"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

O COMISSÁRIO

 
Em uma manhã do final de julho, o jato Citation de seis lugares se preparava para pousar no aeroporto de Salvador quando Rui Goethe da Costa Falcão, deputado estadual e presidente do Partido dos Trabalhadores, contou ter sido surpreendido com a informação de que uma mãe de santo faria uma bênção antes de seu discurso no evento. “Nós estamos precisando mesmo”, retrucou Carlos Henrique Árabe, secretário nacional de Formação Política do PT, de uma poltrona em frente.

Dali a algumas horas, caciques petistas, dirigentes graduados e a militância engajada participariam do último de uma série de atos comemorativos dos dez anos do partido no poder. Desde fevereiro, o PT organizava encontros país afora, precedidos de palestras sobre assuntos da atualidade e de discursos de seus líderes. Naquela noite, o tema seriam as manifestações de rua, sobre as quais falariam Rui Falcão a presidente Dilma Rousseff e seu antecessor, Luiz Inácio Lula da Silva. “Estavam previstos mais encontros, mas o Lula quis que esse fosse o último”, comentou Falcão, quando o trem de pouso da aeronave tocava o solo. “A situação está um pouco diferente agora”, emendou.

Diferente porque no clima geral do partido nada havia para ser celebrado. Era o primeiro ato petista depois das manifestações de junho. Elas haviam começado exigindo a redução do preço do transporte público e se desdobraram empunhando uma série de outras bandeiras: contra a corrupção, contra os gastos pouco criteriosos com eventos esportivos, a favor da melhora nos sistemas públicos de educação e saúde. Os índices de popularidade de Dilma despencaram.
O PT – que nasceu do movimento sindical, de baixo para cima – foi hostilizado em praça pública. Militantes foram agredidos e bandeiras, queimadas. Durante os protestos, um dos gritos urrados pela multidão era: “Fora PT, leva a Dilma com você!” Ali mesmo em Salvador, um grupo tentara retornar às ruas nos festejos populares de 2 de julho entoando “O PT voltou! O PT voltou!”, mas o grosso da turba encobriu o cântico com outra letra: “O PT roubou! O PT roubou!”

O partido se viu obrigado a encarar em público o que havia muito já se falava sobre ele: que perdeu o contato com as ruas, que se afastou dos movimentos sociais, que se encastelou em sua burocracia. Que tinha se tornado uma ferramenta nas mãos de um núcleo de mandatários desenvoltos no propósito de se manter no poder. O partido que prometia regenerar os costumes políticos havia mergulhado de cabeça nas tentações da fisiologia e passou a protagonizar escândalos de corrupção. 

Em uma tarde recente, Rui Falcão despachava em seu gabinete na sede do PT, no Centro de São Paulo. Em novembro, ele deverá ser reeleito presidente da sigla por mais quatro anos. Era a primeira vez que tantas correntes internas distintas se uniam em torno de um só nome. Mesmo tendências mais à esquerda do partido sustentavam sua candidatura. “Ele já assinou o manifesto?”, perguntou Falcão a seu chefe de gabinete, Francisco Campos, referindo-se a um deputado federal. “Tá dizendo que vai assinar...” O documento afirmava que os signatários reconheciam que, por “sua firmeza ideológica, e pela sua reconhecida capacidade pessoal e política”, Falcão era o mais indicado a comandar a engrenagem de 1,6 milhão de filiados, com a maior bancada de deputados na Câmara, a segunda do Senado, cinco governadores e mais de 600 prefeitos.

Para chegar à Presidência da República, o PT fez concessões à ordem dominante, muitas delas incongruentes com o que pregava até a véspera. Foram consubstanciadas na Carta ao Povo Brasileiro, lançada na campanha de 2002. No texto, lia-se que seria necessária “uma lúcida e criteriosa transição entre o que temos hoje e aquilo que a sociedade reivindica. O que se desfez ou se deixou de fazer em oito anos não será compensado em oito dias. O novo modelo não poderá ser produto de decisões unilaterais do governo, tal como ocorre hoje, nem será implementado por decreto, de modo voluntarista”.

O PT orientou-se pela Carta. E conseguiu resultados que os líderes do partido repetem dia sim, outro também: 30 milhões de pessoas saíram da miséria, o salário mínimo real aumentou, houve acesso inédito ao crédito, o desemprego ficou para trás. O PT se tornou, numa palavra, o partido da ordem, uma nova e, ao mesmo tempo, velha ordem. Houve melhorias sem rupturas. Ao longo de seu governo, Luiz Inácio Lula da Silva não cansou de repetir que a elite (e os bancos, em particular) nunca havia ganhado tanto dinheiro.
 
e calça jeans, camisa, jaqueta de couro e sapatênis, Rui Falcão havia acabado de voltar de um almoço com Lula.A semana parecia agitada. Na véspera, a proposta de plebiscito para uma reforma política – feita por Dilma Rousseff em resposta aos protestos – havia sido enterrada pelo Congresso. O deputado Cândido Vaccarezza, do PT, batia o pé para assumir a coordenação da recém-criada Comissão de Reforma Política, agindo à revelia do partido, o que expunha mais um racha interno. E uma greve geral das centrais sindicais estava prevista para o dia seguinte.

Com a voz mansa e professoral, Falcão minimizava os efeitos das manifestações sobre o governo. Para ele, a insatisfação popular não era dirigida a Dilma ou ao PT, e sim ao “Estado em geral”. O fato de as ruas pedirem “mais” e não estarem reclamando de emprego ou salário – como em protestos mundo afora – só corroborava o sucesso do governo petista. Em sua avaliação, o cancro nacional era de ordem estrutural – não de conjuntura. “Vários focos de poder permanecem intocados, e enquanto isso não for alterado vai ser difícil avançar no país”, afirmou. “A oposição real no Brasil não é PSDB, DEM, PPS. É o grande capital financeiro-bancário das corporações internacionais, da mídia oligopolizada, dos altos funcionários do Estado, como Tribunais de Contas, a cúpula do Ministério Público e do Judiciário”, disse.

