A briga destrutiva entre Poderes, para tudo o que diz respeito ao País real, não terá vencedores
O Brasil está exausto de saber que “o sistema” está falido e é preciso mudar tudo. Mas dessa constatação em diante é só escuridão.
“Na crise, de volta ao básico.” É preciso lembrar todos os dias que não existe alternativa à fórmula dos três Poderes independentes respaldados na vontade popular expressa pelo voto universal convivendo harmonicamente. Fora daí se regride ao monarca absoluto. A História não registra outra hipótese.
A “narrativa”, no momento, é a dos Poderes Legislativo e Executivo desmoralizados pela corrupção e encurralados por um Poder Judiciário impoluto batalhando pela reforma dos costumes daqueles perdidos. Mas ela não para um minuto em pé. O sistema inteiro está cevado na corrupção e no privilégio, o Judiciário inclusive e principalmente, só que a blindagem “inata” desse Poder contra investigações externas e pressões diretas do eleitorado mantém suas próprias mazelas fora das manchetes e essa é a conjunção de fatores que o “elege” como o protagonista ideal dos golpes contra a democracia a que assistimos neste continente. O País real, paralisado pelo medo de que as ambições à solta façam tudo degringolar irreversivelmente, sabe que essa briga não é a sua e por isso se mantém fora dela.
A discussão da questão “técnica” supostamente envolvida – o STF deveria ou não ser só uma Corte constitucional? – também é ociosa. Na matriz que inventou esse sistema a Constituição, com 230 anos, tem 7 artigos e 27 emendas estabelecendo os direitos de todos e os limites precisos das prerrogativas do governo. A nossa, com apenas 29 anos, tem por enquanto 250 artigos e 96 emendas, a maioria definindo exceções aos direitos de todos e os privilégios dos titulares do governo e seus servidores e apaniguados. A consequência resumida disso é que se gastam 11% da metade do PIB arrecadada em impostos por ano com funcionários da ativa e outros quase 58% (!!) com funcionários aposentados pela simples e escandalosa razão de que outorgar o “direito” de ganhar sem trabalhar é a moeda com que se compra poder neste país. Por isso o funcionalismo – e por cima dele a casta dos “marajás” de até R$ 500 mil por mês, constituída por membros do Judiciário e do Ministério Público – tem aposentadorias precoces, o que faz com que o número de inativos se multiplique na velocidade dos avanços da medicina, e com proventos médios entre 6 vezes (os do Executivo) e 23 vezes (os do Judiciário e Ministério Público) maiores que os dos brasileiros comuns.
Esse é o problema real!
Todas as distorções das nossas instituições, assim como toda a corrupção que está aí, giram em torno desse poder de distribuir e “legalizar” mais e mais formas de apropriação ilícita do dinheiro público. Só que, como os protagonistas da discussão do resultado disso, na esmagadora maioria – promotores, juízes, políticos, “especialistas” (professores das universidades públicas, ex-ministros do STF, etc.), além de boa parte dos jornalistas –, são, eles próprios ou seus pais, filhos e cônjuges, os clientes desses privilégios, todos hesitam em ser suficientemente claros a esse respeito. É isso, mais o que se “aprende” nas nossas escolas, que mantém o País na desorientação em que está.
As delações premiadas foram boas para destravar os ventos da mudança. Mas logo “o sistema” aprendeu a usá-las para desviar a atenção da evidência maior de que o texto da Constituição e a instrumentalização da lei, muito mais que as violações delas, é que estão matando o País ao legalizar e automatizar parcelas crescentes do assalto sistemático à riqueza da Nação.
