Não é exagero dizer que Jean-Baptiste Say e sua lei são os guardiões da continuidade da civilização
Por que duas pessoas decidem, livre e voluntariamente, transacionar entre si?
Simples: porque elas acreditam que irão melhorar sua situação após a troca. Elas não fariam a troca caso esperassem ficar em pior situação.
E no que consiste essa transação livre e voluntária entre duas pessoas? Consiste no oferecimento mútuo de bens e serviços.
E este é o ponto crucial para entender aquele princípio que foi rotulado de Lei de Say. E esta lei explica os principais fenômenos da economia.
Por que você trabalha?
Ver uma transação econômica entre duas pessoas como um oferecimento mútuo de ambos os lados mostra que o fenômeno da oferta e da demanda não é um problema sem solução, como a charada do ovo e da galinha.
O indivíduo produz aquilo que, em sua melhor estimativa, imagina que outras pessoas irão querer consumir. E ele faz isso na expectativa de que essas outras estão produzindo ou irão produzir aquilo que ele quer consumir.
Falando mais coloquialmente, as pessoas acordam cedo e vão produzir (trabalhar) para tentar atender às demandas de terceiros. Caso sejam bem-sucedidas em atender a demanda de terceiros, elas serão recompensadas (remuneradas) por isso. Essa remuneração irá agora lhes permitir demandar bens e serviços para satisfação própria.
As pessoas trabalham em troca de dinheiro não pelo dinheiro em si próprio. Como diz o ditado, você não pode "comer dinheiro". Você demanda dinheiro por causa dos bens e serviços que poderá obter com esse dinheiro.
Ou seja, ao produzir e ofertar para terceiros, e consequentemente ganhar dinheiro, você pode agora utilizar esse dinheiro para demandar bens e serviços para proveito próprio.
Obviamente, de nada adianta apenas produzir e ofertar para terceiros: esses terceiros têm de querer adquirir essa produção. Caso isso não ocorra — isto é, caso as pessoas não se interessem por adquirir a sua produção —, você não será recompensado por isso. E, logo, não terá como demandar bens e serviços.
A produção, portanto, sempre será um ato inerentemente especulativo.
Em pequenos arranjos sociais, essa especulação normalmente não é muito difícil. Duas pessoas náufragas em uma ilha tropical, por exemplo, podem discutir antecipadamente o que cada uma fará e oferecerá para a outra. Em arranjos sociais mais amplos, formado por milhões de indivíduos, essa especulação é bem mais difícil. É aí que entra em cena o sistema de preços livres e de transações monetárias: para ajudar as pessoas a descobrirem o que as outras querem por meio dos sinais enviados pelo sistema de preços — que expressam as preferências dos consumidores, e mostram quais bens e serviços estão mais escassos e quais estão mais abundantes —, os quais permitem a criação do mecanismo de lucros e prejuízos.
Mas a essência especulativa não se altera: as pessoas produzem aquilo que julgam que as outras querem, na expectativa de que essas outras irão, em troca, fornecer aquilo que as primeiras querem.
A Lei de Say, portanto, pode ser descrita da seguinte maneira: o valor dos bens e serviços que qualquer indivíduo pode comprar é igual ao valor de mercado daquilo que ele pode ofertar. Ou, em um sentido macroeconômico agregado, o valor dos bens e serviços que qualquer grupo de pessoas pode comprar no agregado é igual ao valor de mercado daquilo que elas podem ofertar no agregado.
A Lei de Say, portanto, simplesmente expressa a realidade de que nós produzimos para poder consumir.
Sempre verdadeira
A Lei de Say sempre será verdadeira e para sempre permanecerá irrefutável porque ela se refere ao conceito subjetivo da valoração.
A oferta colocada no mercado sempre fornecerá o meio com o qual o ofertante poderá comprar outros bens e serviços — mas somente na mesma extensão do valor subjetivo atribuído pelos consumidores a essa oferta.
De novo: de nada adianta você produzir e ofertar bens e serviços que ninguém quer, ou bens e serviços cujo valor subjetivo atribuído a eles pelos consumidores seja nulo ou extremamente baixo. Isso não lhe dará poder de compra para satisfazer suas demandas.
No entanto, e este é o principal ponto, mesmo que esta oferta fracasse em criar qualquer poder de compra para seu ofertante — por ter sido considerada completamente sem valor de mercado, como cavar buracos no meio do nada —, isso não revogaria em nada a Lei de Say; ao contrário: seria mais uma manifestação dela própria.
