Artigos - Cultura
Quem quer que não se adapte à tiranização promovida por meio da imanentização corporal dos transcendentais será considerado um outsider do “sistema social” desenhado pelos engenheiros do novo mundo.
Reconheço que o título do presente artigo remete-nos tanto a um clássico do cinema como à uma magnífica obra do historiador Paul Johnson: “Tempos Modernos”. Diferentemente deste, todavia, não vou descer aos problemas intelectuais que marcaram a trajetória biográfica e investigativa de inúmeros arautos da modernidade, como Marx e Rousseau (trabalho realizado na obra ‘Os Intelectuais’). Não tenho essa pretensão. Meu intento é o de discernir um problema gravíssimo de nossa era: o do rebaixamento dos “transcendentais” provocado pela cultura de massas.
Os cenários das narrativas que compõem a imaginação humana são, em grande medida, oferecidos pela cultura em geral. Atualmente, a imaginação humana encontra na cultura de massas sua fonte mais imediata. Na cultura clássica, eram a literatura e a poesia os meios dos quais se valia o ser humano para aumentar progressivamente seu horizonte de percepção da realidade. A ficção servia como ponte entre o real e o possível. Hoje, porém, é no impacto sobre os sentidos que a absorção de símbolos, imagens e projeções se move para o interior da memória. Esse impacto retrata um problema de nosso tempo que acarreta na vulgarização: é que, na constituição da intelecção, na relação necessária ente o sensível e o inteligível, o inteligível ascende para encontrar na totalidade discreta do real a formalização dos entes, a saber, o conhecimento substancial das entidades; hoje, a cultura de massas privilegia o sensível em detrimento do inteligível, tomando como suposta a mera observação empírica, a apreensão dos dados sensíveis adquiridos pelo impacto sobre as potências sensitivas.
No fundo, se está a estabelecer juízos sobre a realidade desde nosso ponto de vista animal: nossas faculdades concupiscíveis e irascíveis estão ditando as regras do jogo na definição do que as coisas são, como devemos agir, e o que devemos produzir. Animalizamos nossa “impressão do real”, parafraseando Xavier Zubiri. A televisão, o rádio, e os meios de comunicação de massa, em geral, são utilizados para oferecer toda sorte de programas voltados para a supervalorização do corpo.
Não temos uma “teologia do corpo”, como afirmava o Papa João Paulo II, de saudosa memória, querendo com esta expressão afirmar uma forma de compreender o corpo humano inteiramente baseada na racionalidade prática, ou seja, no vínculo necessário de nossas potências da alma relativas ao corpo, com os bens humanos que dão forma e realidade a tudo aquilo que torna nossa vida mais completa, plena e boa. O que temos é uma filosofia do corpo naquilo que o corpo possui apenas enquanto termo do movimento e das operações, independentemente de sua relação com o intelecto. Assim, rebaixamos nossa condição ao que nos torna semelhantes aos animais irracionais, privilegiando meios de satisfazer essas faculdades.
No fundo, se está a estabelecer juízos sobre a realidade desde nosso ponto de vista animal: nossas faculdades concupiscíveis e irascíveis estão ditando as regras do jogo na definição do que as coisas são, como devemos agir, e o que devemos produzir. Animalizamos nossa “impressão do real”, parafraseando Xavier Zubiri. A televisão, o rádio, e os meios de comunicação de massa, em geral, são utilizados para oferecer toda sorte de programas voltados para a supervalorização do corpo.
Não temos uma “teologia do corpo”, como afirmava o Papa João Paulo II, de saudosa memória, querendo com esta expressão afirmar uma forma de compreender o corpo humano inteiramente baseada na racionalidade prática, ou seja, no vínculo necessário de nossas potências da alma relativas ao corpo, com os bens humanos que dão forma e realidade a tudo aquilo que torna nossa vida mais completa, plena e boa. O que temos é uma filosofia do corpo naquilo que o corpo possui apenas enquanto termo do movimento e das operações, independentemente de sua relação com o intelecto. Assim, rebaixamos nossa condição ao que nos torna semelhantes aos animais irracionais, privilegiando meios de satisfazer essas faculdades.
Na referida constituição da inteligência, o lado inteligível cede lugar, na cultura, ao sensível. O que chamávamos “bens humanos” conhecidos pelo intelecto entende-se agora como “bens” para o corpo, para sua manutenção, nutrição e crescimento, bem como à sua satisfação.
Em uma cultura assim delineada, os valores permanentes e os modos corretos de agir socialmente são abandonados em virtude do “corpo”. Na teologia de Karol Wojtyla, o corpo é entendido tanto como campo de batalha quanto meio de santificação. Ou seja, a beleza, a bondade e a verdade, presentes na alma, alcançam suas expressões mais imanentes no corpo, sem o qual a alma não encontra abrigo histórico. O corpo, assim, manifesta à inteligência humana uma imagem primeira – mesmo que distorcida – da beleza, da bondade e da verdade do ente Divino.
Hoje, porém, o que se entende por beleza, bondade e verdade encontra sua origem na noção imanentista das potências concupiscíveis e irascíveis, sendo o corpo objeto de “admiração”, “desejo” e “manipulação”. No campo estético, é a cultura da aparência que entra em cena. No campo moral, é a utilização do corpo para fins de satisfazer o próprio corpo, independentemente dos resultados angariados. No campo científico, o corpo passa a ser usado para fins de experimento, independentemente da destruição de sua parte mais nobre, a saber, da alma, que nesse diapasão é desconsiderada para dar lugar ao “avanço científico e tecnológico”.
É notável que, quando rebaixamos os transcendentais para tratá-los como propriedades do corpo, passamos a tratar o corpo como fim de si mesmo. No campo estético, por exemplo, se o corpo é fim de si mesmo, o que de fato passa a importar na vida é “ficar sarado” e ter saúde. Nada contra “ter saúde”. O problema começa quando, em nome dela, mutilamos o corpo para enquadrá-lo num ideal, em uma imagem que projetamos como “perfeita” para os padrões sociais. No campo moral, lugar em que os bens humanos ocupam posição de destaque por serem fundamentais para a felicidade e paz sociais, passamos a tarifar nossas relações a partir do interesse, daquilo que oferece maior vantagem. A satisfação hedonista imediata é um critério superior para os termos da cultura de massas atual, em detrimento da moral e dos bons costumes, considerados “piegas” em nossa era. No campo científico, a verdade é tomada como “observação sensível” extraída de experimentos, razão pela qual as potências sensíveis adquirem considerável importância na definição do que é e do que não é em termos científicos e filosóficos. Assim, a cultura científica moderna acaba, salvo raríssimas exceções, por cair no velho erro que contaminou boa parte dos “sistemas” filosóficos modernos: o de deduzir valores de fatos. Tanto no campo moral quanto no científico, a falácia naturalista é tomada como categoria incontestável.
Em todos esses casos, o que assistimos é o reinado soberano da opinião pública. Quem quer que não se adapte à tiranização promovida por meio da imanentização corporal dos transcendentais será considerado um outsider do “sistema social” desenhado pelos engenheiros do novo mundo. O totalitarismo em que estamos vivendo já adentrou as portas dos nossos sentidos, modificando os padrões de inteligibilidade do que conhecemos. A mera aceitação, via de regra, de que “não existe realidade” em cursos acadêmicos em geral já é uma demonstração cabal da estupidez a que essa tiranização submeteu o homem pós-moderno.
01 de setembro de 2013
Marcus Boeira
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