"É comum que progressistas justifiquem sua posição ideológica com base na empatia com os mais desafortunados e defesa da igualdade. O apreço pela proteção dos mais pobres e a preocupação com a opressão sofrida por minorias são, de forma ordinária, os fundamentos para que sejam favoráveis ao chamado Estado de bem-estar social.
A ideia do Estado-assistencial trata-se justamente de ajudar os mais pobres. Com recursos obtidos por meio de impostos, o poder público deve sustentar uma rede de escolas, hospitais, moradia e previdência, entre outros serviços que podem variar de um país para outro. Nesse sentido, ao dispor sobre como será organizado o orçamento nas finanças do Estado brasileiro, a Constituição de 1988 estabelece que uma de suas funções é a redução das desigualdades sociais.
Atualmente 54,8 milhões de brasileiros vivem abaixo da linha da pobreza segundo o IBGE. Significa dizer que um a cada quatro habitantes não tem renda suficiente para atender suas necessidades básicas, como alimentação, habitação, transporte e vestuário. O percentual aumentou após a maior recessão da história brasileira, mas é bom lembrar que a proporção de brasileiros em situação de vulnerabilidade social no início do século era o dobro da atual.
Os defensores de um Estado de bem-estar social o justificam argumentando que a neutralidade estatal em face dos negócios privados agravou as diferenças econômicas a partir das revoluções do século XVIII. Assim, o Estado passou a agir como mediador das diferenças econômicas, suprindo necessidades a partir de programas governamentais e benefícios sociais.
No entanto, como o que importa não são as intenções das ações, mas sim suas consequências, defender a existência de um Estado provedor para amparar os mais pobres não significa que isso vai beneficiá-los. Mesmo que você considere que a abstenção do Estado apregoada pelos liberais do século XIX não seja o melhor caminho a ser seguido, é preciso reconhecer que nada garante que todas as medidas inseridas no aparato que compõe o Estado de bem-estar social priorizarão a ponta mais economicamente vulnerável da população, reduzindo, de fato, a desigualdade.
O que dizem os dados: Estado de bem-estar social para a classe média
Quando o Estado de bem-estar social começou a surgir na década de 1950, havia vozes críticas a ele. Uma delas, do jurista e economista francês Bertrand de Jouvenel, argumentava que, se algum grupo social eventualmente se beneficiasse com o inchaço do Estado, provavelmente seria a classe média, a despeito das políticas públicas serem vendidas como redistribuição de renda aos mais pobres.
É o que ocorre no caso brasileiro: em vez de ajudar verdadeiramente os mais pobres, nosso Estado contribui diretamente para uma grande fração da desigualdade — e quem reconhece isso é o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, uma fundação do próprio Governo Federal.
Isso ocorre porque toda essa estrutura precisa ser custeada, e, analisando os dados, verifica-se que no complexo sistema tributário nacional os 10% mais pobres pagam proporcionalmente 44,5% mais impostos do que os 10% de maior renda.
Ainda assim, grande parte das políticas sociais financiadas com esse dinheiro não beneficiam os brasileiros com menor renda: levantamento do Banco Mundial estimou que o Brasil gasta apenas 12,1% do PIB com os 40% mais pobres, havendo um benefício desproporcional aos mais ricos.
Dessa forma, há diversas ações patrocinadas pelo Estado brasileiro que, embora vendidas por burocratas como tendo finalidade “social”, dificilmente têm outro resultado que não o aumento da concentração de renda.
Abaixo selecionamos os principais exemplos de privilégios que beneficiam a parcela de maior renda dos brasileiros, mesmo sendo arcados principalmente pelos mais pobres.
Funcionalismo público
Cerca de metade da população brasileira vive sem acesso a coleta de esgoto. Estima-se que o custo para a universalização do saneamento básico no país é da ordem de R$ 440 bilhões. A média de investimento entre 2014 e 2016 ficou em R$ 13 bilhões, abaixo da meta do Plano Nacional de Saneamento Básico, que é de 20 bilhões até 2033. E, enquanto pessoas morrem por falta de tratamento adequado, a União despendeu, no ano de 2017, R$ 725 bilhões apenas com o pagamento de seus servidores ativos — cerca de 10% do PIB. Por que tamanho gasto?