Tal fenômeno também distingue a Lei de Say da teoria do valor-trabalho de Marx: Say reconhece o fato crucial de que o ato de produção, por si só, é insuficiente para criar poder de compra; só cria poder de compra o ato de produzir algo que é valorado por terceiros, os quais também produziram algo de valor no mercado e que, por isso, têm poder de compra e podem adquirir o que você produziu.
Em suma, não é a produção ou o trabalho o que interessam, mas sim o que é produzido e para quem.
Podemos agora entender por que David Ricardo disse que: "Nunca há uma deficiência de demanda; são os homens que erram em sua produção".
Ricardo estava se referindo ao grande debate sobre "excesso de oferta", travado no século XIX entre ele e Thomas Malthus, sobre a causa e a cura das recessões econômicas. Malthus defendia a ideia que viria a se tornar a essência do keynesianismo e da corrente econômica convencional: excesso de poupança e poucos gastos, dizem eles, causam um excesso de bens não-consumidos, o que significa que houve excesso de produção. Produtores ficam com mercadorias encalhadas, suas receitas entram em declínio e eles acabam tendo de demitir empregados. Ocorre uma recessão. Malthus, e posteriormente (e com mais ênfase) Keynes, defendem que poupar menos e gastar mais é a solução para recessões.
Mas a validade da Lei de Say mostra que a visão malthusiana-keynesiana está errada. Dado que a demanda é determinada apenas pelos produtos e serviços ofertados no mercado, erros empreendedoriais em grande escala (os quais são revelados na recessão) têm necessariamente de ser o resultado de erros — também em grande escala — cometidos pelos empreendedores, os quais especularam, erroneamente, que o valor de mercado que os consumidores atribuiriam a seus bens e serviços seria maior do que realmente acabaram sendo.
Ou seja, empreendedores — por vários motivos — imaginaram que os consumidores atribuiriam a seus bens e serviços valores maiores do que aquele que de fato foi atribuído. Não houve um 'excesso de produção'; houve, isso sim, um erro de cálculo quanto ao futuro valor de mercado dessa produção.
Esse tipo de erro empreendedorial coletivo ocorre tipicamente quando o governo embarca em uma política de crédito farto e barato, o qual gera um aumento temporário da renda disponível das pessoas, que então passam a consumir mais. Ludibriados por esse consumo maior — o qual foi causado pelo mero endividamento barato e não por um aumento genuíno da produção e da renda —, empreendedores passam a crer que haverá maior renda disponível no futuro, de modo que seus bens e serviços serão mais demandados, o que significa que poderão cobrar preços maiores. Mas tão logo essa expansão do crédito é interrompida, todo o cenário de aumento da renda se revela fictício e artificial, mostrando que nunca houve realmente um aumento da renda da população. Houve apenas endividamento. Consequentemente, seus bens e serviços não poderão ser vendidos pelo maior preço antecipado pelos empreendedores.
[Veja como toda essa teoria de fato ocorreu na prática no Brasil da última década].
Logo, se empreendedores erraram em sua estimativa e em sua produção — por qualquer motivo —, então a correção deve necessariamente passar pelo rearranjo dos esforços produtivos, isto é, pelo redirecionamento da estrutura de produção da economia, de modo a estimar mais corretamente os desejos dos consumidores e a melhor servi-los.
Isso envolve, entre outras coisas, o deslocamento de trabalhadores de um setor para o outro (o que causa um alto desemprego temporal) e a suspensão (ou mesmo a abolição) de determinadas linhas de produção (o que causa o fechamento de empresas e fábricas).
Esse diagnóstico da recessão é bastante diferente do diagnóstico keynesiano, que enfatiza que houve uma redução da demanda em decorrência de misteriosas flutuações no "espírito animal" dos empresários, o qual deve ser retificado por meio de mais expansão do crédito, mais endividamento e mais gastos governamentais.
No diagnóstico da Lei de Say, o governo deve remover ao máximo os obstáculos burocráticos e regulatórios para que os empreendedores possam rapidamente corrigir seus erros e descobrir quais bens e serviços os consumidores realmente querem (e podem comprar). Dado que o mecanismo de preços é a principal fonte de informação dos empreendedores, uma flexibilidade nos preços de mercado é essencial para uma rápida recuperação.