Ele listou medidas adotadas pelo governo – ter baixado os juros bancários e a conta de luz – como razões de ataques ao partido e à presidente. “Muita gente perdeu ou deixou de ganhar dinheiro com isso. É esse bloco que trava os maiores avanços no país, porque não se conforma com um governo que colocou os pobres como protagonistas.”
 
m novembro, Rui Falcão completa 70 anos. Aparenta menos idade. Baixo, magro, calvo, com cabelos grisalhos bem aparados, ele se move de maneira jovial. Tem um personal trainer, veste-se com roupas de grifes como 7 For All Mankind, Armani e Hugo Boss. Bebe raramente, não fuma, come pouco, dorme menos ainda. Não se tem notícia de excesso em nenhum aspecto de sua vida. Há anos, cunhou para si um jocoso rol de princípios inabaláveis:
1) Odeio férias;
2) Quando durmo muito, passo mal;
3) Adoro shopping center.
Seu motorista está invariavelmente em seu prédio às oito e meia da manhã (com três minutos de atraso, Falcão já o aciona pelo celular). Almoça no restaurante Topless (prato feito: 15 reais) que fica ao lado do prédio do partido (ainda que discorra sobre vinhos com desembaraço) e dificilmente recebe visitas ou frequenta a casa alheia. Uma vez lhe perguntei quem era seu melhor amigo e se seguiu uma longa pausa. “Sabe que eu nunca pensei sobre isso?”, respondeu, antes de elencar poucos companheiros de legenda. Sua vida se resume às atividades partidárias e ao tempo em família.

Rui Falcão é formal, gentil e misterioso. É fácil imaginá-lo como cardeal de um conclave: gestos controlados, olhar opaco e indecifrável, ponderando o imponderável em tom de voz monocórdio. Ao mesmo tempo, também é possível vê-lo como um capa preta em conluios a meia-voz, falando o indizível sem alterar a expressão ou deixar uma pista sobre suas reais intenções. De fato, é um quadro dos conchavos, da articulação de bastidores, do convencimento e das missões espinhosas – desde tratar da origem de recursos de uma campanha a descobrir se um candidato importante de uma chapa majoritária é gay.

É considerado dono de uma escrita impecável. Dá forma e verniz a resoluções, discursos e teses do partido. Seus assuntos são livros, cinema e, prioritariamente, política. Numa conversa descompromissada, ele citou autores em cascata sem parecer pernóstico. Antonio Gramsci, Louis Althusser, Bruno Bettelheim, Maria Antonieta Macciocchi, Leon Trotsky, Vladimir Lênin, Mikhail Bakunin, Jorge Castañeda. Comparou teorias, expôs divergências entre elas. Em seguida, passou a falar de literatura americana com a mesma desenvoltura. Idem sobre cinema.

Tem-se a impressão de que Falcão nunca perde o controle. Em um embate, é capaz de destruir um ser humano sem levantar a voz (jamais o faz), com palavras como “pusilânime”, pronunciadas sílaba a sílaba. Ele é também metódico e hierárquico. Um alto dirigente nacional do Partido dos Trabalhadores o definiu assim: “Se ele tomar uma sopa de letrinhas, vai fazer cocô em ordem alfabética.” Parece medir cada adjetivo, palavra ou informação antes de abrir a boca. Não se ouvirão dele inconfidências, segredos ou revelações bombásticas.

O telefone tocou. O senador Lindbergh Farias, do PT do Rio de Janeiro – cotado ao governo estadual –, havia consultado Falcão sobre sua ida ao aniversário do deputado federal Glauber Braga, do Partido Socialista Brasileiro. “Oi, Lindbergh. Você viu os jornais? Tem uma nota dizendo que vão transformar esse aniversário numa grande plenária de deputados junto com o Eduardo Campos. Você não viu isso?”, indagou. “Isso é uma armadilha para você. Se for um ato político com o Eduardo Campos, ele vai falar o que quiser e você vai ficar numa saia justa. Ele já disse que a Dilma não ganhou 2013, está falando muita coisa. Manda um presente, um telegrama, mas não acho que você deva ir.”

Quando perguntado se o govenador de Pernambuco é um potencial adversário em 2014, Rui Falcão é enfático: “Ele não será candidato.” E não dá mais detalhes. Entre os petistas, sabe-se, porém, que Eduardo Campos prometeu recentemente a Dilma, a Lula e a Falcão que não disputaria a eleição. Quando desligou o telefone, ele comentou: “Lindberghé candidato no Rio, isso não vai mudar. Ele está no topo das pesquisas e vai continuar assim.”
Ao argumento de que o governador Sérgio Cabral, do PMDB, não abriria mão de fazer seu sucessor, respondeu: “O Cabral não está em condição de fazer exigência nenhuma.”
Passou-se a discorrer sobre alianças e coligações. A parceria com o PMDB, segundo ele, é variável em cada estado, e ainda necessária. “Estamos construindo apoios, como Helder Barbalho, do PMDB do Pará.” Involuntariamente, franze as sobrancelhas. “Ele é totalmente diferente do Jader, seu pai”, antecipou-se em esclarecer. “É bom sujeito, bom prefeito e pode virar senador. E, para nós, é importante eles nos apoiarem para elegermos senadores também.” Ele explicitou o pano de fundo de seu raciocínio: “Se conseguirmos fazermais senadores do que o PMDB, poderemos ter a maior bancada. E a maior bancada tem o presidente do Congresso.”

Ainda está viva na memória dos petistasa foto do então candidato a prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, ao lado de Lula, nos jardins da casa de Paulo Maluf, selando o acordo com o Partido Progressista – algo capaz de chocar mesmo aqueles que se acostumaram à trajetória pragmática do PT.  “Qual ponto do nosso projeto histórico foi trocado por essa foto? Nenhum”, indagou e respondeu Falcão. “O preço dessa foto foi caro, mas foi o preço de se eleger um prefeito que está recuperando uma política abandonada. E, enquanto não mudarmos o sistema político, será o preço a se pagar”, afirmou.

O telefone tocou novamente. Era o cardiologista Roberto Kalil Filho, que atende Dilma, Lula e toda a cúpula do poder político e empresarial do país. Na véspera, Kalil havia dito em uma entrevista ser “terminantemente” contrário à vinda de médicos estrangeiros para o Brasil, programa lançado pelo governo. “Oi, Kalil, acho que a presidenta vai mudar de médico”, disse Falcão. Kalil se exasperou. “Você precisa tomar cuidado, falar com jornalista é sempre um risco. Jornalista seu amigo? Não tem amizade, Kalil.” A conversa se estendeu por mais alguns minutos. Falcão disse ter sugerido ao ex-presidente Lula antecipar o check-up, marcado para agosto, para aplacar boatos sobre sua saúde. Também perguntou sobre seus próprios exames, que estavam excelentes. “Ela não vai mudar de médico não, viu?”, tranquilizou-o.
Dias depois, soube-se, Lindbergh não havia ido à festa.
 
ma enorme foto de Leonel Brizola abraçado ao deputado Paulo Pereira da Silva, presidente da Força Sindical, adornava a parede da sala onde a cúpula das centrais sindicais estava reunida, na sede do Partido Democrático Trabalhista, em São Paulo. A greve geral do dia anterior havia sido um fracasso. O movimento foi basicamente integrado por pelegos e militância paga, conforme havia publicado a Folha de S.Paulo. Nem o PT compareceu. Paulinho da Força, único ausente, tinha ameaçado levar bandeiras de “Fora, Dilma”, o que não ocorreu. Alguém comentou a reportagem da Folha. “O pessoal pega recurso para lanche. Isso que eles não entendem. Eu já falei para parar”, disse Vagner Freitas, presidente da Central Única dos Trabalhadores, sentado ao lado de Mônica Valente, mulher do ex-tesoureiro do PT Delúbio Soares.

