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A crise é generalizada porque é uma crise dos fundamentos. O país perdeu a capacidade de identificar as referências básicas em relação às quais se posicionar. Uma das mais básicas dessas referências básicas é o direito de propriedade. A brasileira, como toda sociedade deseducada, tem apenas a si mesmo como referência. Age como se o mundo tivesse começado com ela. E como o Brasil começou com apenas 13 proprietários, a defesa da propriedade privada nunca foi popular por aqui.
Os 13 proprietários do Brasil eram, porem, apenas os prepostos do proprietário unico de Portugal e seu império ultramarino. Nas monarquias absolutistas “soberania” e “propriedade” (ou patrimônio) eram dois nomes da mesma coisa, ou melhor, da mesma pessoa. Tudo pertencia ao rei. O governante despótico não tinha de ir a uma assembléia de represetantes do povo para pedir dinheiro. A sociedade inteira é que tinha de ir a ele para suplicar que lhe deixasse as migalhas do pão que ela amassava.
A única exceção foi o rei inglês. Não é por questão de gosto que na Inglaterra os castelos são de pedra e madeira e os franceses, espanhóis, russos ou portuguêses são de ouro. Numa luta que vai fazer mil anos desde a Carta Magna de 1215, o rei inglês foi mantido sempre e cada vez mais “pobre” e mais dependente do Parlamento para manter seus luxos e sustentar suas guerras. Cada novo pedido de sua majestade por recursos foi negociado em troca de uma garantia a mais de proteção da propriedade de cada indivíduo da plebe sobre o resultado do seu trabalho contra o poder do rei e seus “nobres” de tomá-lo para si, até que, a partir de 1680, o Parlamento ganhasse a supremacia de que desfruta até hoje.

A propriedade e a liberdade individuais emergiram, portanto, de uma luta travada entre um corpo de representantes do povo, que só tinha de seu a sua capacidade de trabalho, e um déspota. Onde o rei ou seu equivalente foram compelidos a depender do parlamento ou seu equivalente como fonte de alimentação da sua renda, a propriedade individual foi ganhando proteção cada vez mas sólida e a liberdade floresceu. Onde aconteceu o contrário o resultado foi o inverso.
A propriedade dos meios de produção onde esse tipo de processo histórico ocorreu não é um privilégio, ao contrário, é uma responsabilidade que atrela o seu titular ao processo de produção. Os proprietários sem proteção de “reis” são compelidos pelo mercado a voltar a sua propriedade para a melhor satisfação dos consumidores, e os que forem lentos ou ineptos nesse processo, serão penalizados por prejuízos e, se não aprenderem a lição, pela perda dessa propriedade.
“Mas é precisamente dessa escravidão que é preciso libertar o homem”, dirá um francês ou um aluno dos franceses da USP dos tempos em que ela existia como universidade. A alternativa é a privilegiatura, esse nosso feudalismo remasterizado, lembrará este escriba. Não ha terceira via...

Hernando de Soto, no seu livro clássico “O mistério do Capital: porque o capitalismo triunfou no Ociente e falhou nos outros lugares”, deixou a teoria de lado e foi a campo fazer medições do valor da obra visivel dos contingentes mais pobres das populações do Cairo, Lima, Manila, Cidade do México e Port-au-Prince (Haiti). Os resultados foram surpreendentes. No Haiti o valor dos imóveis rurais e urbanos ocupados por essa população e as construções neles existentes montaram a 5,2 bilhões de dólares em valores de 1995, quatro vezes mais que os bens de todas as empresas operando legalmente no país, nove vezes o valor de todas as propriedades do governo e 158 vezes o valor de todos os investimentos estrangeiros diretos feitos no Haiti em toda a sua história. No Peru, os 74 bilhões de dolares medidos equivaliam a cinco vezes o valor de todas as empresas com ações na bolsa de Lima, 11 vezes o de todas as empresas privatizáveis do governo peruano, 14 vezes mais que todo o investimento estrangeiro feito no país ao longo de toda a sua história. Cairo, Cidade do Mexico e Manila deram resultados ainda mais astronômicos. O livro registra uma menção ao Brasil cuja industria imoboliária passava por uma forte crise naquele momento mas as vendas de cimento batiam recordes todos os meses. O “favelão nacional”, hoje de dimensão continental, estava em plena construção...

A massa miserável precisa, portanto, da garantia da propriedade para apropriar-se do resultado do seu esforço e sair da miséria. A questão é identificar a ferramenta política capaz de transferir o poder das mãos de quem aparelha a força do estado para apropriar-se do resultado do trabalho alheio para as de quem precisa da proteção do estado contra esse tipo ancestral de rapinagem. E como o nosso Poder Judiciário demonstra todos os dias com “autos de fé” contra os hereges do “sistema” ou simplesmente pela força dos seus holerites, manda no estado quem tem o poder de contratar e, principalmente, de “demitir” políticos e funcionários públicos.
04 de junho de 2019
Artigo para O Estado de S. Paulo de 4/6/2019
Vespeiro
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