Adicionalmente, uma vez que recursos escassos foram mal alocados em empreendimentos para os quais nunca houve real demanda — o que significa que capital está sendo imobilizado de maneira destrutiva —, é necessário haver ainda mais poupança (e não menos) para que tais ativos possam ser adquiridos por novos investidores e, consequentemente, para que trabalhadores e empreendedores possam ser contratados nesta nova linha de produção.
Se o governo, no entanto, impedir essa correção por meio de política que estimulem a demanda, isso irá apenas subsidiar estes bens que foram produzidos a um custo muito alto. Consequentemente, os erros empresariais serão protegidos e blindados das preferências do consumidor. Os consumidores perderão e os empreendedores ineficientes são premiados. E a economia continuará desalinhada, com a oferta não sendo aquela demandada pelos consumidores.
Ao final, a produção estará em descompasso com a demanda, os empreendedores ruins continuarão no mercado consumindo recursos escassos (e, com isso, prejudicando os mais competentes), os consumidores terão menos poder, e a economia será menos eficiente.
A falta de lógica das políticas de estímulo ao consumo
É quando se entende esta lei básica que se percebe a falta de lógica de políticas de estímulo ao consumo — seja para estimular a economia ou para "curar" recessões.
Por definição, nunca há um "problema de demanda". Demandar é algo que ocorre naturalmente; demandar é intrínseco ao ser humano. A partir do momento em que você sai da cama até o momento em que você vai dormir você está demandando coisas. Demandar coisas é o impulso mais natural do ser humano. É impossível viver sem demandar. Por isso, a ideia de que é necessário "estimular a demanda" é completamente ilógica. A demanda é algo que ocorre naturalmente pelo simples fato de sermos humanos.
O problema não é e nem nunca foi "estimular a demanda". O grande problema sempre foi criar a oferta. Mais ainda: criar a oferta que sacie a demanda dos consumidores.
E, como explica a Lei de Say, é exatamente esta oferta o que permitirá ao ofertante auferir a renda que irá possibilitar a sua demanda.
No final, eis o fato incontornável: não é possível aumentar o consumo sem antes haver um aumento da produção. E para que haja um aumento da produção é necessário, acima de tudo, um ambiente que seja propício à produção. Na economia real, se o governo quiser realmente estimular uma maior produção — o que permitiria mais consumo e também crescimento econômico —, ele deveria adotar medidas propícias a facilitar a produção: redução da burocracia, redução das regulamentações, redução das incertezas geradas pelo governo, redução dos impostos, redução dos gastos públicos e, principalmente, maior poupança.
Exatamente o contrário do que propõem vários políticos demagogos e demais "especialistas" no assunto.
Conclusão
Agora é possível entender como a rejeição da Lei de Say — a alegação da dupla Keynes-Malthus de que a demanda gera a oferta, e não a oferta possibilita a demanda — explica como os economistas convencionais atuais pensam sobre a economia, sobre as causas e a cura de recessões, e como eles justificam recorrer ao gerenciamento centralizado do estado para resolver o "problema".
Se o ato racional e prudente de poupar leva a consequências sociais destrutivas, como diz o keynesianismo, então torna-se fácil recorrer a um corpo burocrático chamado 'estado' para impor medidas coercitivas para retificar este erro de mercado.
Se aceitarmos a falácia de que são as ações individuais virtuosas (como a poupança e a frugalidade), e não a intervenção estatal, que geram resultados sociais caóticos, então todas as maneiras de planejamento central podem ser justificadas não apenas em nome do benefício público, mas também como sendo fundamentalmente essenciais.
É a validade da Lei de Say que permanece sendo a guardiã da liberdade econômica e da prosperidade. Sem ela, todas as falácias econômicas passam a justificar a força estatal, a qual é amplificada em nome da salvação pública. E essa medida, como bem atesta a história, é o caminho garantido para a ruína civilizacional.
A Lei de Say continua sendo a guardiã da liberdade econômica, da prosperidade e até mesmo da própria civilização.