Recente estudo de Naercio Menezes Filho e Gabriel Nemer Tenoury demonstrou que, entre 1995 e 2015, a diferença entre o salário por hora médio recebido pelos servidores federais e pelos trabalhadores do setor privado aumentou de 50% para 93%. Em toda a Administração Pública nacional, os servidores públicos respondem por pouco mais de 10% da força de trabalho, mas possuem 19% da renda total. Essa diferença é maior no Brasil que o verificado em outros países da OCDE.
O estudo concluiu ainda que a política salarial do funcionalismo apresentou na última década uma constante elevação dos salários públicos, independentemente se o momento era de bonança econômica ou recessão. Há, portanto, uma sobreremuneração da maior parte dos servidores públicos, o que contribui para 24% da desigualdade de renda nacional.
Uma explicação para isso, segundo o economista Marcos Lisboa, é o direito de greve do servidor público. Ele permite que funcionários públicos tenham um poder de barganha desproporcional ao dos demais setores, obtendo assim condições de trabalho e remunerações muito superiores às de ocupações equivalentes no setor privado. Boa parte dos servidores públicos federais possuem remuneração próxima aos 1% mais ricos do país.
Vale ressaltar que servidores públicos contam com um benefício ausente na iniciativa privada: a estabilidade. Assim, faria sentido eles até serem sub-remunerados em relação à iniciativa privada, mas essa lógica não vigora no Brasil.
Previdência Social: nem previdência, nem social
Mais da metade do orçamento da União é destinado à Previdência Social, mas a diferença entre as contribuições previdenciárias dos servidores ativos e a despesa com 980 mil aposentados e pensionistas da União somou quase 93 bilhões de reais. A despesa da União com a aposentadoria de menos de um milhão de servidores supera o valor de todos os benefícios pagos pelo INSS a quase 33 milhões de indivíduos.
Cada servidor público que se aposenta custa o triplo de um brasileiro que fez carreira na iniciativa privada.
A PEC da reforma da previdência que tramita no Congresso tem servido para realizar um debate importante: regras de aposentadoria por tempo de contribuição beneficiam trabalhadores com maior salário e carteira assinada, em detrimento dos mais pobres que se aposentam por idade.
De acordo com o Nobel de economia Milton Friedman, a previdência social é um rótulo enganoso: "não é social e nem é previdência, é apenas um programa ruim que usa impostos para prover benefícios injustos.”
A reforma original proposta pelo governo Bolsonaro busca tornar mais equânime essa despesa, mas tem enfrentado forte resistência pelos grupos privilegiados.
Universidade pública é coisa de rico
As coisas não melhoram muito na educação. O Estado brasileiro escolheu por priorizar a educação superior, preterindo o ensino básico. Para se ter ideia, para cada estudante em uma universidade pública, em média, seria possível manter quatro estudantes de ensino médio ou fundamental na escola.
Essa priorização beneficia os mais ricos, pois quase metade das vagas das universidades públicas são ocupadas pela classe alta, o dobro de sua representação na sociedade. Apenas 8,4% das vagas são ocupadas pela classe baixa, dois terços subestimada nas universidades. Tudo isso com as cotas já em vigor.
Subsidiar a educação superior dos mais ricos enquanto os mais pobres sequer terminam o ensino médio resulta em transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos. É uma despesa socialmente regressiva.
Essa priorização do gasto público em educação no ensino superior contraria o trabalho de James Heckman, laureado prêmio Nobel em 2000. Ele demonstrou o benefício social do investimento em cada estágio da educação: para haver maior retorno social, deve-se investir em educação de base. Exatamente o oposto do que tem sido feito no Brasil.
Uma proposição para reverter esse quadro seria instituir mensalidades nas universidades públicas federais para aqueles que podem pagar, com bolsas condicionais à renda familiar per capita do estudante ingressante. Afinal, custear a educação de quem pode arcar com ela é uma política pública tola e injusta.