“À esquerda do Lupi, só o abismo”, ironizou Rui Falcão, ao cumprimentar o presidente do PDT, Carlos Lupi. Ex-ministro do Trabalho e Emprego dos governos Lula e Dilma, ele deixou o cargo depois de ser acusado de envolvimento num esquema de cobrança de propina de ONGs contratadas para capacitar trabalhadores. No centro da mesa de reunião, Falcão explicitava a necessidade de os sindicatos se unirem para apoiar a reforma política. Ele reforçava o périplo em conversas com a Ordem dos Advogados do Brasil, partidos aliados, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e, agora, com os sindicalistas.

“É, mas na véspera da manifestação me aumentam os juros para 8,5%. Aí é jogar gasolina na padaria e tocar fogo, hein?”, disse Ubiraci Dantas, da Central Geral dos Trabalhadores do Brasil. “Olha, tamo na base, tamo ajudando, mas se continuar desse jeito cada um procura seucaminho.” Ninguém comentou. Desde 2008, o governo repassa dinheiro do imposto sindical às centrais. No ano passado, foram 160 milhões de reais – sobre os quais as entidades são dispensadas de prestar contas. Ao contrário do que ocorria no passado, não se via mais discordância entre governo e sindicalistas – alguns deles, inclusive, ocupando cargos no governo federal.

Todos falavam de uma vez só, mas Falcão mantinha o tom de voz inalterado se dirigindo a Lupi. “Quando eles querem fazer, eles aprovam as coisas em 24 horas”, disse Falcão, ausentando-se da sala. O deputado estadual Major Olimpio, do PDT, comentou em tom indignado: “Que coisa é essa que o Rui fala de ‘nós’ e ‘eles’? O que ele quer dizer? Que a culpa é do Congresso? ‘Eles’ são quem ainda representa o povo brasileiro.”

Em uma manhã recente, o historiador Valério Arcary participava de um seminário sobre cultura promovido por seu partido, o PSTU. Um dos fundadores do PT, Arcary abandonou a legenda em 1992, quando a Convergência Socialista, da qual fazia parte, rompeu com o partido. “Todos os movimentos sociais foram cooptados pelo PT”, disse. “Também os sindicatos e a militância, que passou a ser remunerada. E veja o caso das conferências.” Desde que chegou ao poder, o PT organizou 87 conferências setoriais para debater temas sensíveis à sociedade. “Botavam todo mundo que nunca tinha andado de avião para ficar em hotel, ter diária. Chamaram as mulheres para conversar sobre aborto. Saiu lei do aborto? Chamaram para falar de reforma agrária. Saiu? De reforma urbana? Saiu? O que fizeram é controle social.”

Em sua avaliação, a justificativa do governo de que as coligações são fundamentais para a governabilidade é balela. “Põe 2 milhões de pessoas na frente do Congresso pedindo reforma urgente e vê se o Michel Temer não pega um avião e se muda para Miami?”, falou. Rabiscando em um pedaço de papel a sua frente, Arcary prosseguiu: “O problema é: eles conseguem botar? Eles conseguem mobilizar sem pagar? Acho que não.”

A reunião com as centrais sindicais havia terminado como era esperado: sim, eles apoiariam o que decidisse o governo ou o PT. No carro, a caminho da sede do partido, Rui Falcão comentou que os movimentos sociais e as centrais sindicais “tinham demandas demais” e ignoravam as limitações do governo. “O volume de demandas não cabe no orçamento. Para fazer tudo, teríamos que aumentar impostos, mas se você falar disso é apedrejado”, disse.
O carro parou em um sinal e ele comentou em tom de desabafo: “Na verdade, eu não quero que essa comissão da reforma política faça nada.” Por sua lógica, ficaria mais fácil levar a cabo a proposta de plebiscito colhendo assinaturas para um decreto legislativo ou deixar o Congresso ser culpado pelo imobilismo das mudanças. “Porque ao fim e ao cabo, teremos feito tudo o que podíamos e o Congresso vai ter que explicar por que não quis fazer as reformas ou ouvir a voz das ruas”, disse.

Falcão pediu que seu assessor ligasse para a presidente do Diretório Municipal do PT, a vereadora Juliana Cardoso, que havia convocado, pela internet, os parcos militantes petistas que se juntaram ao movimento das centrais. “Diz a ela que ela tem que me consultar antes de fazer isso.” E completou: “Fica parecendo que o PT quer pegar carona. Aí não vai ninguém e ficamos desmoralizados.” Nos protestos de junho, os 18 700 seguidores de Falcão no Twitter foram surpreendidos por uma mensagem: “O PT vai pra rua! A luta por transporte público é uma bandeira histórica do PT! #ondavermelha.” Soube-se que uma assessora do gabinete de Falcão havia postado a convocação sem sua anuência. A moça foi espinafrada e a mensagem, apagada.
 
ascido em Minas Gerais, Rui Falcão se mudou para o interior paulista ainda criança. É filho mais velho de um médico e de uma dona de casa. Amante da leitura, o pai batizou os filhos de Rui Goethe e Nei Dante. A família tinha uma vida confortável, mas sem luxo. Aos 12 anos, Rui Falcão foi morar sozinho em um hotel numa cidade distante 50 quilômetros da casa dos pais. “Eles se mudaram novamente e eu quis ficar na minha escola, que era muito boa. Disse que não ia com eles”, contou. Encontrava a família a cada um ou dois meses. O garoto passava a maioria do tempo estudando, lendo ou indo ao cinema. Sempre foi de poucos amigos. Era excelente aluno.

Os irmãos tinham temperamentos distintos. Enquanto o primogênito era contido, disciplinado e autossuficiente, Nei Dante era expansivo, rebelde e desinteressado pelos estudos. “Havia uma clara preferência do meu pai por mim”, disse Falcão. Pedi que contasse o episódio mais transgressor de sua juventude. Ele relatou o caso de um amigo que havia urinado sobre uma mesa de sinuca. “Eu estava junto. Não tinha feito nada, mas entrei no grupo que foi expulso do clube que frequentávamos.”

