"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

terça-feira, 8 de novembro de 2016

ILUMINADOR DA HISTÓRIA

Reportagem com rosto humano é o que atrai e faz do jornalismo uma atividade perene

O jornalista Carl Bernstein – famoso no mundo inteiro depois da série de reportagens, escrita com Bob Woodward, que revelou o escândalo Watergate e derrubou o presidente Richard Nixon, em 1974 – não forma com o time dos corporativistas. Sua crítica, aberta e direta, aos eventuais desvios das reportagens representa excelente contribuição ao jornalismo de qualidade. “O importante é saber escutar”, diz Bernstein. “As respostas são sempre mais importantes que as perguntas que você faz. A grande surpresa no jornalismo é descobrir que quase nunca uma história corresponde àquilo que imaginávamos.”

O comentário é uma estocada nas atitudes de engajamento, arrogância e prejulgamento que corroem e desfiguram a reportagem. “Os jornalistas, hoje, trabalham com um monte de preconceitos”, sublinha. “Fazem quatro ou cinco perguntas para provocar alguma polemicazinha de nada, mas evitam iluminar a cena, fazer compreender.” Com a autoridade de quem sabe das coisas, Bernstein dá uma lição de maturidade profissional.

O bom jornalista ilumina a cena, o repórter manipulador constrói a história. A distorção, no entanto, escapa à perspicácia do leitor médio. Daí a gravidade do dolo. Na verdade, a batalha da isenção enfrenta a sabotagem da manipulação deliberada, da preguiça profissional e da incompetência arrogante. Todos os manuais de redação consagram a necessidade de ouvir os dois lados de um mesmo assunto. Mas alguns procedimentos, próprios de ranços ideológicos invencíveis, transformam um princípio irretocável num jogo de faz de conta.

A apuração de mentira representa uma das mais graves agressões à ética e à qualidade informativa. Matérias previamente decididas em guetos sectários buscam a cumplicidade da imparcialidade aparente. A decisão de ouvir o outro lado não é honesta, não se fundamenta na busca da verdade, mas num artifício que transmite um simulacro de isenção, uma ficção de imparcialidade. O assalto à verdade culmina com uma estratégia exemplar: a repercussão seletiva. O pluralismo de fachada, hermético e dogmático, convoca pretensos especialistas para declarar o que o repórter quer ouvir. Mata-se a notícia. Cria-se a versão.

Certos setores da imprensa, vez por outra, têm caído nessa tentação antijornalística. Trata-se de uma prática que, certamente, acaba arranhando a credibilidade. O leitor não é tonto. A verdade, cedo ou tarde, acaba se impondo. O brilho da pauta construída com os ingredientes da fraude é fogo de artifício. Não é ético e não vale a pena.

Ainda não conseguimos, infelizmente, superar a síndrome dos rótulos. Alguns colegas não perceberam que o mundo mudou. Insistem, teimosamente, em reduzir a vida à pobreza de quatro clichês: direita, esquerda, conservador, progressista. Tais epítetos, estrategicamente pendurados, têm dupla finalidade: exaltar ou afundar, gerar simpatias exemplares ou antipatias gratuitas.

Sucumbe-se, frequentemente, ao politicamente correto. Certas matérias, algemadas por chavões inconsistentes, que há muito deveriam ter sido banidos das redações, mostram o flagrante descompasso entre essas interpretações e a força eloquente dos números e dos fatos. Resultado: a credibilidade, verdadeiro capital de um veículo, se esvai pelo ralo dos preconceitos.

A reportagem de qualidade é sempre substantiva. O adjetivo é o adorno da desinformação, o farrapo que tenta cobrir a nudez da falta da apuração. É importante que os responsáveis pelas redações tomem consciência desta verdade redonda: a imparcialidade (que não é neutralidade) é o melhor investimento.

A precipitação e a falta de rigor são outros vírus que ameaçam a qualidade. A incompetência foge dos bancos de dados. Na falta de pergunta inteligente, a ditadura das aspas ocupa o lugar da informação. O jornalismo de registro, burocrático e insosso, é o resultado acabado de uma perversa patologia: o despreparo de repórteres e a obsessão de editores com o fechamento. Quando editores não formam os seus repórteres, quando a qualidade é expulsa pela ditadura do deadline, quando as pautas não nascem da vida real, mas de pauteiros anestesiados pelo clima rarefeito de certas redações, é preciso ter a coragem de repensar todos os processos.

Autor do mais famoso livro sobre a história do jornal The New York Times, Gay Talese, vê alguns problemas a partir da crise que atingiu um dos jornais mais influentes do mundo. Embora faça uma vibrante defesa do Times, “uma instituição que está no negócio há mais de cem anos”, Talese põe o dedo em algumas chagas que, no fundo, não são exclusividade do diário norte-americano. Elas ameaçam, de fato, a credibilidade da própria imprensa. “Não fazemos matéria direito, porque a reportagem se tornou muito tática, confiando em e-mails, telefones, gravações. Não é cara a cara. Quando eu era repórter, nunca usava o telefone. Queria ver o rosto das pessoas. Não se anda na rua, não se pega o metrô ou um ônibus, um avião, não se vê, cara a cara, a pessoa com quem se está conversando”, conclui Talese. Reportagem com rosto humano. Com cheiro de asfalto. É isso que atrai e faz do jornalismo uma atividade perene.

A autocrítica interna deve ser acompanhada por um firme propósito de transparência e de retificação. Uma imprensa ética sabe reconhecer os seus erros. As palavras podem informar corretamente, denunciar situações injustas, cobrar soluções. Mas podem também esquartejar reputações, destruir patrimônios, desinformar. Confessar um erro de português ou uma troca de legenda é fácil. Mas admitir a prática de prejulgamento, de engajamento ideológico ou de leviandade noticiosa exige pulso e coragem moral.

Reconhecer o erro, limpa e abertamente, é o pré-requisito da qualidade e, por isso, um dos alicerces da credibilidade.



08 de novembro de 2016
Carlos Alberto di Franco, Estadão

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