"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quinta-feira, 29 de março de 2018

A REPÚBLICA DESNUDA

Os três poderes são irmãos xifópagos, por inclinação e temperamento. São filhos da mesma casta que controla e utiliza o Estado

As águas de março fizeram o Judiciário navegar e encalhar no mesmo brejal em que já estavam metidos e atolados o Executivo e o Legislativo, na medida em que aquele desvelou ser exatamente como os dois outros poderes. Isso se mostra quando o assunto é manter privilégios e criar benesses com o dinheiro dos cidadãos, contemporizar com os seus e condescender com alguns.

No último dia 15, um bom número de juízes federais e um punhado de juízes do Trabalho resolveram simplesmente não cumprir com seus ofícios, dando as costas aos cidadãos e advogados, para pressionar os juízes da suprema corte. Juízes a constranger juízes. Inaceitável é pouco. Intolerável é o menos.

A sonegação da judicatura por um dia, sem rodeios, foi o meio e o modo que as associações dos magistrados encontraram à advertência do seus superiores, lá do Supremo Tribunal Federal, para que não cortassem (na sessão de julgamento designada para o dia 22) o “auxílio-moradia”. Em 2014, ato isolado de um seu ministro, Luiz Fux, “universalizou” a todos os magistrados (federais, trabalhistas, estaduais e militares) um pagamento mensal de R$ 4.377 limpinhos, sem impostos, com fundamento em uma lei complementar de 1979.

É dizer, em clara prestidigitação – nome chique para ilusionismo –, uma liminar (sempre precária) do ministro Fux logrou ver, na balzaquiana lei, o que a míope sociedade não percebera desde 1979 e, abracadabra, pôs no bolso de cada magistrado brasileiro mais de R$ 4 mil, mês a mês e desde 2014. Passou a espetar no dinheiro público uma conta de mais de R$ 5 bilhões, desde então, quando desde é igual a 2014, e então é 2018.

A sociedade está órfã, pois perdeu interlocutores que muito lhe ajudaram no passado, como a ABI, a CNBB e a OAB

E, como tudo o que é bom para os juízes também é bom para os procuradores, sob o elegante nome de “simetria” que, na boa lógica, equivale à “propriedade da relação que, afirmada entre A e B, pode ser afirmada entre B e A, sem transformação”. O que uma categoria pega a outra se apega.

E o que aconteceu? No dia 22, o ministro Fux, em seu fluente “carioquês”, ao ser interpelado pelo ministro Gilmar Mendes, comunicou à corte que, por conta própria, retirara de pauta o assunto do auxílio-moradia, ante um pedido das associações de classe (de juízes e procuradores) e da Advocacia-Geral da União – que insinuaram manejar o assunto em uma arbitragem –, antecipando o ministro Fux, na sua mambembe justificativa, que há “um débito constitucional da União para com os juízes”. Em um português bem inteligível, quer dizer: fica minha liminar (dada em 2014) até que os interesses corporativos sejam atendidos...

Dinheiro público, precisa ser dito e redito, vem do público privado, pessoas e empresas, que produzem riquezas e pagam impostos para sustentar o Estado e seus servidores.

Deu-se um “jeitinho” de continuar a gastança, que passa de R$ 5 bilhões, por mais alguns meses ou anos. Melhor contar estes em pencas de 12...

Em 21 de março, um dia antes de o Supremo empurrar para baixo do tapete o seu dever de julgar o auxílio-moradia, que queima bilhões e está pendurado em uma liminar dada em 2014, os brasileiros viram e ouviram um diálogo entre pares até então inédito nos quase 200 anos de história do STF (originalmente denominado Supremo Tribunal de Justiça). Durante o embate, veio a revelação de que, entre os 11 membros, há um ministro psicopata e outro ministro advogado militante.

Ou seja, alguns componentes da mais alta corte de Justiça, o secular Supremo Tribunal Federal, não se submetem à serenidade e à urbanidade. Afinal, são comportamentos comezinhos para quem exerce a mais proeminente função judicial, a de bem interpretar a Constituição Federal e a de assegurar a incolumidade do Estado Democrático de Direito.