Outro exemplo dentro da esfera educacional de despesa socialmente regressiva foi o Ciências Sem Fronteiras, que custeava o intercâmbio de estudantes da graduação para universidades do exterior. A despesa para os cofres públicos com cada um dos 35 mil beneficiários em 2015 foi de R$ 105.714,29. Enquanto isso, o valor destinado com a alimentação de quase 40 milhões de alunos custou, individualmente, R$ 94,62. O impacto orçamentário de ambas as políticas públicas foi, naquele ano, de R$ 3,7 bilhões, mas enquanto o primeiro beneficiou os de maior renda, o segundo era destinado aos mais brasileiros pobres.
O Estado de bem-estar social não é falho apenas no Brasil
Essa discrepância entre o discurso prometido pelos defensores do Estado de Bem-Estar e os resultados práticos não é exclusividade do Brasil.
O economista Dennis Mueller analisou as nações da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o resultado foi surpreendente: mesmo se tratando do grupo de países com as melhores instituições econômicas, foi constatado que as transferências fiscais destinadas ao quintil de maior renda são maiores do que as que chegam aos 20% mais pobres em países como França, Itália, Luxemburgo e Suécia. Ademais, na grande maioria dos países estudados, mais da metade da transferência fiscal vai para a classe média.
Essas evidências acabaram sedimentando a chamada “Lei de Director”, segundo a qual “os gastos públicos são feitos para beneficiar a classe média e são financiados com impostos bancados em grande parte pelos pobres e pelos ricos”.
A regra, portanto, é a de que serviços públicos, gratuitos e universais frequentemente priorizam a classe média, e não os mais pobres. Trata-se do mito do “Governo Robin Hood“, aquela ideia de que o governo toma dinheiro dos mais ricos para beneficiar os pobres.
A explicação é a de que a classe média é a que possui maior poder de influência política entre todos os grupos de renda, não a camada mais pobre. Já que ela possui maior poder político, consegue formatar políticas públicas que beneficiem seu grupo.
90% dos brasileiros acredita estar na metade mais pobre da população, segundo o Datafolha. Isso torna particularmente mais difícil fazer reformas em políticas públicas, pois a percepção é a de que “os ricos são os outros, já que sou mais pobre, devo ser beneficiado pelo governo”. O economista francês Frédéric Bastiat dizia que “o Estado é a grande ficção por meio da qual todos tentam viver às custas de todos”. Em um mundo de recursos escassos, governar é fazer escolhas, e, ao possibilitar a instituição de alguns privilégios, abre-se a porta para demandar-se outros.
É bom salientar que há exemplos de boas políticas públicas focalizadas nessa camada mais pobre, como o Bolsa Família e o Prouni, mas ainda são exceções dentro de nosso orçamento. Decisões mais recentes, como o fim do Ciência Sem Fronteiras, as mudanças de regras no Fies e o fim da TJLP do BNDES são exemplos de avanços, no sentido de que eram políticas públicas que não beneficiavam os mais pobres.
Vale salientar que antes da ascensão do Estado de bem-estar não significa que as pessoas mais vulneráveis eram completamente desprovidas de cuidados. Ademais, países que possuem menores impostos possuem caridade maior, conforme se correlaciona no World Giving Index, elaborado pela Charities Aid Foundation. Quando há um aparato prestacional, há uma espécie de terceirização dos indivíduos para com o Estado na ajuda que se dá a quem precisa. É uma espécie de efeito crowding out, isto é, quando o aumento da participação do Estado em uma área afeta significativamente a demanda ou a oferta privada naquele mercado.
Todavia, criticar o modelo de Bem-Estar Social tradicional não precisa significar ser contra qualquer política redistributiva ou serviço gratuito, mas reconhecer que o atual modelo falha em atingir seus objetivos declarados. Esse é o primeiro passo para que reformas institucionais socialmente mais justas possam ser feitas. Mesmo que afetem determinados grupos de interesse, a sociedade como um todo será beneficiada ao final desse processo."
