Auditores da Receita Federal classificam o projeto de repatriação de recursos no exterior como uma lei da anistia a sonegadores, que ficarão protegido por sigilo fiscal e pagarão menos imposto do que os demais contribuintes.
Kleber Cabral, vice-presidente da Unafisco (Associação Nacional dos Auditores-Fiscais), afirmou que a entidade já era contra o projeto original do governo, que ficou ainda pior após modificações feitas no Congresso.
A proposta foi aprovada na última terça-feira (15) pelo Senado Federal e está à espera da sanção presidencial.
O governo defende a medida como forma de arrecadar R$ 160 bilhões para bancar perdas de Estados com a reforma do ICMS. Para Cabral, a urgência é explicada, também, pela entrada em vigor de acordos de troca de informações do Brasil com EUA e Suíça, que vão permitir à Receita alcançar muitas dessas pessoas com bens não declarados no exterior.
O relator da matéria no Senado, senador Walter Pinheiro (PT-BA), fez uma série de alterações no texto final para separar trechos que devem ser vetados pelo Planalto.
Entre elas, a anistia a crimes como apresentação de documentos falsos e contrabando e a redução da multa por meio da conversão com o dólar do final de 2014 (R$ 2,66). Também será possível evitar a adesão de pessoas já condenadas pelos crimes listados no projeto em instâncias inferiores da Justiça, mas cujo processo ainda não está transitado em julgado, como queriam os deputados.
Para a Unafisco, essas mudanças não corrigem problemas de origem do projeto, como a impossibilidade de a Receita cobrar provas da origem lícita dos recursos. A simples declaração, sem provas, será aceita pelo governo.
Apesar de a cúpula da Receita ter concordado com o projeto, Cabral afirma que os auditores estão envergonhados pelo Fisco ser conivente com a proposta e ser obrigado a anistiar pessoas que comentem crimes combatidos no seu trabalho diário. Cabral conversou com a Folha no dia da votação e novamente após a aprovação do texto.
*
Folha - A Unafisco afirma que, além da arrecadação extra, há outras motivações em torno do projeto de repatriação de recursos no exterior.
Kleber Cabral - A razão de fundo é a movimentação em torno dos acordos internacionais. Seria pertinente um projeto de adesão voluntária, mas não desse jeito, em que você prestigia infratores. Isso aconteceu em outros países. No Canadá, houve um projeto de adesão voluntária, mas em outros termos. Não teve anistia para crime de descaminho, contrabando. Também não existe em outros países essa condição de não poder verificar a origem [do dinheiro]. Outra frente de entusiasmo com o projeto é que grandes empresas estão com problemas de caixa no Brasil e têm dinheiro de caixa dois lá fora. Como trazer o dinheiro com um monte de coisa monitorada, com a Lava Jato?
Não é possível investigar a origem do dinheiro?
A Receita não pode verificar a licitude da origem. O texto diz inclusive que a Receita só pode abrir uma fiscalização se houver indício em outro documento. Mesmo se a pessoa tiver o pedido de adesão ao programa negado, não pode usar essa informação para dar origem a nada.
Mas a Receita pode alcançar essas mesmas pessoas com as informações enviadas pelos EUA e pela Suíça?
Em 2017, começa a valer a troca de informações com os EUA, que será automática. Com a Suíça, será por demanda, mais não precisa de autorização judicial. A Receita vai ter muita informação na mão. Só o que vazou do SwissLeaks, que era só do HSBC e informação velha, quase tudo decaindo para a Receita, já causou um frenesi grande. Imagina com informação recente e de todos os bancos. [Com o projeto] há uma antecipação daqueles que seriam pegos, e ainda com o prêmio de ninguém saber, fica tudo protegido pelo sigilo fiscal.
O projeto garante que não serão legalizados recursos de origem ilícita?
O texto fala que é só para recursos lícitos. Depois, diz que serão considerados recurso lícitos aqueles fruto de crimes como descaminho e evasão de divisas. Ou seja, são considerados lícitos recursos fruto de crimes. Há uma lista de crimes anistiados. E para todo mundo que colaborou para ocultar o recursos no exterior. Doleiros, por exemplo.
A Unafisco já era contra a proposta inicial do governo?
O projeto ficou um pouco pior no Congresso, mas já nasceu muito ruim. Já nasceu com a questão central que é a origem dos recursos ser aceita apenas com a declaração do interessado. Já tivemos outras propostas. A do senador Randolfe [Rodrigues, ex-Psol, atual Rede-AP] é o embrião do projeto do Executivo. Ele sofreu uma emenda global do Manoel Júnior [deputado do PMDB-PB]. Por exemplo, na questão do câmbio. E para deixar claro que o fruto do crime passa a ser lícito. O IR e multa caíram [de 35% para 30%]. Já tivemos projetos até mais indecentes.
Você dizem que a mudança do câmbio vai reduzir ainda mais imposto e multa?
Você paga [imposto e multa] com o câmbio de 31 de dezembro de 2014 [quando uma quantidade de dólares valia menos reais]. Acaba virando 21%. É uma bruta colher de chá. O cidadão honesto paga 27,5%. A empresa, 34% de IR. O sonegador paga isso mais multa de 150%, mais correção pela Selic.
Como vocês avaliam as alterações feitas pelo relator no Senado que permitem o veto à algumas dessas questões?
A saída encontrada pelo relator [senador Walter Pinheiro] no Senado de fazer emendas apenas de redação para evitar o retorno da matéria à Câmara, prometendo vetos da presidente sobre alguns trechos do projeto, reforça o açodamento na aprovação de uma matéria polêmica e de grande impacto. Considerando que o projeto é do Executivo, defendido arduamente pelo PT e pelo PMDB, será surpresa se ocorrerem mesmo vetos. De qualquer forma, o veto não faria retornar o texto proposto pelo Executivo. No nosso ponto de vista, a presidente deveria vetar o projeto todo. E se assim entendesse, reenviar em outras bases, para uma ampla discussão no Congresso, ouvindo órgãos de fiscalização e de persecução penal, Receita Federal, Polícia Federal e Ministério Público. Da forma como está, vetos pontuais não irão alterar em nada a essência do projeto.
Como os auditores veem o apoio da cúpula da Receita Federal ao projeto?
A gente está envergonhado de a Receita estar conivente, aceitando uma coisa absurda como essa. Quando você tem um contribuinte com uma variação patrimonial a descoberto, ele pode ter uma atividade lícita ou ilícita, o Fisco vai e cobra dele. O contribuinte simplesmente recolhe o carne leão e acerta as contas. Reproduzindo esse entendimento, a Receita concordou em deixar no processo a desnecessidade de verificar a origem. Mas nós dissemos que estão anistiando um monte de crimes. E que ele está pagando menos imposto. Para os auditores, é um absurdo. Está todo mundo combatendo esses ilícitos no dia a dia.
23 de dezembro de 2015
in coroneLeaks
Nenhum comentário:
Postar um comentário