Há mais de cem anos as democracias entenderam que na vida real manda quem tem o poder de demitir. O direito de eleger (ou de contratar) desassociado do poder de deseleger (ou demitir) a qualquer momento só conduz à corrupção galopante dos representantes (e dos servidores públicos), como já ficara provado mil anos antes na experiência romana. Por isso elas incorporaram a solução suíça de, num ambiente de estrito respeito ao princípio federalista, dividir o eleitorado em distritos, amarrar todas as ações de governo da vida comunitária aos municípios e dar aos eleitores, em cada um deles, plenos poderes para fazer e desfazer suas próprias leis, chancelar as do Legislativo mediante referendos e retomar a qualquer momento o mandato de seus representantes. Essa combinação – plenos poderes para o eleitor, mas com um alcance “geográfico” restrito – mudou tudo. Resultou num remédio contra a corrupção tão potente que deixou ricos todos quantos o adotaram sem aumentar a instabilidade da nação.
A perna que falta para que o Brasil se reequilibre é ligar o fio terra da nossa democracia na única fonte que pode legitimá-la. Essa briga destrutiva entre Poderes, para tudo quanto diz respeito ao País real, não terá vencedores.
Na receita de Montesquieu o Judiciário não faz nem modifica leis, só executa as que o Legislativo eleito pelo povo escreve. A questão objetiva, portanto, é como mudar o que está aí sem destruir as instituições para as quais a alternativa é a opressão. Se quiser reformar-se dentro da e para a democracia, o Brasil terá de criar caminhos para fazê-lo dentro do e através do Legislativo. Tornar ilegais comportamentos que já foram legais é o caminho, desde que se tenha em vista um futuro ao qual todos possam aderir na negociação de um projeto de salvação nacional. Fazer leis retroativas é amarrar o País a um passado que não pode ser mudado apenas para encurralar adversários na disputa pelo direito de nos explorar.
A chance de ressurreição da democracia brasileira depende de o Legislativo retomar a iniciativa. E isso só se pode dar cooptando o povo para uma batalha decisiva por um futuro sem privilégios. Para essa briga, entretanto – Temer é a prova –, não há meio-termo. É tudo ou nada. Ou se desnuda de uma vez por todas essa esfinge de araque no meio da praça pública, ou ela continuará jantando os trouxas dentro e fora do “sistema”.
Fernão Lara Mesquita, Estadão
Jornalista
O Brasil está exausto de saber que “o sistema” está falido e é preciso mudar tudo. Mas dessa constatação em diante é só escuridão.
“Na crise, de volta ao básico.” É preciso lembrar todos os dias que não existe alternativa à fórmula dos três Poderes independentes respaldados na vontade popular expressa pelo voto universal convivendo harmonicamente. Fora daí se regride ao monarca absoluto. A História não registra outra hipótese.
A “narrativa”, no momento, é a dos Poderes Legislativo e Executivo desmoralizados pela corrupção e encurralados por um Poder Judiciário impoluto batalhando pela reforma dos costumes daqueles perdidos. Mas ela não para um minuto em pé. O sistema inteiro está cevado na corrupção e no privilégio, o Judiciário inclusive e principalmente, só que a blindagem “inata” desse Poder contra investigações externas e pressões diretas do eleitorado mantém suas próprias mazelas fora das manchetes e essa é a conjunção de fatores que o “elege” como o protagonista ideal dos golpes contra a democracia a que assistimos neste continente. O País real, paralisado pelo medo de que as ambições à solta façam tudo degringolar irreversivelmente, sabe que essa briga não é a sua e por isso se mantém fora dela.
A discussão da questão “técnica” supostamente envolvida – o STF deveria ou não ser só uma Corte constitucional? – também é ociosa. Na matriz que inventou esse sistema a Constituição, com 230 anos, tem 7 artigos e 27 emendas estabelecendo os direitos de todos e os limites precisos das prerrogativas do governo. A nossa, com apenas 29 anos, tem por enquanto 250 artigos e 96 emendas, a maioria definindo exceções aos direitos de todos e os privilégios dos titulares do governo e seus servidores e apaniguados. A consequência resumida disso é que se gastam 11% da metade do PIB arrecadada em impostos por ano com funcionários da ativa e outros quase 58% (!!) com funcionários aposentados pela simples e escandalosa razão de que outorgar o “direito” de ganhar sem trabalhar é a moeda com que se compra poder neste país. Por isso o funcionalismo – e por cima dele a casta dos “marajás” de até R$ 500 mil por mês, constituída por membros do Judiciário e do Ministério Público – tem aposentadorias precoces, o que faz com que o número de inativos se multiplique na velocidade dos avanços da medicina, e com proventos médios entre 6 vezes (os do Executivo) e 23 vezes (os do Judiciário e Ministério Público) maiores que os dos brasileiros comuns.