08 de abril de 2019
Luan Sperandio, Gazeta do Povo, PR
A ideia do Estado-assistencial trata-se justamente de ajudar os mais pobres. Com recursos obtidos por meio de impostos, o poder público deve sustentar uma rede de escolas, hospitais, moradia e previdência, entre outros serviços que podem variar de um país para outro. Nesse sentido, ao dispor sobre como será organizado o orçamento nas finanças do Estado brasileiro, a Constituição de 1988 estabelece que uma de suas funções é a redução das desigualdades sociais.
Atualmente 54,8 milhões de brasileiros vivem abaixo da linha da pobreza segundo o IBGE. Significa dizer que um a cada quatro habitantes não tem renda suficiente para atender suas necessidades básicas, como alimentação, habitação, transporte e vestuário. O percentual aumentou após a maior recessão da história brasileira, mas é bom lembrar que a proporção de brasileiros em situação de vulnerabilidade social no início do século era o dobro da atual.
Os defensores de um Estado de bem-estar social o justificam argumentando que a neutralidade estatal em face dos negócios privados agravou as diferenças econômicas a partir das revoluções do século XVIII. Assim, o Estado passou a agir como mediador das diferenças econômicas, suprindo necessidades a partir de programas governamentais e benefícios sociais.
No entanto, como o que importa não são as intenções das ações, mas sim suas consequências, defender a existência de um Estado provedor para amparar os mais pobres não significa que isso vai beneficiá-los. Mesmo que você considere que a abstenção do Estado apregoada pelos liberais do século XIX não seja o melhor caminho a ser seguido, é preciso reconhecer que nada garante que todas as medidas inseridas no aparato que compõe o Estado de bem-estar social priorizarão a ponta mais economicamente vulnerável da população, reduzindo, de fato, a desigualdade.
O que dizem os dados: Estado de bem-estar social para a classe média
Quando o Estado de bem-estar social começou a surgir na década de 1950, havia vozes críticas a ele. Uma delas, do jurista e economista francês Bertrand de Jouvenel, argumentava que, se algum grupo social eventualmente se beneficiasse com o inchaço do Estado, provavelmente seria a classe média, a despeito das políticas públicas serem vendidas como redistribuição de renda aos mais pobres.
É o que ocorre no caso brasileiro: em vez de ajudar verdadeiramente os mais pobres, nosso Estado contribui diretamente para uma grande fração da desigualdade — e quem reconhece isso é o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, uma fundação do próprio Governo Federal.
Isso ocorre porque toda essa estrutura precisa ser custeada, e, analisando os dados, verifica-se que no complexo sistema tributário nacional os 10% mais pobres pagam proporcionalmente 44,5% mais impostos do que os 10% de maior renda.
Ainda assim, grande parte das políticas sociais financiadas com esse dinheiro não beneficiam os brasileiros com menor renda: levantamento do Banco Mundial estimou que o Brasil gasta apenas 12,1% do PIB com os 40% mais pobres, havendo um benefício desproporcional aos mais ricos.
Dessa forma, há diversas ações patrocinadas pelo Estado brasileiro que, embora vendidas por burocratas como tendo finalidade “social”, dificilmente têm outro resultado que não o aumento da concentração de renda.
Abaixo selecionamos os principais exemplos de privilégios que beneficiam a parcela de maior renda dos brasileiros, mesmo sendo arcados principalmente pelos mais pobres.
Funcionalismo público
Cerca de metade da população brasileira vive sem acesso a coleta de esgoto. Estima-se que o custo para a universalização do saneamento básico no país é da ordem de R$ 440 bilhões. A média de investimento entre 2014 e 2016 ficou em R$ 13 bilhões, abaixo da meta do Plano Nacional de Saneamento Básico, que é de 20 bilhões até 2033. E, enquanto pessoas morrem por falta de tratamento adequado, a União despendeu, no ano de 2017, R$ 725 bilhões apenas com o pagamento de seus servidores ativos — cerca de 10% do PIB. Por que tamanho gasto?
