"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quarta-feira, 29 de junho de 2016

DESCULPE SE LHE FUREI OS OLHOS. FOI SEM QUERER...

Os alemães têm fama de ser rígidos, mas são os ingleses que têm o comportamento mais codificado da Europa. Quando duas pessoas não sabem sobre o que falar, falam do estado do tempo. Quando não sabem o que fazer, bebem chá. Têm horas precisas para começar e parar de se alcoolizar. Inventaram palavras para quando precisam de dizer alguma coisa e não querem dizer nada (“indeed” é uma delas). Vivem num sistema de classes em que até a maneira de falar distingue imediatamente a aristocracia da classe média e esta do proletariado. E sim, continuam a ter esse sistema de castas de mobilidade muito reduzida, apesar das instituições democráticas.

Tudo isto é causa e efeito. A causa é esconder a baixa quantidade de neurónios. Se soubermos como nos comportar em todas as circunstâncias e o que dizer de apropriado em qualquer altura, não precisamos de usar muito a cabeça. O efeito é uma sociedade que, apesar dos seus problemas, conseguiu construir um Império e impor uma pretensa superioridade a toda a gente. Que problemas, poder-se-á perguntar. São tantos, mas bastará enumerar alguns: o hooliganismo e o alcoolismo, as 140 mil crianças e adolescentes que desaparecem por ano, os 700 hectares de Londres que pertencem à Rainha e dois nobres, mais os 250 hectares que estão na mão dos sheiks do Golfo. O orgulho e preconceito, já dizia Jane Austen. Todos estes e muitos outros indicadores de um país difícil desaparecem debaixo da maior invenção dos ingleses, o sentido de humor, e também de um estilo muito forte que dá ideia de qualidade e duração aos produtos britânicos.

Isto não quer dizer que o Reino Unido não tenha gente de qualidade e grandes feitos no currículo, evidentemente; basta fazer a lista dos filósofos e cientistas, das descobertas e das invenções que mudaram o mundo. Mas a questão que está agora na mesa é o Brexit – não só a votação em si, como a atitude pós-referendo. É essa atitude, deveras surpreendente, que coloca em cima da mesa o tal problema dos neurónios.

Logo no dia do referendo, ao saber-se os resultados, os seus protagonistas vieram a público. Nigel Farage, o único verdadeiramente eurofóbico, disse que tinha mentido durante toda a campanha, ao afirmar que o dinheiro que se enviava para a UE será gasto em Assistência Social (serviços de saúde e pensões); David Cameron, que propôs o referendo para se manter no poder, mas era contra a saída, perdeu a consulta, e tem que se demitir. Boris Johnson, que apoiou a saída para tirar o lugar a Cameron, veio logo dizer que não há pressa em sair e, numa especulação vergonhosa, que os ingleses não vão perder quaisquer direitos na Europa. Jeremy Corbin teve um papel tão apagado que os trabalhistas já o querem substituir.

Isto ao nível dos que mandam. E os que obedecem? Segundo o Google, as consultas mais frequentes na Grã Bretanha na sexta-feira – depois de sabidos os resultados, foram: “O que é a União Europeia?” e “O que acontece se sairmos da UE?” Em incontáveis entrevistas feitas na rua, as pessoas dizem que estão arrependidas e dão justificações do outro lado da Lua por ter votado no Brexit:

“Não votei para sairmos, era mais um voto de protesto”.

“Na outra vez votei para ficarmos e a vida não me tem corrido bem, portanto achei que devia votar ao contrário.”

“Fiquei chocada quando soube o resultado, porque agora percebi que estamos a tramar os jovens e a poupança de 350 milhões de libras (?) não vai muito longe.” (Senhora de 87 anos, esta.)

“Votei para protestar contra as populações rurais esquecidas e as zonas industriais abandonadas, e porque estou farto do egocentrismo de Londres.”