Aos 16 anos, começou a namorar aquela que viria a ser sua primeira mulher, Maria Aparecida – prima do ex-ministro da Agricultura do governo Collor, Antonio Cabrera, e mãe de dois de seus três filhos. A mais velha é enfermeira em São José do Rio Preto e o rapaz, psicólogo em Goiânia. Há 26 anos, casou-se novamente com uma advogada, Cristina, com quem teve outra menina, hoje com 16 anos.

A família paterna, de origem baiana, tinha ligações com a política conservadora. Um tio foi constituinte em 1946, outro elegeu-se deputado estadual e um terceiro, prefeito de uma cidade do interior. Aos 17 anos, Falcão foi morar com parentes em Salvador, onde pensava estudar medicina. Até então, seu engajamento político se resumia à presidência do grêmio do colégio. Ali, viu pela primeira vez uma manifestação de rua: os protestos contra a renúncia de Jânio Quadros. “No interior, você não tinha nada disso. Fiquei curioso e interessado”, contou. Incomodado com o controle que um tio insistia em ter sobre sua rotina, pediu dinheiro ao pai para retornar ao interior paulista.

De volta à pensão, decidiu estudar direito. Foi aprovado em quarto lugar na Faculdade do Largo de São Francisco, em São Paulo, onde se aproximou do movimento estudantil. Na mesma época, fez um teste para o cargo de revisor do jornal Folha de S.Paulo, o que o liberou da mesada paterna. Morava na Casa do Estudante, onde cruzava com o vice-presidente da República, Michel Temer. “Ele era mais velho, já estava se formando. Era de um grupo político independente. Sempre teve esse jeito, essa coisa meio assim, pedindo licença. Se tem uma poça e é inevitável desviar o caminho, pergunta: ‘Por favor, posso pisar na sua grama?’”, lembrou Falcão.

O alojamento estudantil se tornara uma célula de discussão sobre reformas agrária, de base, universitária, lei da remessa de lucros. Era já um militante do Partido Comunista Brasileiro quando foi nomeado presidente do Centro Acadêmico xi de Agosto. Quando veio 1964, afastou-se do Partidão – que não havia reagido ao golpe – e, mais tarde, passou a frequentar as reuniões do Comando de Libertação Nacional, Colina, no qual conheceu Dilma Rousseff. Alternava os estudos pela manhã com o trabalho e, a essa altura, já era editor do jornal A Gazeta e copidesqueda editoria de esportes do Notícias Populares.
 
urante um conflito com a polícia na porta da faculdade, Falcão ajudava a socorrer um conhecido, baleado em um protesto contra a ditadura. Tentaram entrar com o ferido, mas alunos ligados ao Comando de Caça aos Comunistas bloqueavam a passagem. Houve novo confronto e seu irmão, Nei, deu um soco em um dos sujeitos. A tvTupi filmou a cena, em que Rui Falcão aparecia, em close, pisoteando o rapaz caído no chão. No dia seguinte, ele comprou sua primeira arma: uma pistola 6.75, e roubou uma caixa extra de balas.

Como imaginara, ao voltar à faculdade foi reconhecido e recebido com tapa na cara num corredor polonês formado por alunos do CCC. Pegaram-lhe a arma, apanhou, revidou cuspindo na cara de umdeles – que se tornaria assessor de Alfredo Buzaid, ministro da Justiça do governo de Garrastazu Médici. Dias depois, foi chamado pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops) para explicar a origem da pistola. Contou que estava saindo para registrá-la quando foi agredido e mostrou a caixa de balas roubada, ainda intacta, para provar inocência. Como não incriminou ninguém, não foi mais importunado nem pela polícia nem pelo CCC

Em casa e no jornal, ignoravam sua militância. A amigos do Partidão, ele dizia que se casara, que estava cansado e afastado do movimento. A mulher sabia por alto de sua atividade. Aos 26 anos, com um emprego fixo, bom salário, Falcão chamou os pais e o irmão para morar em sua casa. Era a primeira vez que a família se reunia depois de catorze anos. Nessa ocasião, ele já integrava a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares, a VAR-Palmares, um grupo marxista-leninista que defendia a derrubada do governo militar pelas armas e a implantação de um regime socialista no país.

A ação mais conhecida da organização foi o roubo do cofre na casa da amante do ex-governador Adhemar de Barros, com 2,5 milhões de dólares que seriam destinados ao financiamento da guerrilha contra a ditadura. Rui Falcão andava armado, fazia treinamento de tiro em chácaras no interior e se preparava para montar um setor de informação e inteligência na organização. Nessa época, conheceu o militante estudantil José Dirceu e daí nasceu uma sólida amizade, que perdura até hoje.

Certo dia, Nei Dante lhe telefonou dizendo que ia desaparecer por “uns tempos” e que havia deixado uns “bombons” dentro do armário. Ao chegar em casa, Falcão descobriu um saco de balas de revólver. Só aí soube que o irmão, como ele, também estava na militância política. Nei Dante era um atuante membro da Aliança Libertadora Nacional. Durante anos, os parentes ficaram sem notícias dele. Nessa época, um membro do Colina foi morto pela polícia e um da ALN foi preso. Durante a tortura, revelou que um dos mais ativos na organização era “Tim”. Ele não sabia seu nome, mas apenas que era “irmão do Rui Falcão, da Folha”. Temeroso pela segurança da família, Falcão contratou um caminhão de mudança para instalar os pais em uma casa do outro lado da cidade.

Em uma manhã, quando Falcão estacionava seu Fusquinha em frente ao jornal, um colega o alertou de que a polícia estava em seu encalço. Ele saiu pelas ruas, encontrou um amigo e pediu uma carona. O sujeito fez menção de negar, quando Falcão lhe mostrou o coldre. “Agora!” Não voltou mais ao trabalho. Anos depois, soube que o chefe, o romeno Jean Mellé – que, segundo ele, havia colaborado com os nazistas, apesar de judeu –, repetia para os colegas na empresa: “Non acredito que Falcon é terroristo. Tan quietinho.” A organização o abrigou em uma casa e ele mandou a mulher abandonar o apartamento. Durante a batida policial, nada foi encontrado. No entanto, por causa do endereço deixado na empresa de mudança, descobriram a casa de seus pais. Foi quando ele decidiu entrar na clandestinidade.
 
andidato da Articulação de Esquerda à presidência do pt, o historiador Valter Pomar, de 47 anos, é um quadro preparado e dissonante entre seus pares por defender posições consideradas “radicais”. Em uma tarde, Pomar chegou à padaria, ao lado do prédio do partido, de mochila, jaqueta e tênis. Acabara de passar por uma manifestação de motoboys, que empunhavam cartazes “Sem nós, São Paulo para”, o que lhe pareceu curioso. “O partido precisa recuperar a capacidade de ser porta-voz dessa indignação social. Chegamos ao limite da insatisfação com o status quo. O PT  precisa de um choque imediato.”