16 de julho de 2019
Russell Lamberti
é co-fundador do Instituto Ludwig von Mises da África do Sul e estrategista-chefe da firma de investimentos ETM Analytics. É também co-autor do livro When Money Destroys Nations. Mora em Joanesburgo.
comentários
1
O acordo comercial entre Mercosul e União Europeia expõe a insanidade do protecionismo
2
Eis a lei econômica irrefutável que é o antídoto para as mais populares falácias econômicas
3
Uma pequena amostra do socialismo brasileiro, em números
4
Hoje, a Finlândia. Amanhã, o mundo. As sociais-democracias em seu último suspiro
5
Progressistas, reacionários, histeria e a longa marcha gramsciana
6
Ninguém se preocupa com política e a pujança econômica está por todos os cantos: eis a Suíça
7
Um breve histórico da Venezuela: da quarta população mais rica do mundo à atual mendicância
8
A parábola dos talentos: a Bíblia, os empreendedores e a moralidade do lucro
9
Questão de lógica: você não teme a automação (e nem a reforma da previdência); você teme a inflação
10
Acreditar em ideias socialistas pode tornar você uma pessoa infeliz
11
Quando o capitalismo acaba e o socialismo triunfa, os direitos das mulheres são abolidos
12
O aquecimento global é uma fraude
13
Desejos não são direitos - eis uma maneira de distinguir o que é um direito e o que não é
14
O que significa ser um anarcocapitalista?
15
A mentalidade da esquerda e seus estragos sobre os mais pobres
16
Uma lição prática de economia real: o que houve com os ricaços da década de 1980?
17
Por que o socialismo sempre irá fracassar
18
Não, o “trabalho duro” (sozinho) não garante a prosperidade e não retira ninguém da pobreza
19
Uma lição de economia básica: João compra um carro de Pedro
20
O brasileiro é um povo fútil?
comentários (94)
Carlos Lima 08/03/2019 07:40
Excelente. Tudo muito óbvio, intuitivo, lógico. Eu havia acabado de reler o artigo de Per Bylund - A LEI DE SAY É IRREFUTÁVEL E, SOZINHA, DESTRÓI TODO O ARCABOUÇO KEYNESIANO (www.mises.org.br/Article.aspx?id=2721) -, que por sinal recomendo, e esse novo post esclareceu mais ainda sobre a importância e a necessidade de se entender a lei dos mercados.
Érika D. 08/03/2019 11:18
Esse instituto está precisando urgentemente de simplificar seu conteúdo para as massas. Recentemente conheci o Mises e desde então venho tentando ler todos os artigos, mas o tempo é o maior vilão. Eu não consigo debater e expressar para todos ao meu redor e muito menos responder a todos as perguntas que me fazem sobre a escola austríaca porque eu mesma não consigo me aprofundar e nem simplificar conteúdos tão complexos, especialmente porque nunca estudei economia na vida. Formei em Biologia e agora estou na faculdade de Direito, então vocês imaginam... Economia nunca será o forte do povão e nunca será motivo de debates calorosos num curso de pedagogia por exemplo. Eu acredito que está faltando ao Instituto Mises atingir a camada mais baixa da sociedade com conteúdos simplistas que explicam a realidade deles. Muita gente não sabe que pagam impostos quando comprar pão e leite! O Brasil está longe de entender sobre intervencionismo. Ficamos felizes a toa quando Guedes assumiu o ministério da economia porque ele não se comunica com o povão. É preciso lembrar que a escola austríaca só ficará conhecida se começarmos pelas ações (Mises) e que precisamos ser agitadores (Hayek). Mas não é sair pelas ruas gritando e sim explicando pra todos ao redor de forma simples e convincente. (A palavra "intervencionismo" não faz parte do vocabulário de muitos). Sugiro artigos feitos especialmente para leigos. Precisamos urgente de mais escola austríaca.
Estado o Defensor do Povo 08/03/2019 14:02
Poisé moça eu concordo contigo, mas também você tem que ver que o povão no Brasil é muito pobre, para obedecermos as leis econômicas teríamos que revogar muitas leis e benefícios trabalhistas, e o cara que já tá pobre ficaria apavorado se tal coisa acontecesse, ele não se importa com leis e livros, pra ele isso tudo é balela e o que importa mesmo é ele ter o salário e emprego garantido pelo Estado, o que aconteceria é que veríamos vários líderes populistas afirmando que essas leis são só invencionice e desculpa pra perpetuarmos o poder do rico, e o pobre compraria esse discurso e votaria nele, infelizmente, o que me deixa triste mesmo é vermos os nossos líderes cagando e andando pra essas leis, eles sim são pessoas mais estudadas (ou pelo menos é o que se espera, tem uns vereadores de interior que são semi-analfabetos) e que têm a obrigação de saber essas coisas, a democracia é um lobo disfarçado de pastor, que diz que irá salvar o povo, mas na verdade só devora ele.
