"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

terça-feira, 14 de outubro de 2014

O RIO QUE PASSA EM NOSSA VIDA

Custei a escrever sobre as eleições no Rio porque ainda estava muito próximo de uma vida política aqui, conheço os personagens e resolvi me concentrar na questão nacional

Uma forma de ser universal é escrever sobre o lugar onde se mora. Custei a escrever sobre as eleições no Rio porque ainda estava muito próximo de uma vida política aqui, conheço os personagens e resolvi me concentrar na questão nacional. Desde menino, o Rio para mim é a cidade das luzes. Eu as vi do alto da serra e disse para mim mesmo que iria morar lá embaixo, naquele mundo iluminado. No Rio havia o mar, moravam os artistas, do Rio vinham os jornais e as revistas, aqui estava a vanguarda do país. Os políticos não só eram nomes nacionais como pensavam o país.

O tempo e a decadência, com a mudança da capital, fizeram com que os políticos se voltassem, sensatamente, para os problemas locais. Surge uma nova geração focada nas questões do nosso cotidiano. O ideal seria que se formasse aqui gente com visão nacional e, ao mesmo tempo, capaz de agir localmente. As peripécias de nossa história nos levaram a longos períodos de dominação, ora populista ora de um grupo orientado para o enriquecimento pessoal.

Tantas voltas demos que estamos num segundo turno entre a continuidade de um governo marcada por escândalos e um candidato que associa política e religião de uma forma que me assusta. Respeito a religiosidade em todos os seus níveis, mas o partido ligado à Igreja Universal chegar ao governo é inquietante.

Todas aquelas luzes que contemplei quando menino, todo aquele investimento emocional na metrópole dos sonhos desdobra-se hoje na possibilidade de ser governado por um núcleo religioso que também é um núcleos de negócios.

Na disputa proporcional, a votação de Jair Bolsonaro e Jean Wyllys indica que a questão dos direitos gays está na ordem do dia. Se consideramos os números, vemos uma nítida vantagem de Bolsonaro. Será que determinadas táticas não o estão fortalecendo?

Conheço Bolsonaro há muito tempo. No primeiro mandato, ele fazia discursos pedindo minha prisão, porque fui sequestrador. Um dia disse para a ele: “Antes de ir para a tribuna pedir minha prisão, avisa, pois eles podem te levar a sério, e isso me dá alguns minutos de vantagem para a fuga”.

Nunca mais pediu minha prisão, e convivemos, pacificamente, na Câmara. Bolsonaro tem se movido com desenvoltura na sua cruzada. Ele capta as oportunidades no ar, argumenta pesadamente e, às vezes, briga com a própria imprensa. Bolsonaro vislumbrou esse caminho, assim como o pastor Marcos Feliciano, e o percorre sabendo que sairá com mais votos de cada episódio. Isto significa que os direitos dos gays devem ser congelados, para que Bolsonaro e Feliciano não cresçam? Sugiro apenas que se reveja a tática, procure-se um terreno mais seguro, ampliem-se as alianças.

Uma vez que o tema tem tanta importância na votação dos deputados no Rio, não custa nada lembrar que vale para o movimento gay o aprendizado de todas as lutas minoritárias de que participei: por mais justa que seja a causa, é preciso a forma hábil de conduzi-la. O confronto direto com Bolsonaro e Marcos Feliciano é tudo o que eles querem. Bolsonaro está pensando até em ser presidente da República, com a ajuda, é claro, dos seus próprios adversários.

Para o Senado, o Rio escolheu Romário. O ideal seria um senador do passado, que pensasse no Rio mas também questionasse a política externa tão equivocada do governo. Mas as circunstâncias colocaram em cena um craque do futebol brasileiro e Cesar Maia, que combina uma visão de mundo com uma compreensão local. No entanto, já está muito desgastado para aspirar, no momento, a um cargo majoritário. Já que Romário foi eleito por grande maioria, o ideal seria, ao invés de insistir no seu despreparo, colaborar para que enfrente bem nossos problemas.

Dois milhões de pessoas não votaram no Rio. Juntas representam mais que o segundo colocado. O mesmo se passou no Brasil: 38 milhões de ausentes, votos nulos ou brancos. Grande parte do país rejeitou o processo eleitoral. Não temos outro caminho exceto votar bem, recolher os cacos ao fim de cada eleição, e sonhar com o dia em que essa Argentina, em termos numéricos, volte a se integrar ao Brasil, uma vez que a perdemos nas sucessivas eleições do curto período democrático.

Um tema central para isso é a recuperação da credibilidade. Não creio que os políticos possam se transfigurar com uma vitória da oposição. Nem que venham a ser amados num futuro próximo.

Parte da degradação política brasileira vem do próprio Planalto, dos métodos de conquista do Congresso pelo Mensalão, pela drenagem contínua dos recursos da Petrobras, pela ocupação da máquina do Estado e pela tolerância com a corrupção em tantos níveis. Ventos novos soprando de Brasília podem dar em nossas praias. Depois de tanto inspirar o país, o Rio pode receber uma inspiração nacional. É a esperança que resta no horizonte

 
14 de outubro de 2014
Fernando Gabeira, O Globo

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