Ele mencionou uma pesquisa segundo a qual mais da metade dos entrevistados achava que o PT era tão corrupto quanto os demais partidos. “Isso é um horror”, comentou. Para ele, o clima é semelhante ao de 2005, quando a legenda foi abatida pelas denúncias do esquema do mensalão. “Se não reagirmos rápido, a indignação das ruas vai se voltar contra nós. E reagir é dar uma guinada de volta à esquerda, ao que sempre pregamos”, disse.

Em 1993, o PT passava por uma das suas crises de identidade. Parte da direção queria apoiar Itamar Franco, a quebrado monopólio do petróleo e o parlamentarismo. Um grupo, que incluía Rui Falcão e Valter Pomar, lançou um manifesto, que ficou conhecido como A Hora da Verdade. “O PT não funde nem se confunde”, dizia um trecho do documento. “Tivemos alguns erros de avaliação de conjuntura, mas aquele tranco foi fundamental para o partido”, lembrou Pomar. “Foi o que fez com que alguns princípios fossem mantidos”, afirmou.

No ano seguinte ao manifesto, Rui Falcão assumiu a presidência do PT pela primeira vez, substituindo Lula, licenciado para se candidatar à Presidência da República. “Também foi quando o Rui se aliou ao consórcio majoritário do partido, no qual até hoje ele não é totalmente aceito”, sustentou Pomar. “De fato, a taxa de hipocrisia e demagogia dele é bem menor do que a dos outros. E a posição dele está mais à esquerda.” Para Pomar, Falcão acaba se comportando como um “administrador” da maioria. “Fazer isso com o vento a favor é fácil, mas quando tem que se mudar o rumo do vento... Como fazer com que os que adotaram essa política sejam capazes de alterá-la? Em quem eles votam nessa eleição? Em quem o Paulo Bernardo vota? Em mim ou no Rui?”, disse, com ironia. “A eleição do Rui é, no máximo, uma renovação conservadora.”
 
ssim que entrou na clandestinidade, Rui Falcão e sua mulher foram para o Rio de Janeiro, onde arranjou um documento falso com novo nome: Rubens de Jesus Carvalho. Ele também usou os codinomes Antônio Carlos e Marcelo. Ali, juntaram-se ao casal Iara Prado e Antônio de Pádua Prado Júnior, o Paeco, também militantes da VAR-Palmares. Posteriormente, ambos passariam a trabalhar com o PSDB. Ela na área de políticas de educação, e ele como responsável pelas pesquisas eleitorais do partido.
O grupo passou a organizar um plano para instalar um aparato de imprensa no Rio Grande do Sul, onde havia relativa mobilidade para os clandestinos. A ideia era que Falcão comprasse uma tabacaria para dar ao grupo “vida legal”, já que não era procurado.

Alugaram um apartamento de temporada no Centro de Porto Alegre. Na mesma época, uma militante da VAR-Palmares foi presa durante um assalto a uma agência bancária. Torturada, ela revelou o endereço onde havia morado com o namorado – que viria a ser o primeiro marido de Dilma Rousseff, Cláudio Galeno de Magalhães Linhares – para despistar a repressão. Há dias, ela sabia, Galeno estava em Havana, após ter sequestrado um avião no Uruguai para ir a Cuba, e o apartamento estava vazio.

Na mesma tarde, um grupo de policiais tocou a campainha da casa de Rui Falcão. Quando ele abriu a porta, um deles lhe encostou uma arma na cabeça e o local foi invadido aos berros. Em pouco tempo, descobriram material “subversivo” e muito dinheiro. O grupo foi levado para o Dops de Porto Alegre. Falcão foi preso no apartamento que, coincidentemente, havia sido alugado previamente por companheiros de sua organização sem que ele soubesse.

Por falta de provas e pela sua evidente ignorância sobre a VAR-Palmares, a mulher de Falcão foi liberada. O casal Iara e Paeco – com quem Falcão jamais voltou a ter contato – foi mandado para a prisão na capital paulista. Ele foi transferido para a Ilha do Presídio, localizada a 4 quilômetros da costa gaúcha. Havia dez celas e um porão, chamado pelos presos de “fossa”, onde aconteciam as torturas. O lugar chegou a abrigar quarenta presos políticos. Foi ali que Falcão conheceu Carlos Araújo, ex-marido da presidenteDilma Rousseff, de quem se tornou próximo, e Fernando Pimentel, ministro do Desenvolvimento, que, aos 21 anos, havia participado do sequestro frustrado do cônsul americano na capital gaúcha.

Três meses depois, quando parte dos militantes foi presa em São Paulo, é que se teve certeza da participação de Falcão na VAR-Palmares. Até então, ele continuavaa negar seu envolvimento com a luta armada. Dizia que era um equívoco, que já havia se afastado do movimento, que era um jornalista com trabalho fixo. Não abriu a boca sobre nada ou ninguém, mas diz não julgar quem o tenha feito.

Em seu gabinete na sede do PT, Falcão evitava as perguntas sobre a tortura. “Eu não gosto de falar disso, não”, disse em tom cordial. Quis saber se ainda era algo muito doloroso ou se agia assim para evitar dramatizar o passado. “As duas coisas”, respondeu. E emendou: “Tem gente que ficou louca, tem gente que largou tudo, tem gente que se matou. Eu vivo bem, durmo bem. Cada um lida com isso de um jeito.” Em uma ocasião, foi a um psiquiatra, que lhe receitou um antidepressivo. “Foi péssimo, fiquei pior.”
 
e janeiro de 1970 a dezembro de 1973, Falcão ficou preso na ilha. Mantinha a cabeça ocupada com leituras, ginástica e xadrez. Podia receber visitas uma vez por semana, quando não ventasse – já que apenas uma barca fazia o transporte. “Dizem que a prisão é a melhor coisa para um revolucionário. Você aprende a resistir e tem muito tempo para ler”, brincou. Perguntei se ele havia participado de assaltos a banco, o que ele chama de “ações de expropriação”, ou se já havia disparado sua arma. “Se eu tivesse feito algo, também não iria te contar”, disse. “Eu não gosto de detalhar o que eu fiz ou o que os outros fizeram, é uma norma, nunca se sabe.” Comentei que, se houvesse um crime, já estaria prescrito. “Para os torturadores prescreveu, mas não para mim. Esses caras tinham que ser julgados, punidos. Eles gostariam muito de saber tudo o que eu fiz, como eu gostaria de saber tudo o que eles fizeram. Tem muitos que estão vivos, que têm herdeiros.”