Por que duas pessoas decidem, livre e voluntariamente, transacionar entre si?
Simples: porque elas acreditam que irão melhorar sua situação após a troca. Elas não fariam a troca caso esperassem ficar em pior situação.
E no que consiste essa transação livre e voluntária entre duas pessoas? Consiste no oferecimento mútuo de bens e serviços.
E este é o ponto crucial para entender aquele princípio que foi rotulado de Lei de Say. E esta lei explica os principais fenômenos da economia.
Por que você trabalha?
Ver uma transação econômica entre duas pessoas como um oferecimento mútuo de ambos os lados mostra que o fenômeno da oferta e da demanda não é um problema sem solução, como a charada do ovo e da galinha.
O indivíduo produz aquilo que, em sua melhor estimativa, imagina que outras pessoas irão querer consumir. E ele faz isso na expectativa de que essas outras estão produzindo ou irão produzir aquilo que ele quer consumir.
Falando mais coloquialmente, as pessoas acordam cedo e vão produzir (trabalhar) para tentar atender às demandas de terceiros. Caso sejam bem-sucedidas em atender a demanda de terceiros, elas serão recompensadas (remuneradas) por isso. Essa remuneração irá agora lhes permitir demandar bens e serviços para satisfação própria.
As pessoas trabalham em troca de dinheiro não pelo dinheiro em si próprio. Como diz o ditado, você não pode "comer dinheiro". Você demanda dinheiro por causa dos bens e serviços que poderá obter com esse dinheiro.
Ou seja, ao produzir e ofertar para terceiros, e consequentemente ganhar dinheiro, você pode agora utilizar esse dinheiro para demandar bens e serviços para proveito próprio.
Obviamente, de nada adianta apenas produzir e ofertar para terceiros: esses terceiros têm de querer adquirir essa produção. Caso isso não ocorra — isto é, caso as pessoas não se interessem por adquirir a sua produção —, você não será recompensado por isso. E, logo, não terá como demandar bens e serviços.
A produção, portanto, sempre será um ato inerentemente especulativo.
Em pequenos arranjos sociais, essa especulação normalmente não é muito difícil. Duas pessoas náufragas em uma ilha tropical, por exemplo, podem discutir antecipadamente o que cada uma fará e oferecerá para a outra. Em arranjos sociais mais amplos, formado por milhões de indivíduos, essa especulação é bem mais difícil. É aí que entra em cena o sistema de preços livres e de transações monetárias: para ajudar as pessoas a descobrirem o que as outras querem por meio dos sinais enviados pelo sistema de preços — que expressam as preferências dos consumidores, e mostram quais bens e serviços estão mais escassos e quais estão mais abundantes —, os quais permitem a criação do mecanismo de lucros e prejuízos.
Mas a essência especulativa não se altera: as pessoas produzem aquilo que julgam que as outras querem, na expectativa de que essas outras irão, em troca, fornecer aquilo que as primeiras querem.
A Lei de Say, portanto, pode ser descrita da seguinte maneira: o valor dos bens e serviços que qualquer indivíduo pode comprar é igual ao valor de mercado daquilo que ele pode ofertar. Ou, em um sentido macroeconômico agregado, o valor dos bens e serviços que qualquer grupo de pessoas pode comprar no agregado é igual ao valor de mercado daquilo que elas podem ofertar no agregado.
A Lei de Say, portanto, simplesmente expressa a realidade de que nós produzimos para poder consumir.
Sempre verdadeira
A Lei de Say sempre será verdadeira e para sempre permanecerá irrefutável porque ela se refere ao conceito subjetivo da valoração.
A oferta colocada no mercado sempre fornecerá o meio com o qual o ofertante poderá comprar outros bens e serviços — mas somente na mesma extensão do valor subjetivo atribuído pelos consumidores a essa oferta.
De novo: de nada adianta você produzir e ofertar bens e serviços que ninguém quer, ou bens e serviços cujo valor subjetivo atribuído a eles pelos consumidores seja nulo ou extremamente baixo. Isso não lhe dará poder de compra para satisfazer suas demandas.
No entanto, e este é o principal ponto, mesmo que esta oferta fracasse em criar qualquer poder de compra para seu ofertante — por ter sido considerada completamente sem valor de mercado, como cavar buracos no meio do nada —, isso não revogaria em nada a Lei de Say; ao contrário: seria mais uma manifestação dela própria.