Esse é o problema real!
Todas as distorções das nossas instituições, assim como toda a corrupção que está aí, giram em torno desse poder de distribuir e “legalizar” mais e mais formas de apropriação ilícita do dinheiro público. Só que, como os protagonistas da discussão do resultado disso, na esmagadora maioria – promotores, juízes, políticos, “especialistas” (professores das universidades públicas, ex-ministros do STF, etc.), além de boa parte dos jornalistas –, são, eles próprios ou seus pais, filhos e cônjuges, os clientes desses privilégios, todos hesitam em ser suficientemente claros a esse respeito. É isso, mais o que se “aprende” nas nossas escolas, que mantém o País na desorientação em que está.
As delações premiadas foram boas para destravar os ventos da mudança. Mas logo “o sistema” aprendeu a usá-las para desviar a atenção da evidência maior de que o texto da Constituição e a instrumentalização da lei, muito mais que as violações delas, é que estão matando o País ao legalizar e automatizar parcelas crescentes do assalto sistemático à riqueza da Nação.
Há mais de cem anos as democracias entenderam que na vida real manda quem tem o poder de demitir. O direito de eleger (ou de contratar) desassociado do poder de deseleger (ou demitir) a qualquer momento só conduz à corrupção galopante dos representantes (e dos servidores públicos), como já ficara provado mil anos antes na experiência romana. Por isso elas incorporaram a solução suíça de, num ambiente de estrito respeito ao princípio federalista, dividir o eleitorado em distritos, amarrar todas as ações de governo da vida comunitária aos municípios e dar aos eleitores, em cada um deles, plenos poderes para fazer e desfazer suas próprias leis, chancelar as do Legislativo mediante referendos e retomar a qualquer momento o mandato de seus representantes. Essa combinação – plenos poderes para o eleitor, mas com um alcance “geográfico” restrito – mudou tudo. Resultou num remédio contra a corrupção tão potente que deixou ricos todos quantos o adotaram sem aumentar a instabilidade da nação.
A perna que falta para que o Brasil se reequilibre é ligar o fio terra da nossa democracia na única fonte que pode legitimá-la. Essa briga destrutiva entre Poderes, para tudo quanto diz respeito ao País real, não terá vencedores.
Na receita de Montesquieu o Judiciário não faz nem modifica leis, só executa as que o Legislativo eleito pelo povo escreve. A questão objetiva, portanto, é como mudar o que está aí sem destruir as instituições para as quais a alternativa é a opressão. Se quiser reformar-se dentro da e para a democracia, o Brasil terá de criar caminhos para fazê-lo dentro do e através do Legislativo. Tornar ilegais comportamentos que já foram legais é o caminho, desde que se tenha em vista um futuro ao qual todos possam aderir na negociação de um projeto de salvação nacional. Fazer leis retroativas é amarrar o País a um passado que não pode ser mudado apenas para encurralar adversários na disputa pelo direito de nos explorar.
A chance de ressurreição da democracia brasileira depende de o Legislativo retomar a iniciativa. E isso só se pode dar cooptando o povo para uma batalha decisiva por um futuro sem privilégios. Para essa briga, entretanto – Temer é a prova –, não há meio-termo. É tudo ou nada. Ou se desnuda de uma vez por todas essa esfinge de araque no meio da praça pública, ou ela continuará jantando os trouxas dentro e fora do “sistema”.
Fernão Lara Mesquita, Estadão
Jornalista
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