Rui Falcão evitou fazer comentários sobre a Comissão Nacional da Verdade, que apura crimes cometidos durante a ditadura. “Teve aquela fala dos ministros, aquela coisa...” Em maio, José Eduardo Cardozo, ministro da Justiça, desautorizou publicamente membros da Comissão que cogitaram derrubar o parágrafo da Lei da Anistia que assegura a impunidade aos envolvidos em atos de tortura, morte e desaparecimento. “Aquilo foi um acinte”, limitou-se a dizer.

Quando deixou a cadeia, o presidente do PT tinha dores de cabeça lancinantes e crises de choro frequentes – o que nunca havia lhe ocorrido na prisão. Foi constatada uma disritmia cerebral atribuída aos inúmeros choques elétricos ou ao trauma psicológico. Uma das sequelas era o piscar contínuo e o revirar dos olhos em série, muitas vezes puxando o braço esquerdo como se tivesse encostado em algo quente. Anos depois, submeteu-se a um tratamento homeopático e acupuntura com um chinês. O eletroencefalograma deu normal. O tique arrefeceu, mas, em situações de estresse, volta com força.

Outro resquício do passado é que ele jamais se senta de costas para uma porta – seja num restaurante ou numa sala fechada, o que faz com que, muitas vezes, as pessoas se levantem para que ele se reacomode olhando para a entrada. Falcão foi enquadrado em cinco artigos da Lei de Segurança Nacional e condenado a um ano e meio de detenção. Como havia ficado preso quase três anos, a pena estava cumprida.

De volta a São Paulo, ele se restabeleceu com facilidade. Arrumou um emprego na TV Tupi e, depois, no Jornal da Tarde. Ali, trabalhou com Fernando Mitre, diretor de jornalismo da Band – com quem já protagonizou bate-bocas exaltados na negociação de regras de debates eleitorais na emissora. Quando acabou a Guerra do Vietnã, a editoria internacional precisava de reforço e Falcão, editor de economia, foi recrutado para ajudar no fechamento. “De repente, tinha um grupinho, tipo uma plenária, e o Rui dizendo que na organização capital–trabalho a falta de mão de obra era problema do patrão, e ele que se virasse para ajeitar a situação”, lembrou Mitre, entre risos.

No início dos anos 80, Rui Falcão começou a atuar no Sindicato dos Jornalistas, do qual concorreu à presidência e perdeu.Encontrava-se periodicamente com Dilma Rousseff, Carlos Araújo e outros companheiros da VAR-Palmares. Nessa época, passou a recolher assinaturas para a fundação do PT.
 
m seu livro História do PT, o historiador Lincoln Secco, da Universidade de São Paulo, defende que o PT repete as três fases que caracterizaram os partidos social-democratas na Europa. Em um primeiro momento, sendo a voz da luta operária, de conteúdo socialista e ação extraparlamentar, como a grevista. Em seguida, consolidando-se como partido de oposição de massa e formando um bolo parlamentar. E, por último, quando toma o poder, abandonando o ideário socialista, adotando práticas da velha política e do assistencialismo social.

Na Europa, o resultado foi que os partidos se transformaram em máquinas eleitorais. “O PT ainda tem as alas à esquerda que lhe dão um cunho ideológico, e o Brasil ainda temmuitos miseráveis que podem ser atingidos pelas ações de assistência social, mas, no rumo que vai, transformar-se em um partido totalmente eleitoral é uma questão de tempo”, disse-me Secco. Segundo ele, Rui Falcão é como “um José Dirceu sem o amor da militância”. “Ele ocupou o lugar deixado pelo José Dirceu, que conseguia controlar o partido com mão de ferro, sabia lidar com funcionários, militantes, controlava a base”, comentou. “Depois do José Dirceu, nenhum dos outros presidentes do PT conseguiu isso.”

Demitido do Jornal da Tarde“ sem qualquer explicação”, conforme disse, Falcão foi convidado para assumir o cargo de diretor de redação da revista Exame, na qual ficou de 1977 a 1988. Segundo ele, não havia incongruência ideológica entre ele e seu emprego. “Era um trabalho, e só.” Ficou famosa uma grande reportagem, editada por ele, sobre a greve dos bancários, cujo tom poderia ser interpretado como de apoio ao movimento. Foi chamado às falas pelo dono da Abril, Roberto Civita, que, no seu entender, fez “o sermão da montanha”. “Quis saber se tinha muito petista na redação, se eu já tinha ido a Cuba, se eu era socialista”, lembrou.

Em outra ocasião, mesmo com o cargo que lhe trazia vantagens como dólares de viagem, bônus e salário alto, ele assinou um abaixo-assinado por melhora salarial. “Não devia ter assinado porque eu era diretor”, admitiu. Novamente, foi chamado por Civita: “Falei que o erro era da empresa de ter um RH que, em vez de antecipar as reivindicações, pagava alguém para vasculhar a lista e achar meu nome no meio.” Tempos depois, foi demitido.

No final dos anos 90, Rui Falcão recebeu 1,2 milhão de reais a título de indenização por ter sido perseguido político. No pedido, afirmou ter sofrido “inúmeros percalços” na profissão por motivações políticas. No carro, a caminho do programa Roda Viva, da TV Cultura, em que seria entrevistado, ele comentou críticas que recebeu na ocasião. “Eu falei para quem me criticou: ‘Eu te coloco três anos numa cadeia e te dou o dinheiro, você quer trocar?’”, perguntou. “Obviamente, ninguém quis, não é?” Segundo ele, houve jornalistas, “como alguns do Pasquim”, que se aproveitaram do benefício sem terem sido perseguidos políticos. “A indenização foi um reconhecimento do Estado por crimes cometidos no passado. Eu tenho direito. E minha indenização foi assinada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso”, afirmou.