Tal fenômeno também distingue a Lei de Say da teoria do valor-trabalho de Marx: Say reconhece o fato crucial de que o ato de produção, por si só, é insuficiente para criar poder de compra; só cria poder de compra o ato de produzir algo que é valorado por terceiros, os quais também produziram algo de valor no mercado e que, por isso, têm poder de compra e podem adquirir o que você produziu.
Em suma, não é a produção ou o trabalho o que interessam, mas sim o que é produzido e para quem.
Podemos agora entender por que David Ricardo disse que: "Nunca há uma deficiência de demanda; são os homens que erram em sua produção".
Ricardo estava se referindo ao grande debate sobre "excesso de oferta", travado no século XIX entre ele e Thomas Malthus, sobre a causa e a cura das recessões econômicas. Malthus defendia a ideia que viria a se tornar a essência do keynesianismo e da corrente econômica convencional: excesso de poupança e poucos gastos, dizem eles, causam um excesso de bens não-consumidos, o que significa que houve excesso de produção. Produtores ficam com mercadorias encalhadas, suas receitas entram em declínio e eles acabam tendo de demitir empregados. Ocorre uma recessão. Malthus, e posteriormente (e com mais ênfase) Keynes, defendem que poupar menos e gastar mais é a solução para recessões.
Mas a validade da Lei de Say mostra que a visão malthusiana-keynesiana está errada. Dado que a demanda é determinada apenas pelos produtos e serviços ofertados no mercado, erros empreendedoriais em grande escala (os quais são revelados na recessão) têm necessariamente de ser o resultado de erros — também em grande escala — cometidos pelos empreendedores, os quais especularam, erroneamente, que o valor de mercado que os consumidores atribuiriam a seus bens e serviços seria maior do que realmente acabaram sendo.
Ou seja, empreendedores — por vários motivos — imaginaram que os consumidores atribuiriam a seus bens e serviços valores maiores do que aquele que de fato foi atribuído. Não houve um 'excesso de produção'; houve, isso sim, um erro de cálculo quanto ao futuro valor de mercado dessa produção.
Esse tipo de erro empreendedorial coletivo ocorre tipicamente quando o governo embarca em uma política de crédito farto e barato, o qual gera um aumento temporário da renda disponível das pessoas, que então passam a consumir mais. Ludibriados por esse consumo maior — o qual foi causado pelo mero endividamento barato e não por um aumento genuíno da produção e da renda —, empreendedores passam a crer que haverá maior renda disponível no futuro, de modo que seus bens e serviços serão mais demandados, o que significa que poderão cobrar preços maiores. Mas tão logo essa expansão do crédito é interrompida, todo o cenário de aumento da renda se revela fictício e artificial, mostrando que nunca houve realmente um aumento da renda da população. Houve apenas endividamento. Consequentemente, seus bens e serviços não poderão ser vendidos pelo maior preço antecipado pelos empreendedores.
[Veja como toda essa teoria de fato ocorreu na prática no Brasil da última década].
Logo, se empreendedores erraram em sua estimativa e em sua produção — por qualquer motivo —, então a correção deve necessariamente passar pelo rearranjo dos esforços produtivos, isto é, pelo redirecionamento da estrutura de produção da economia, de modo a estimar mais corretamente os desejos dos consumidores e a melhor servi-los.
Isso envolve, entre outras coisas, o deslocamento de trabalhadores de um setor para o outro (o que causa um alto desemprego temporal) e a suspensão (ou mesmo a abolição) de determinadas linhas de produção (o que causa o fechamento de empresas e fábricas).
Esse diagnóstico da recessão é bastante diferente do diagnóstico keynesiano, que enfatiza que houve uma redução da demanda em decorrência de misteriosas flutuações no "espírito animal" dos empresários, o qual deve ser retificado por meio de mais expansão do crédito, mais endividamento e mais gastos governamentais.
No diagnóstico da Lei de Say, o governo deve remover ao máximo os obstáculos burocráticos e regulatórios para que os empreendedores possam rapidamente corrigir seus erros e descobrir quais bens e serviços os consumidores realmente querem (e podem comprar). Dado que o mecanismo de preços é a principal fonte de informação dos empreendedores, uma flexibilidade nos preços de mercado é essencial para uma rápida recuperação.
