"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

ROUBAR É UMA ARTE



“O Natal está aí. E quero vos dar um presente de Papai Noel, contando traços de minha vida às margens do Poder, para que entendam que a finalidade do roubo da coisa pública não é apenas a fome de grana, o amor ao tutu, ao vil metal. Não; roubar é uma aventura épica, é uma corredeira de sustos e vitórias, a delícia do risco assumido.

Com essas descobertas dos chamados escândalos da Petrobras, comecei a ficar preocupado — mas meu nome ainda não foi citado. Talvez nem seja, porque o que levei foi uma mixaria diante dos milhões de dólares de gorjeta. Levei pouco, pois sou da época dos ‘dez por cento’, que durou até que o falecido Orestes Quércia lançou a máxima eterna: ‘dez por cento é para garçom’.

“Aí começou a inflação da corrupção. Sou gatuno, mas cheguei a ver com espanto propinas de US$ 40 milhões. Isso nunca houve na face da Terra; fico até humilhado com minhas modestas mãos na cumbuca — eu, que sempre assumi minha condição de corrupto ativo e passivo... (sem veadagem... claro). Não sou um ladrão de galinhas, mas já roubei galinhas do vizinho e até hoje sinto o cheiro das penosas que eu agarrava. Ha ha ha...

“Mas não roubo mais só por necessidade; é tesão, prazer mesmo. Tenho sete fazendas imaginárias, mando em cidades do Nordeste, tenho tudo, mas confesso que sou viciado na adrenalina que me arde no sangue na hora em que a mala de dólares voa em minha direção; vibro, vendo os olhos covardes do empresário, suas mãos trêmulas me passando a propina; delicio-me quando o juiz me dá ganho de causa, ostentando honestidade e finge não perceber minha piscadela marota na hora da liminar comprada (está entre US$ 50 mil e US$ 100 mil hoje). Sinto-me ‘superior’ assim. Roubar me liberta.

Eu explico: roubar me tira do mundo dos ‘obedientes’ e me faz ‘excepcional’. Gosto da doce volúpia em salões de caretas — me xingam pelas costas, mas me invejam pela liberdade cínica que imaginam que tenho. Suas mulheres me olham excitadas, pensando nos brilhantes que poderiam ganhar de mim. Adoro sentir o espanto de uma prostituta quando eu lhe arrojo US$ 1 mil sobre o corpo, fazendo-a caprichar em carícias. É uma delícia rolar, nu, em cima de notas de US$ 100 na cama, sozinho, comendo chocolates do frigobar de um hotel vagabundo da cidade onde descolei a propina de um canal de esgoto superfaturado.

Tenho orgulho de mim como profissional insensível até quando roubo verbas de remédios para criancinhas; domino a vergonha e transformo-a na bela frieza que constrói o grande homem. Sei muito bem os gestos rituais da malandragem brasileira: sei fazer imposturas, perfídias, sei usar falsas virtudes, ostentar dignidade em CPIs, dou beijos de Judas, levo desaforo para casa sim, sei dar abraços de tamanduá e chorar lágrimas de crocodilo...

“Eu já declarei de testa alta na Câmara: ‘Não sei nem imagino como esses milhões apareceram em minha conta na Suíça. Como? Que conta? Apesar desses extratos todos, não tenho nem nunca tive conta no exterior!’. Esse grau de mentira é tão sólido que deixa de ser mentira e vira uma arte. Vejam o exemplo do grande mestre Paulo Maluf — conseguiu desmoralizar nosso Código Penal e vai ser deputado de novo!

“Aliás, saibam que isso vai acontecer também com os ‘petrolões’ — são tantos processos que tudo vai se congestionar e, com o tempo, nada será feito.
“No Brasil, há dois tipos de ladrões de colarinho branco: há o ladrão ‘extensivo’ e o ‘intensivo’. Não tolero os ladrões intensivos, sem classe... Falta-lhes elegância. Roubam o que lhes aparece na frente, para se vingarem de passadas humilhações, dores de corno, porradas na cara não revidadas, suspiros de mãe lavadeira.

“Eu, não. Eu sou cordial, um cavalheiro; tenho paciência e sabedoria, comecei pouco a pouco, como as galinhas da infância que de grão em grão enchiam o papo... Eu sou aquele que vai roubando ao longo da vida política e, ao fim de décadas, já tem ‘Renoirs’ na parede, iates, helicópteros, esposa infeliz (não sei por quê, se dou tudo a ela) e infelizmente filhos estroinas... (mandei estudarem na Suíça e não adiantou).

“Eu adquiri uma respeitabilidade altaneira que confunde meus inimigos, que ficam na dúvida se me detestam ou admiram. Considero-me um técnico, um cientista da corrupção nacional...

“Ouso mesmo dizer que estou defendendo uma cultura! São séculos de hábitos e cacoetes sagrados que formam um país. Trata-se da beleza do clientelismo ibérico, onde a amizade cordial é mais importante que essa bobagem de ‘interesse nacional’! 

O que meus inimigos chamam de irresponsabilidade e corrupção é a resistência da originalidade brasileira, é a preservação do imaginário nacional! Eu estou no lugar da verdade. Este país foi feito assim, na vala entre o público e o privado. Há uma grandeza insuspeitada na apropriação indébita.

“A bosta não produz flores magníficas? O que vocês chamam de ‘roubalheira’, eu chamo de ‘progresso’, o doce progresso português que formou esse adultério entre o publico e o privado. Eu sempre fui muito feliz... Sempre adorei os jantares nordestinos, com moquecas e sarapatéis, os cálidos abraços das máfias rurais...

“Outro dia, um delegado que comprei me convidou para ver uma execução. Topei, por curiosidade; podia ser uma experiência existencial interessante. Era um neguinho traficante pé de chinelo que levaram para um terreno baldio. Ele implorava quando lhe passaram o fio de náilon no pescoço e apertaram devagar até ele cair estrangulado, bem embaixo de uma placa de financiamento público. Na hora, até me excitei; mas, quando cheguei em casa, com meus filhos vendo ‘Bob Esponja’ na TV, fui tomado pelo mal-estar que chamam de ‘sentimento de culpa’... Mas isso vai passar logo; sei combater essas fraquezas dos pobres de espírito.

“Tem muita verba pública aí, muita emenda no orçamento, empreiteiros me ligando
sem parar... Tenho de continuar minha missão”.
24 de dezembro de 2014
Arnaldo Jabor é Cineasta e Jornalista. Originalmente publicado em O Globo em 23 de dezembro de 2014.

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