“No meu prédio moram uma data de húngaros e estou farto de os ouvir a falar húngaro.”

“Votei para sair porque achei que íamos ficar e o meu voto não faria diferença.”

“Votei pela saída porque não quero assistir a mais jogos do Euro.”

Há dois ou três vídeos que se tornaram virais nas redes sociais onde as pessoas justificam o Brexit da maneira mais idiota. Num deles, “My Stupid Girlfriend Explains Why She Vote Brexit” (isto é mesmo real, por amor de Deus?!) uma adolescente explica que prefere comer ovos de galinhas inglesas, em vez de ovos de galinhas que não se sabe de onde vêm.

Os disparates, raciocínios irracionais e a pura estupidez aparecem agora no Twitter, nas redes sociais e nas cartas aos jornais. De repente, a sensação que dá é que foi tudo um engano. Claro que é menos provável que as pessoas que votaram para sair e acham que fizeram bem se manifestem, mas as consultas feitas na rua pelas televisões mostram a mesma quantidade de arrependimento.

No que pode ser uma situação histórica inédita, o projecto maravilhoso que é a UE pode começar o seu fim, porque pessoas que não percebem bem o querem,no segundo pais mais importante da União, tomaram uma decisão precipitada.

Depois, há o lado terrível. Os xenófobos, anti-imigrantes, fascistas e saudosos do Império acham que o resultado do referendo lhes dá imediatamente carta branca para por cá para fora todo o seu ódio. Num bairro periférico onde vivem muitos polacos, apareceu nas caixas do correio e nas paredes um folheto bilingue que diz “Porcos polacos voltem para casa”. Muitas pessoas, sobretudo as que não têm o suposto arquétipo britânico (pele muito branca, louro ou ruivo) ou que se vestem exoticamente queixam-se que têm sido insultadas, empurradas e, em alguns casos, agredidas. Duas amigas que estavam num café viram um homem encostar-se ameaçadoramente à mesa e dizer-lhes “Vão para a vossa terra!” Respondeu uma delas: “Mas nós nascemos aqui, esta é a nossa terra.” “Não parecem nada” respondeu o bruto. Alguns portugueses também já se queixaram de ouvir coisas desagradáveis. Uma passageira de Lisboa, quando mostrou o cartão de cidadão no aeroporto de Heathrow, o funcionário disse-lhe logo, agreste: “Da próxima vez, esse já não serve!”

Finalmente, há a enorme confusão entre imigrantes europeus e não europeus. Os estrangeiros que mais incomodam os ingleses são os que vieram do Paquistão, Índia e os muçulmanos radicais. A sua presença, em muitos casos há várias gerações, tem a ver com a Commonwealth. Ora, nenhuma destas três origens é europeia, e portanto a sua entrada em nada sofrerá com o Brexit.

O parlamento escocês decidiu que vai fazer um novo referendo para se separar da Inglaterra e depois aderir à UE. Os irlandeses do Norte estão até dispostos a juntar-se à República da Irlanda para continuar na Europa. E há um pedido para que se faça novo referendo – no domingo já tinha dois milhões e quinhentas mil assinaturas.

Ora, a verdade é, pela lei britânica, o referendo não é vinculativo. Trata-se apenas de uma consulta. Isto não está especificamente escrito, uma vez que o Reino Unido não tem uma Constituição, mas é a tradição. Segundo o “Guardian”, em rigor Cameron podia ignorar o acto e ficar-se por aí. Mas entretanto ele já disse que aceita o resultado. Portanto terá de apresentar a proposta ao Parlamento. O Parlamento pode rejeitar e decidir que tudo não passou tudo do tal humor britânico que disfarça tão bem a questão dos neurónios.

O problema é que o alemães, que não são notórios pelo sentido de humor, podem achar que então não passou de uma sórdida chantagem – um bluff à escala continental.


29 de junho de 2016
José Couto Nogueira
Artigo publicado originalmentre no chumbogordo.com.br

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