Adicionalmente, uma vez que recursos escassos foram mal alocados em empreendimentos para os quais nunca houve real demanda — o que significa que capital está sendo imobilizado de maneira destrutiva —, é necessário haver ainda mais poupança (e não menos) para que tais ativos possam ser adquiridos por novos investidores e, consequentemente, para que trabalhadores e empreendedores possam ser contratados nesta nova linha de produção.
Se o governo, no entanto, impedir essa correção por meio de política que estimulem a demanda, isso irá apenas subsidiar estes bens que foram produzidos a um custo muito alto. Consequentemente, os erros empresariais serão protegidos e blindados das preferências do consumidor. Os consumidores perderão e os empreendedores ineficientes são premiados. E a economia continuará desalinhada, com a oferta não sendo aquela demandada pelos consumidores.
Ao final, a produção estará em descompasso com a demanda, os empreendedores ruins continuarão no mercado consumindo recursos escassos (e, com isso, prejudicando os mais competentes), os consumidores terão menos poder, e a economia será menos eficiente.
A falta de lógica das políticas de estímulo ao consumo
É quando se entende esta lei básica que se percebe a falta de lógica de políticas de estímulo ao consumo — seja para estimular a economia ou para "curar" recessões.
Por definição, nunca há um "problema de demanda". Demandar é algo que ocorre naturalmente; demandar é intrínseco ao ser humano. A partir do momento em que você sai da cama até o momento em que você vai dormir você está demandando coisas. Demandar coisas é o impulso mais natural do ser humano. É impossível viver sem demandar. Por isso, a ideia de que é necessário "estimular a demanda" é completamente ilógica. A demanda é algo que ocorre naturalmente pelo simples fato de sermos humanos.
O problema não é e nem nunca foi "estimular a demanda". O grande problema sempre foi criar a oferta. Mais ainda: criar a oferta que sacie a demanda dos consumidores.
E, como explica a Lei de Say, é exatamente esta oferta o que permitirá ao ofertante auferir a renda que irá possibilitar a sua demanda.
No final, eis o fato incontornável: não é possível aumentar o consumo sem antes haver um aumento da produção. E para que haja um aumento da produção é necessário, acima de tudo, um ambiente que seja propício à produção. Na economia real, se o governo quiser realmente estimular uma maior produção — o que permitiria mais consumo e também crescimento econômico —, ele deveria adotar medidas propícias a facilitar a produção: redução da burocracia, redução das regulamentações, redução das incertezas geradas pelo governo, redução dos impostos, redução dos gastos públicos e, principalmente, maior poupança.
Exatamente o contrário do que propõem vários políticos demagogos e demais "especialistas" no assunto.
Conclusão
Agora é possível entender como a rejeição da Lei de Say — a alegação da dupla Keynes-Malthus de que a demanda gera a oferta, e não a oferta possibilita a demanda — explica como os economistas convencionais atuais pensam sobre a economia, sobre as causas e a cura de recessões, e como eles justificam recorrer ao gerenciamento centralizado do estado para resolver o "problema".
Se o ato racional e prudente de poupar leva a consequências sociais destrutivas, como diz o keynesianismo, então torna-se fácil recorrer a um corpo burocrático chamado 'estado' para impor medidas coercitivas para retificar este erro de mercado.
Se aceitarmos a falácia de que são as ações individuais virtuosas (como a poupança e a frugalidade), e não a intervenção estatal, que geram resultados sociais caóticos, então todas as maneiras de planejamento central podem ser justificadas não apenas em nome do benefício público, mas também como sendo fundamentalmente essenciais.
É a validade da Lei de Say que permanece sendo a guardiã da liberdade econômica e da prosperidade. Sem ela, todas as falácias econômicas passam a justificar a força estatal, a qual é amplificada em nome da salvação pública. E essa medida, como bem atesta a história, é o caminho garantido para a ruína civilizacional.
A Lei de Say continua sendo a guardiã da liberdade econômica, da prosperidade e até mesmo da própria civilização.
16 de julho de 2019
Russell Lamberti
é co-fundador do Instituto Ludwig von Mises da África do Sul e estrategista-chefe da firma de investimentos ETM Analytics. É também co-autor do livro When Money Destroys Nations. Mora em Joanesburgo.