Recente estudo de Naercio Menezes Filho e Gabriel Nemer Tenoury demonstrou que, entre 1995 e 2015, a diferença entre o salário por hora médio recebido pelos servidores federais e pelos trabalhadores do setor privado aumentou de 50% para 93%. Em toda a Administração Pública nacional, os servidores públicos respondem por pouco mais de 10% da força de trabalho, mas possuem 19% da renda total. Essa diferença é maior no Brasil que o verificado em outros países da OCDE.
O estudo concluiu ainda que a política salarial do funcionalismo apresentou na última década uma constante elevação dos salários públicos, independentemente se o momento era de bonança econômica ou recessão. Há, portanto, uma sobreremuneração da maior parte dos servidores públicos, o que contribui para 24% da desigualdade de renda nacional.
Uma explicação para isso, segundo o economista Marcos Lisboa, é o direito de greve do servidor público. Ele permite que funcionários públicos tenham um poder de barganha desproporcional ao dos demais setores, obtendo assim condições de trabalho e remunerações muito superiores às de ocupações equivalentes no setor privado. Boa parte dos servidores públicos federais possuem remuneração próxima aos 1% mais ricos do país.
Vale ressaltar que servidores públicos contam com um benefício ausente na iniciativa privada: a estabilidade. Assim, faria sentido eles até serem sub-remunerados em relação à iniciativa privada, mas essa lógica não vigora no Brasil.
Previdência Social: nem previdência, nem social
Mais da metade do orçamento da União é destinado à Previdência Social, mas a diferença entre as contribuições previdenciárias dos servidores ativos e a despesa com 980 mil aposentados e pensionistas da União somou quase 93 bilhões de reais. A despesa da União com a aposentadoria de menos de um milhão de servidores supera o valor de todos os benefícios pagos pelo INSS a quase 33 milhões de indivíduos.
Cada servidor público que se aposenta custa o triplo de um brasileiro que fez carreira na iniciativa privada.
A PEC da reforma da previdência que tramita no Congresso tem servido para realizar um debate importante: regras de aposentadoria por tempo de contribuição beneficiam trabalhadores com maior salário e carteira assinada, em detrimento dos mais pobres que se aposentam por idade.
De acordo com o Nobel de economia Milton Friedman, a previdência social é um rótulo enganoso: "não é social e nem é previdência, é apenas um programa ruim que usa impostos para prover benefícios injustos.”
A reforma original proposta pelo governo Bolsonaro busca tornar mais equânime essa despesa, mas tem enfrentado forte resistência pelos grupos privilegiados.
Universidade pública é coisa de rico
As coisas não melhoram muito na educação. O Estado brasileiro escolheu por priorizar a educação superior, preterindo o ensino básico. Para se ter ideia, para cada estudante em uma universidade pública, em média, seria possível manter quatro estudantes de ensino médio ou fundamental na escola.
Essa priorização beneficia os mais ricos, pois quase metade das vagas das universidades públicas são ocupadas pela classe alta, o dobro de sua representação na sociedade. Apenas 8,4% das vagas são ocupadas pela classe baixa, dois terços subestimada nas universidades. Tudo isso com as cotas já em vigor.
Subsidiar a educação superior dos mais ricos enquanto os mais pobres sequer terminam o ensino médio resulta em transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos. É uma despesa socialmente regressiva.
Essa priorização do gasto público em educação no ensino superior contraria o trabalho de James Heckman, laureado prêmio Nobel em 2000. Ele demonstrou o benefício social do investimento em cada estágio da educação: para haver maior retorno social, deve-se investir em educação de base. Exatamente o oposto do que tem sido feito no Brasil.
Uma proposição para reverter esse quadro seria instituir mensalidades nas universidades públicas federais para aqueles que podem pagar, com bolsas condicionais à renda familiar per capita do estudante ingressante. Afinal, custear a educação de quem pode arcar com ela é uma política pública tola e injusta.
