"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

domingo, 24 de novembro de 2013

"CRÔNICA DO DESERTO"

Há duas semanas, cerca de 40 empresários brasileiros, devidamente paramentados com paletó escuro e gravata, misturavam-se a homens de túnica branca e chinelos de couro, imprimindo um toque exótico à paisagem abrasadora do Deserto de Rub al-Khali, na fronteira entre Abu Dabi e Dubai, que formam, com cinco outros, os sete Estados dos Emirados Árabes Unidos. Participavam de evento promovido por uma empresa brasileira que inaugurará daqui a seis meses a sua maior fábrica de alimentos no exterior.
 
O tom das conversas girava em torno do custo Brasil, podendo-se ouvir, de um lado, peroração lamurienta sobre a perda de competitividade da nossa indústria e, de outro, exclamações de admiração pela capacidade de uma jovem nação, de apenas 42 anos (a se completarem em 2 de dezembro), vir a se transformar num dos mais celebrados ícones da modernização, da gestão e do empreendedorismo mundial neste segundo decênio do século 21.
 
Alguns usarão o argumento de que daquele tórrido deserto se extraem diariamente 3 milhões de barris de petróleo e, com essa riqueza (a sexta maior reserva do mundo), qualquer país seria capaz de transformar o inferno em céu. Em termos.
 
O Emirado de Dubai quase não tem petróleo. É um efervescente centro de serviços, a exibir uma arquitetura futurista, cujos traços indicam a opulência em encontro com o arrojo e a beleza. O resultado é uma apreciada coleção de monumentos e projetos qualificados por superlativos: o mais alto, o mais extenso, o mais exótico, a arquitetura mais criativa, e assim por diante.
 
Tanto em Dubai, a primeira cidade, quanto na capital dos Emirados, Abu Dabi, que é o maior Estado (86,7% da área), transparecem sinais de um progresso que se instala, a passos avançados, não apenas pela pujança financeira decorrente de recursos do petróleo, mas pela visão apurada e competente de seus líderes, como o principal arquiteto da nação, o xeque Zayed Al Nahayan, que a presidiu de 1971 a 2004; o seu filho Khalifa bin Zayed, emir de Abu Dabi e seu atual presidente; e o vice, o emir de Dubai, Mohammed bin Rashid Al Maktoum, que é também primeiro-ministro.
 
Quem pensa encontrar xeques incultos, rudes, se surpreenderá ao ver líderes preparados, de alta formação, conhecedores da realidade mundial e, sobretudo, pragmáticos. Bela e grata surpresa.
 
Que princípios orientam os governantes desse país do Golfo Pérsico a transformá-lo numa das mais desenvolvidas economias do Oriente Médio, um dos mais ricos do mundo, com PIB nominal per capita de US$ 54.607? Fatores se destacam, a começar pelo esforço de integrar os povos (tribos) da região. Com a descoberta das jazidas de petróleo, em 1958, os xeques buscaram a união e a Grã-Bretanha, que controlava a região, foi obrigada a retirar suas tropas, tornando possível a criação de um Estado independente.
 
Depois, a compreensão de que o regime - monarquia constitucional - deveria conformar-se aos desafios da globalização, sob pena de continuar a ser uma comunidade isolada no deserto, como o foi há décadas. Para tanto se aplica a estratégia de maximizar os pontos fortes e eliminar os fracos e, a partir daí, nas palavras do emir de Dubai, "alcançar um estágio de desenvolvimento equilibrado".
 
É visível o esforço que se faz para buscar o conceito de excelência, tarefa complexa na sociedade árabe por causa da herança cultural, conservadora, que impõe cuidados na implantação de processos modernizantes.
 
Os governantes dos Emirados ajustam o foco no planejamento de funções, no sentido de integrar os setores público e privado, escolas públicas e particulares, os institutos e as universidades. A imagem é de um laboratório de gestão. Em cada empreendimento se vê a preocupação com a qualidade, o detalhe, a lógica, a funcionalidade.
 
Investiu-se pesadamente em infraestrutura. Os mais de 4 mil km de estradas são totalmente pavimentados. O turismo é uma das alavancas, apoiada na excelência da rede hoteleira, a mostrar como o Brasil, com seus 8 mil km de costa e belezas naturais incomparáveis, vive nesse setor a idade da pedra lascada.
 
Ali, o futuro parece ter chegado com pressa. As planilhas de incentivo aos investimentos forçam a comparação com governos de países que avançam sobre o bolso dos contribuintes: não há imposto de renda de pessoa jurídica ou de pessoa física, nem retenção de imposto; tampouco há imposto sobre os lucros de capital ou restrições de moeda; não existem barreiras comerciais e o imposto de importação é de apenas 5%, com muitas isenções alfandegárias. Só bancos e companhias de energia pagam impostos.
 
O capital não é um bicho-papão, como se dá a entender em nossos trópicos. O Estado, mesmo sob regime monárquico, não tem a bocarra pantagruélica que avança sobre o bolso do contribuinte.
 
As culturas convergem e se misturam na estética das vestimentas e na polifonia dos idiomas. Num território regido pela sharia (lei islâmica), é notável a pequena quantidade de mulheres que usam a abaya (túnica preta), em contraste com as roupas ocidentais. A pluralidade manifesta-se em mais de 200 nacionalidades que oxigenam a vida cultural e artística.
 
Samuel P. Huntington, em O Choque de Civilizações, lembrava que nos anos 1980 e 1990 a tendência generalizada no Islã seguia uma direção antiocidental: "Os muçulmanos receiam e detestam o poderio ocidental e a ameaça que ele representa para sua sociedade e suas crenças".
A realidade dos Emirados Árabes Unidos mostra que essa visão ou está superada ou ganha novos contornos.
 
O vice-presidente Michel Temer, que por lá passou, e o grupo de líderes empresariais que foi prospectar negócios na região viram como uma nação de pouco mais de 8 milhões de pessoas pode dar lições a um país de dimensão continental e 200 milhões de habitantes.

24 de novembro de 2013
Gaudêncio Torquato, O Estado de São Paulo

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