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1
O acordo comercial entre Mercosul e União Europeia expõe a insanidade do protecionismo
2
Eis a lei econômica irrefutável que é o antídoto para as mais populares falácias econômicas
3
Uma pequena amostra do socialismo brasileiro, em números
4
Hoje, a Finlândia. Amanhã, o mundo. As sociais-democracias em seu último suspiro
5
Progressistas, reacionários, histeria e a longa marcha gramsciana
6
Ninguém se preocupa com política e a pujança econômica está por todos os cantos: eis a Suíça
7
Um breve histórico da Venezuela: da quarta população mais rica do mundo à atual mendicância
8
A parábola dos talentos: a Bíblia, os empreendedores e a moralidade do lucro
9
Questão de lógica: você não teme a automação (e nem a reforma da previdência); você teme a inflação
10
Acreditar em ideias socialistas pode tornar você uma pessoa infeliz
11
Quando o capitalismo acaba e o socialismo triunfa, os direitos das mulheres são abolidos
12
O aquecimento global é uma fraude
13
Desejos não são direitos - eis uma maneira de distinguir o que é um direito e o que não é
14
O que significa ser um anarcocapitalista?
15
A mentalidade da esquerda e seus estragos sobre os mais pobres
16
Uma lição prática de economia real: o que houve com os ricaços da década de 1980?
17
Por que o socialismo sempre irá fracassar
18
Não, o “trabalho duro” (sozinho) não garante a prosperidade e não retira ninguém da pobreza
19
Uma lição de economia básica: João compra um carro de Pedro
20
O brasileiro é um povo fútil?
comentários (94)
Carlos Lima 08/03/2019 07:40
Excelente. Tudo muito óbvio, intuitivo, lógico. Eu havia acabado de reler o artigo de Per Bylund - A LEI DE SAY É IRREFUTÁVEL E, SOZINHA, DESTRÓI TODO O ARCABOUÇO KEYNESIANO (www.mises.org.br/Article.aspx?id=2721) -, que por sinal recomendo, e esse novo post esclareceu mais ainda sobre a importância e a necessidade de se entender a lei dos mercados.
Érika D. 08/03/2019 11:18
Esse instituto está precisando urgentemente de simplificar seu conteúdo para as massas. Recentemente conheci o Mises e desde então venho tentando ler todos os artigos, mas o tempo é o maior vilão. Eu não consigo debater e expressar para todos ao meu redor e muito menos responder a todos as perguntas que me fazem sobre a escola austríaca porque eu mesma não consigo me aprofundar e nem simplificar conteúdos tão complexos, especialmente porque nunca estudei economia na vida. Formei em Biologia e agora estou na faculdade de Direito, então vocês imaginam... Economia nunca será o forte do povão e nunca será motivo de debates calorosos num curso de pedagogia por exemplo. Eu acredito que está faltando ao Instituto Mises atingir a camada mais baixa da sociedade com conteúdos simplistas que explicam a realidade deles. Muita gente não sabe que pagam impostos quando comprar pão e leite! O Brasil está longe de entender sobre intervencionismo. Ficamos felizes a toa quando Guedes assumiu o ministério da economia porque ele não se comunica com o povão. É preciso lembrar que a escola austríaca só ficará conhecida se começarmos pelas ações (Mises) e que precisamos ser agitadores (Hayek). Mas não é sair pelas ruas gritando e sim explicando pra todos ao redor de forma simples e convincente. (A palavra "intervencionismo" não faz parte do vocabulário de muitos). Sugiro artigos feitos especialmente para leigos. Precisamos urgente de mais escola austríaca.
Estado o Defensor do Povo 08/03/2019 14:02
Poisé moça eu concordo contigo, mas também você tem que ver que o povão no Brasil é muito pobre, para obedecermos as leis econômicas teríamos que revogar muitas leis e benefícios trabalhistas, e o cara que já tá pobre ficaria apavorado se tal coisa acontecesse, ele não se importa com leis e livros, pra ele isso tudo é balela e o que importa mesmo é ele ter o salário e emprego garantido pelo Estado, o que aconteceria é que veríamos vários líderes populistas afirmando que essas leis são só invencionice e desculpa pra perpetuarmos o poder do rico, e o pobre compraria esse discurso e votaria nele, infelizmente, o que me deixa triste mesmo é vermos os nossos líderes cagando e andando pra essas leis, eles sim são pessoas mais estudadas (ou pelo menos é o que se espera, tem uns vereadores de interior que são semi-analfabetos) e que têm a obrigação de saber essas coisas, a democracia é um lobo disfarçado de pastor, que diz que irá salvar o povo, mas na verdade só devora ele.
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