da morte, tinha chamado dois amigos e lhes havia pedido para serem seus executores fiéis e rápidos. Estes deviam restituir o bem alheio que ele adquirira e deles exigiu um juramento. Eles o prestaram acompanhando-o de imprecações. Um chamou sobre si o fogo sagrado, que é chamado fogo de Geena (mal dos ardentes) que o deveria queimar caso não cumprisse a promessa. O outro fez o mesmo invocando a lepra. Mas após a morte do usurário guardaram o dinheiro, não cumprindo o que haviam prometido, e foram vítimas de suas imprecações. Sob a pressão do tormento, confessaram".

Na Tabula os executores infiéis são três: "Um usurário ao morrer legou por testamento todos os seus bens a três executores a quem suplicou que tudo restituíssem. Havia-lhes perguntado o que eles mais temiam no mundo. O primeiro respondeu: 'a pobreza'; o segundo: 'a lepra'; o terceiro: 'o fogo de Santo Antônio' (o mal dos ardentes). 'Todos estes males', disse ele, 'irão cair-lhes em cima se vocês não dispuserem de meus bens restituindo-os ou distribuindo-os conforme ordenei'. Mas após sua morte os legatários concupiscentes se apropriaram de todos os bens do morto. Sem tardança, tudo aquilo que o morto havia nomeado por imprecação os afligiu, a pobreza, a lepra e o fogo sagrado".

Assim, a Igreja envolve a prática da restituição da usura com todas as garantias possíveis. E, além da morte do usurário, já que a restituição parece ter sido prevista pelo usurário penitente post mortem em seu testamento — este documento que se torna, na Baixa Idade Média, tão precioso para o estudo das situações perante a morte e o Além (um "passaporte" para o Além) — a Igreja dramatiza as condições de sua execução. Ela promete ao executor infiel um antegozo na terra, dos tormentos que esperam, no Inferno, o usurário impenitente e que são transferidos aqui embaixo a seus amigos perjuros e cúpidos.


Jacques le Goff


* A França e o mundo perderam, neste 1º de abril, seu mais brilhante intelectual, historiador de linguagem clara e precisa, coisa rara naquelas plagas. Medievalista, autor da talvez mais vasta obra sobre o medievo, que incluem desde estudos sobre inferno e paraíso a ensaios sobre economia e costumes naquele período, Jacques le Goff, falecido aos 90 anos, deixa uma daquelas lacunas que nenhum outro homem preenche mais.

Sou leitor de carteirinha de Le Goff, é o autor que mais tenho lido nos últimos. Compre qualquer título de le Goff, mesmo ao azar, e você não se arrependerá; todos são excelentes. O último de seus livrinhos que li Un Autre Moyen Âge, tinha 1400 páginas. Em verdade, uma coletânea com sete de seus ensaios.

Le Goff, em suas dezenas de livros, especializou-se no estudo das geografias e legislações do Além, com alentados ensaios sobre o imaginário medieval. Tampouco foi alheio às práticas econômicas da época. Como pequena mostragem, reproduzo este texto de A Bolsa e a Vida (1977), onde nos mostra o usurário como ladrão de um bem divino, o tempo.


07 de abril de 2014
janer cristaldo

Nenhum comentário:

Postar um comentário