Com o dinheiro, Falcão comprou o apartamento onde vive, na Vila Madalena. Há alguns anos, também adquiriu uma casa – que hoje está à venda – no mesmo condomínio do amigo José Dirceu, em Vinhedo, a 80 quilômetros da capital paulista. Ele contou viver dos rendimentos como deputado estadual, que somam 17 mil reais, descontados os 3 mil que doa ao partido mensalmente. Quase na porta da emissora, Falcão comentou os rumores de que havia no PT um movimento para a candidatura de Lula em 2014. “Não tem isso de ‘Volta Lula’”, disse, grave. “Mas é evidente que, se no ano que vem a presidenta não estiver bem nas pesquisas, é natural que ele se apresente. Temos um projeto longo de mudar o país”, afirmou, fixando o olhar pelo vidro lateral do carro. “Mas isso não vai acontecer. Ela vai se recuperar nas pesquisas.”

Ao abandonar o jornalismo, Falcão passou a viver como funcionário do partido. Já foi presidente dos diretórios estadual e nacional, vice-presidente, secretário de Formação Política, deputado estadual e federal. Em 2001, foi nomeado secretário de Governo da prefeita Marta Suplicy. Notabilizou-se pelas habilidades no controle da distribuição de cargos na prefeitura. Um vereador paulista me contou que, logo após a eleição, recebeu um telefonema de Falcão dizendo que ele poderia indicar seis pessoas para o governo – oferta, segundo ele, recusada. “Mas muitos vereadores do nosso grupo toparam. Era uma maneira de ele manter o controle na Câmara – o que de fato ocorreu”, disse. Sobre sua passagem pela prefeitura, Falcão afirma que era exigente e cobrava das pessoas, e que “nunca houve qualquer denúncia da Câmara em relação a mim. Ao contrário, ainda ganhei título de cidadão paulistano por unanimidade”.
 
m 2010, foi eleito deputado estadual, com 175 mil votos. No ano seguinte, José Eduardo Dutra foi afastado da presidência do PT por motivos de saúde e Falcão assumiu interinamente o cargo. Durante o processo sucessório, o favorito era o senador Humberto Costa, de Pernambuco, mas o grupo de José Dirceu e Ricardo Berzoini entrou em campo. Rui Falcão era culto, discreto, sabia ouvir, conhecia Dilma Rousseff há 45 anos, era da ala paulista, tinha credibilidade e experiência para administrar conflitos internos. Era o perfil ideal.

“Ele é excelente negociador, cumpre acordos, não quer aparecer ou se beneficiar do cargo e tem uma disciplina de trabalho que o PT não via há muito tempo”, comentou o vereador José Américo, de sua tendência, a minoritária Novos Rumos. Assim que assumiu o comando do PT, Falcão passou a viajar pelo país para se inteirar dos diretórios municipais e estaduais. De Angra dos Reis a Itapipoca rodou,em seus cálculos, 300 mil quilômetros, superando seu indelével medo de avião. Cacifou-se junto às bases – há tempos abandonadas pelo comando nacional – e, principalmente, junto a Lula, que se surpreendeu com sua disciplina e eficiência. “O Rui articula muito bem os palanques estaduais, que é o que nos faz ganhar as eleições. O PT precisava de um presidente que tivesse saco e habilidade para se reunir cinco horas com a Executiva, três com meia dúzia no interior do Piauí, por aí vai. E ele tem”, disse Américo. “Fora isso, ele é um resolvedor de problemas. E não se desespera em momentos de crise.”

Quando perguntado sobre possíveis sucessores, Rui Falcão cita Valter Pomar e o ex-deputado estadual Renato Simões. “Mas eles têm que aprender a fazer mais concessões”, emenda. Com a direção do PT nacional, o mandato na Assembleia Legislativa ficou “baixo perfil”, um eufemismo para dizer que perdeu importância. “Uso a prerrogativa das quatro faltas abonadas por mês e, se tenho que me ausentar mais, isso é descontado no meu salário.” Um de seus projetos foi o que restringia a publicidade dirigida ao público infantil. “Todos os meus projetos são derrubados”, comentou.

Nas eleições presidenciais de 2010, Rui Falcão foi um dos coordenadores de campanha de Dilma Rousseff, tarefa dividida com o ex-prefeito de Belo Horizonte Fernando Pimentel – ambos amigos da candidata. A Lanza Comunicação, do jornalista Luiz Lanzetta, ligado a Pimentel, era responsável por contratar os jornalistas, peças-chave na estratégia de comunicação da campanha. A quatro meses das eleições, reportagens revelaram que Lanzetta montara um grupo paralelo para elaborar dossiês contra adversários, entre eles José Serra, do PSDB. Um deles sobre sua filha, Verônica Serra. À época, atribuiu-se a Rui Falcão ter vazado o esquema para a imprensa de forma a esvaziar o poder de Pimentel.

O núcleo de campanha entrou em crise. Lanzetta se afastou, Pimentel foi confinado às articulações em Minas Gerais e Falcão passou a ser visto com certa desconfiança. Antonio Palocci foi chamado para assumir o controle da comunicação da campanha nacional. “Entrei nessa história como laranja de uma briguinha interna. Como não sou de acusar pessoas e sabia que uma polêmica ainda maior poderia prejudicar a campanha da Dilma, matei o osso no peito e deixei”, disse. Na ocasião, Falcão chegou a confidenciar a interlocutores que se afastaria das funções no partido. “Alguém ou ‘alguéns’ me imputou essa responsabilidadepara me afastar do núcleo da campanha”, falou. “Mas quem me conhece sabe que eu nunca ia entrar numa operação tabajara dessas”, disse.
 
ram onze horas da manhã quando Nei Dante da Costa Falcão abriu a porta do escritório do deputado Cândido Vaccarezza, na avenida Paulista. Apesar de mais novo, ele aparenta uma década a mais que o irmão. Usava jaqueta jeans, pulôver surrado e tênis. Tem o bigode amarelado de nicotina, a pele com vincos profundos e um olhar desenganado. Com um molho de chaves na mão, ele explicou seu serviço. “Eu faço tudo aqui: abro porta, faço café, atendo telefone, anoto recado.” Não se lembrava da última vez que falara com o irmão, mas contou que fazia dezesseis anos que Falcão não visitava sua casa.

Embora ainda seja filiado ao PT, Nei Dante afirmou ter abandonado a militância. “Nós perdemos a luta lá atrás, quando achávamos que o povo ia fazer a revolução. E quando chegamos lá, foi totalmente diferente”, disse, ajeitando-se na cadeira de espaldar alto. “Acho que o PT mudou, se afastou da base, se elitizou. Antes, os núcleos tinham lavadeiras, motoristas de ônibus. Hoje, nem sei.” O responsável, segundo ele, teria sido José Dirceu, “quando impôs as alianças com qualquer partido”.

