"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

TEMPO DE VERGONHA NO SUPREMO

Brada a ignorância que transforma em justiceiros magistrados cujos juízos declaradamente têm a ideia popular (e autoritária) de ética, e não o texto legal, como norte

Direitos políticos são direitos fundamentais. O direito de se candidatar a cargo eletivo é um direito fundamental, relevante parte no conjunto de garantias individuais que a Constituição Federal protege — Constituição que tem, ou tinha, 11 juízes designados a guardá-la. Tem ou tinha? Tinha.

A infame sessão da última quarta no Supremo Tribunal Federal cravou essa resposta ao consagrar a prática — a de corregedor moral da atividade política — apregoada, dias antes, por guerreiros como Luiz Fux, aquele segundo quem, quando a um político investigado falta a grandeza de se afastar do mandato, é dever do STF ter por ele essa honradez. Sim: Fux — aquele, indicado por Dilma, cuja grandeza abarcou, em sua bem-sucedida campanha por uma suprema toga, pedir ajuda a patriotas como João Pedro Stédile, Sérgio Cabral e José Dirceu. Ele chegou lá.

Mas: e a Constituição? Aonde? Aonde esses valentes do direito criativo a levaram? À sessão da última quarta — a da vergonha.

Mesmo neste país histérico, em que a militância assaltou o debate público e em que o ativismo político já tem assentos na mais alta corte, mesmo neste país refém do alarido jacobino das redes, jamais pensei um dia ver o Supremo — em decisão de seu pleno — votar para que uma lei retroagisse de modo a punir o réu. É preciso repetir: o STF, a propósito da Ficha Limpa, firmou a jurisprudência de que um cidadão pode ser punido — com a inelegibilidade, interdição do direito político de disputar eleição — por crime ocorrido antes da existência da lei.

O que dizer quando é o Supremo a instituir a insegurança jurídica? O povo vibra, brada a ignorância que transforma em justiceiros magistrados cujos juízos declaradamente têm a ideia popular (e autoritária) de ética, e não o texto legal, como norte. Eis o bicho: o tão atraente quanto perigoso Direito catado na rua. O povo vibra, parvo, com as condições favoráveis — sinalizadas pelo STF — a que prosperem, cedo ou tarde, barbáries como as tais “dez medidas contra a corrupção”, ali onde, vestido de avanço moralizante da sociedade, propunha-se limitar o direito ao habeas corpus.

É o Brasil linchador e fulanizado o que triunfa — esse em que se aceita como necessário, para que presumido bandido nenhum escape, que leis sejam aplicadas a depender do réu, ao sabor do caso concreto, ajustadas ao prumo da indignação vulgar, negação mesmo do espírito impessoal sob o qual leis são concebidas. E se o réu — que às vezes nem réu ainda é — for um político... O leitor decerto pensou no caso de Aécio Neves. Peço, então, que o esqueça — porque o que lhe serve também cabe a todos os parlamentares eleitos para o Congresso Nacional, inclusive Eduardo Cunha.

Um pedido de prisão contra um senador da República ou um deputado federal — senão por flagrante de crime inafiançável — sequer deveria ser recebido pelo STF. E, no caso, não havia flagrante nem se tratava de crime inafiançável. A demanda de Janot era, como de hábito, inconstitucional. Numa corte superior saudável, deveria ter o lixo como destino. Mas o Supremo aceitou apreciá-lo. E aí entra a lógica. Porque, se o recepcionou para deliberação, resta evidente que qualquer decisão emanada do tribunal a propósito seria uma resposta ao pedido de prisão. A Primeira Turma estabeleceu uma medida cautelar — não foi? Ora, simples: uma alternativa à prisão.

Ocorre que a Constituição é expressa a respeito e — salvo se a Barroso já tiver derrubado esta hierarquia — prevalece sobre qualquer outro código: ainda que um senador fosse preso em flagrante de crime inafiançável, a palavra final, para chancelar ou não a decisão da Justiça, caberia ao Senado. E, se esse pode o mais, claro, pode também o menos.

Por isso não haveria razão para a grita: se o Senado quisesse (e já o deveria ter feito, não estivesse acoelhado) deliberar sobre o afastamento de Aécio, poderia, resguardado pela Constituição, e o STF teria de entubar a vergonha decorrente da militância de seus membros.

Ah, sim. Desprezo este blá-blá-blá de harmonia entre Poderes — da qual, de resto, só se fala para encurralar o Legislativo, não raro invertendo a origem da desarmonia. Ou será harmônico que o Supremo legisle e que ignore a Constituição para tomar uma prerrogativa do Parlamento? Ademais: harmonia entre Poderes — entre esses aí? Quem banca isso como essencialmente bom? Ao que serve? Neste país, tende-se mais à harmonia entre pilantras ou virtuosos?

Melhor, para o equilíbrio da República, que se respeite a Carta Magna. Conseguimos?

Esqueça, leitor, para radicalizar o meu ponto aqui, o pedido de prisão contra um senador e a medida cautelar que o impede de sair de casa à noite — e me diga onde, na Constituição, está escrito que um Poder, senão o Congresso, pode afastar um parlamentar de seu mandato?

Cuidado com os tipos que ascendem ao Supremo para fazer política. Já escrevi, sobre juízes como esses, que, se querem fazer leis, larguem a toga e se candidatem ao Legislativo. O problema — a razão da advertência — é que, sem que percebamos, já não é preciso ser eleito para dirigir o Brasil.


11 de outubro de 2017
Carlos Andreazza, O Globo

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