Fique claríssimo aos cidadãos brasileiros: todos os juízes estão submetidos à Lei Orgânica da Magistratura Nacional. E ela lhes impõe e exige, além de sereno e urbano agir, o conduzir-se de modo irrepreensível, na vida pública e particular, seja um juiz substituto, seja um ministro.

Não fosse bastante e muito, na mesma sessão do dia 22, quando o auxílio-moradia não foi julgado e sim “negociado”, como fruto de uma paralisação de serviços inexpressiva por parte de alguns juízes, e um dia depois de os brasileiros saberem que há ministros adoentados e advogando administrativamente, o Judiciário fez outra à sociedade.

Em meio a uma sessão longa, o que é absolutamente comum em todos os tribunais brasileiros, e quando tratava de questão singela – aplicar o precedente da própria corte e que houvera sido adotado com o prestígio de “repercussão geral” –, eis que um ministro, exibindo um reles cartão de embarque, despede-se da sessão, pois tinha compromisso importante a cumprir no dia seguinte. A internet expõe a agenda: palestrar às 10h30 do dia seguinte no Rio de Janeiro, em um evento que duraria o dia todo. Não é inadequado supor, para quem frequenta congressos, as naturais acomodações de horários quando um palestrante – ainda mais tão ilustre quanto um ministro – não chega a tempo. Fala mais tarde e o auditório fica cheio, sempre.

O despotismo hoje é outro e se manifesta pelos que personificam o Estado e viram as costas à sociedade

Com a sua saída, a corte descontinuou a sessão, fundada no cansaço, e concedeu um “salvo-conduto”, com prazo de validade até o dia 4 de abril, para um paciente que impetrara um habeas corpus. Fez a corte muito bem, pois, se ela tem cansaço, o paciente não tem culpa, e assim deve ficar a salvo de tribunais quasímodos. Parafraseio o ministro Marco Aurélio: “processo não tem capa, tem conteúdo”. Assim, na lata.

O ministro que voa e a corte que se cansa com as lidas, como costuma acontecer, fez o imaginário social também viajar e deitar olhos críticos à magistratura brasileira, com ênfase em suas sinecuras e benesses: férias de 60 dias; recesso de 18 dias (de 20 de dezembro a 6 de janeiro) aos juízes federais e mais 30 dias (em janeiro) aos ministros das cortes federais (em janeiro, as cortes federais em Brasília ficam em recesso); e um sem-número de penduricalhos como auxílios-moradia, alimentação, transporte, escola e quejandos.

No Paraná, nas águas de março, o Tribunal de Justiça encaminhou à Assembleia Legislativa um anteprojeto que pretende gratificar os juízes que integrem comissões, dirijam fóruns e quetais. Voltando às associações de classe (magistrados, procuradores e afins), em regra, quem as dirige não exerce o ofício, pois são pagos – com todos os benefícios – pelo dinheiro público que advém dos impostos tomados dos particulares, como se “fazendo justiça” estivessem.

Os três poderes são irmãos xifópagos, por inclinação e temperamento. São filhos da mesma casta que controla e utiliza o Estado.

A sociedade está órfã, pois perdeu interlocutores que muito lhe ajudaram nos tempos da ditadura militar, dentre eles a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Eram outros tempos, eram outros os condutores. Quem não se recorda, por ter vivido ou estudado, da autoridade intelectual e moral de um Barbosa Lima Sobrinho, um Ivo Lorscheiter e um Raymundo Faoro? Também foram bons coadjuvantes os conselhos de profissões, os sindicatos e as universidades, sem dúvida.

O despotismo hoje é outro e se manifesta pelos que personificam o Estado e viram as costas à sociedade.

As águas de março ficaram mais turvas, sim, mas não será “é pau, é pedra, é o fim do caminho”, como poetava Tom Jobim.

Constituição debaixo do braço, vamos à liça, para que saiamos o quanto antes do estabelecido “finge que me engana que eu finjo que acredito”.

A república está nua e, pior, feia, com a devida vênia.


29 de março de 2018
Gazeta do Povo, PR
Hélio Gomes Coelho Júnior, advogado e professor da Escola de Direito da PUCPR, é presidente do Instituto dos Advogados do Paraná (IAP) e vice-presidente do Colégio de Presidentes dos Institutos dos Advogados Brasileiros.

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