Outro exemplo dentro da esfera educacional de despesa socialmente regressiva foi o Ciências Sem Fronteiras, que custeava o intercâmbio de estudantes da graduação para universidades do exterior. A despesa para os cofres públicos com cada um dos 35 mil beneficiários em 2015 foi de R$ 105.714,29. Enquanto isso, o valor destinado com a alimentação de quase 40 milhões de alunos custou, individualmente, R$ 94,62. O impacto orçamentário de ambas as políticas públicas foi, naquele ano, de R$ 3,7 bilhões, mas enquanto o primeiro beneficiou os de maior renda, o segundo era destinado aos mais brasileiros pobres.
O Estado de bem-estar social não é falho apenas no Brasil
Essa discrepância entre o discurso prometido pelos defensores do Estado de Bem-Estar e os resultados práticos não é exclusividade do Brasil.
O economista Dennis Mueller analisou as nações da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o resultado foi surpreendente: mesmo se tratando do grupo de países com as melhores instituições econômicas, foi constatado que as transferências fiscais destinadas ao quintil de maior renda são maiores do que as que chegam aos 20% mais pobres em países como França, Itália, Luxemburgo e Suécia. Ademais, na grande maioria dos países estudados, mais da metade da transferência fiscal vai para a classe média.
Essas evidências acabaram sedimentando a chamada “Lei de Director”, segundo a qual “os gastos públicos são feitos para beneficiar a classe média e são financiados com impostos bancados em grande parte pelos pobres e pelos ricos”.
A regra, portanto, é a de que serviços públicos, gratuitos e universais frequentemente priorizam a classe média, e não os mais pobres. Trata-se do mito do “Governo Robin Hood“, aquela ideia de que o governo toma dinheiro dos mais ricos para beneficiar os pobres.
A explicação é a de que a classe média é a que possui maior poder de influência política entre todos os grupos de renda, não a camada mais pobre. Já que ela possui maior poder político, consegue formatar políticas públicas que beneficiem seu grupo.
90% dos brasileiros acredita estar na metade mais pobre da população, segundo o Datafolha. Isso torna particularmente mais difícil fazer reformas em políticas públicas, pois a percepção é a de que “os ricos são os outros, já que sou mais pobre, devo ser beneficiado pelo governo”. O economista francês Frédéric Bastiat dizia que “o Estado é a grande ficção por meio da qual todos tentam viver às custas de todos”. Em um mundo de recursos escassos, governar é fazer escolhas, e, ao possibilitar a instituição de alguns privilégios, abre-se a porta para demandar-se outros.
É bom salientar que há exemplos de boas políticas públicas focalizadas nessa camada mais pobre, como o Bolsa Família e o Prouni, mas ainda são exceções dentro de nosso orçamento. Decisões mais recentes, como o fim do Ciência Sem Fronteiras, as mudanças de regras no Fies e o fim da TJLP do BNDES são exemplos de avanços, no sentido de que eram políticas públicas que não beneficiavam os mais pobres.
Vale salientar que antes da ascensão do Estado de bem-estar não significa que as pessoas mais vulneráveis eram completamente desprovidas de cuidados. Ademais, países que possuem menores impostos possuem caridade maior, conforme se correlaciona no World Giving Index, elaborado pela Charities Aid Foundation. Quando há um aparato prestacional, há uma espécie de terceirização dos indivíduos para com o Estado na ajuda que se dá a quem precisa. É uma espécie de efeito crowding out, isto é, quando o aumento da participação do Estado em uma área afeta significativamente a demanda ou a oferta privada naquele mercado.
Todavia, criticar o modelo de Bem-Estar Social tradicional não precisa significar ser contra qualquer política redistributiva ou serviço gratuito, mas reconhecer que o atual modelo falha em atingir seus objetivos declarados. Esse é o primeiro passo para que reformas institucionais socialmente mais justas possam ser feitas. Mesmo que afetem determinados grupos de interesse, a sociedade como um todo será beneficiada ao final desse processo."
08 de abril de 2019
Luan Sperandio, Gazeta do Povo, PR
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