Na véspera, ele havia lido uma entrevista do irmão. “Era longa, só tinha pergunta cavernosa. Você lê, lê, chega no fim e diz: ‘O que ele disse mesmo?’ ‘O que isso quer dizer?’ Ele é muito bom.” Antes de nos despedirmos, Nei Dante me pediu para mostrar ao irmão tudo o que havia falado. “Eu não posso prejudicá-lo. Ele é um homem público e eu não sou ninguém.”
“Olha que beleza isso”, disse Rui Falcão, passando os olhos num texto da jornalista Maria Inês Nassif, publicado no jornal eletrônico GGN, em uma tarde no gabinete na sede do PT.

Ela afirmava que, se a vida do PT havia ficado mais difícil devido a uma relação distante com a presidente – ao contrário do que se tinha com Lula –, havia, finalmente, a oportunidade de o partido se emancipar do governo. Era possível voltar a ter uma agenda de ações partidárias próprias e não apenas ser um satélite do Palácio do Planalto. E citava Rui Falcão como o comissário do novo desafio. “É ótimo, estão falando bem de mim”, zombou. “É bom porque é a independência que devemos ter. Governo é governo e partido é partido. A crítica que se fazia à época em que o Genoíno foi presidente do PT é que era tudo muito misturado, tinha essa simbiose com o Planalto.” Ele me apontou um trecho do discursoque faria em Salvador, no qual dizia que uma das missões do partido era “apoiar nosso governo, com uma permanente e generosa vigilância crítica”. “Tá vendo, sempre tem uma distinçãozinha”, comentou, didaticamente.
 
m imenso painel com as cabeças de Dilma e Lula grudadas, como siameses inseparáveis, enfeitava o auditório em Salvador. Cerca de mil militantes, usando camisetas vermelhas e tirando foto com celulares, batiam palmas e assoviavam.
A pintura, que remetia aos cartazes das propagandas bolcheviques do início do século passado, trazia os rostos da dupla em direções opostas, como se vislumbrassem o porvir, rodeados por uma multidão com bandeiras do partido, uma família negra sorridente e um trabalhador de capacete feliz. Do lado de fora, uma centena de pessoas protestava pela redução da tarifa de ônibus, contra o programa Mais Médicos, por melhorias no Minha Casa Minha Vida. Durante cinco horas, a rua ficou bloqueada.

A mãe de santo do evento, na verdade, era a segunda na hierarquia do terreiro. Makota Valdina, em vez de bênção, fez uma longa ode a Lula, defendeu o “Fora, Feliciano” e apenas entoou o trecho de um canto africano. Contido e concentrado, Rui Falcão passou a ler o discurso, que havia rasurado até o último momento. Disse ser preciso romper “o cerco contra o PT” ungido pelos bancos, que controlavam o dinheiro; pelos latifundiários, que se opunham à reforma agrária; pelas empresas que apoiam o financiamento privado das campanhas; e pelos barões da mídia. “Esses grupos tentaram em 2005 sem sucesso”, disse, referindo-se ao mensalão, “mas ainda estão aí à espreita.” E improvisou: “Ninguém tem saudade daquele passado nefasto.” Em um momento, ele quase mobilizou a audiência. “Mexeu com a Dilma, mexeu...” A plateia ia emendar um “com a gente”, mas Falcão foi de “conosco”. Ao final, bradou: “Viva o Partido dos Trabalhadores!”

Quando Lula subiu ao palco, o auditório vibrou. Ao longo de cinquenta minutos, o ex-presidente contou casos, imitou pessoas, reviveu o passado de governante. Era o showman em ação. Como Falcão, ele também ressaltou a má vontade da elite, que “fica puta” de ver pobre com carro engarrafando o trânsito ou lotando os aeroportos. “Eu penso o que seria do Brasil sem a gente”, disse. “Eu poderia ter feito mais? Poderia. Mas nós fizemos muito já. E vamos fazer mais ainda.” Sem contar com o mesmo entusiasmo da plateia, Dilma Rousseff citou muitos números e estatísticas positivas para o governo e afirmou que o PT “vai governar ainda por mais dez anos”.

Às onze e meia da noite, Rui Falcão estava no jato para embarcar de volta a São Paulo. De 28 graus de temperatura baiana, esperavam-se 8 na chegada paulista. Os quatro passageiros comentavam o evento. “Teve um clima muito bom, agenda positiva, discurso afinado de ‘Vamos em frente’”, disse Carlos Henrique Árabe. O ex-presidente Lula, contaram, continuava a ter dificuldade em pronunciar “Rui”. Dizia sempre “Ruim” ou “Rio”. Deu-se início a mais uma rodada de casos protagonizados por Lula, o que provocou risos de admiração e escárnio.

Em seu discurso, Lula havia dito também que os militantes ficam “envergonhados quando deputado do PT faz isso ou aquilo” e que eram “coisas para se consertar”, já que “não nascemos para sermos iguaisaos outros [partidos]”. A fala culminava com a decisão tomada, na semana anterior, de afastar do Diretório Nacional José Dirceu, José Genoíno e João Paulo Cunha. “No começo do ano, eu havia dito ao Lula que, se não admitíssemos em público ter feito coisas erradas, era impossível podermos falar sobre o julgamento”, disse Falcão, referindo-se ao processo do mensalão. Na reunião do Diretório Nacional, disseram, José Dirceu havia sido “ignorado”, o que sinalizava o fim de uma fase no partido.

Bandejas de pães e frios foram colocadas entre os quatro passageiros. Abriu-se uma garrafa de vinho tinto sul-africano. Entre os petistas, ele foi considerado intomável. (Em um voo anterior, haviam bebido o supertoscano Tignanello, cuja comparação era injusta, explicaram.) “Nesses anos, o PT fez muito proselitismo”, disse Falcão. “Também nos afastamos dos intelectuais, que são os formadores de opinião, e dos movimentos culturais”, disse. Ele citou a Marcha da Maconha como exemplo de tema moderno para se reaproximar da sociedade. “É um debate no qual poderíamos pensar em entrar.”

Às duas da manhã, vinte horas depois do embarque, o avião pousou em Guarulhos. Sob protestos, Falcão declarou que estaria logo cedo no partido. Quis saber se ele sinceramente acreditava que conseguiriam promover as reformas e aplacar as ruas. “Se não der certo o plebiscito, vamos continuar tentando por outras vias. Uma hora a sociedade muda. Ninguém imaginava uma mulher na Presidência da República. E só o pt é capaz disso.”

15 de novembro de 2013
Piauí

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