"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quinta-feira, 30 de agosto de 2018

PLANO HADDAD DE REVANCHE

Haddad tem ideias particulares muito elaboradas sobre o que seja democracia. Ele engana, mas é transparente

Autossuficiente, a estratégia político-eleitoral de Lula — também brilhante, ética à parte — tem como uma das perigosas consequências a subestimação daquele escolhido para lhe ser cavalo. Há tempos escrevo que o ex-presidente, senhor e âncora do tabuleiro, concebera e dominara um jogo em cujo fim colocaria seu representante, quem quer que fosse entre os petistas, no segundo turno. Nunca tive dúvida de que assim será. Mas é na análise desfulanizada — soberba, afinal acomodada — do método eleitoral lulopostista que se desdobra o risco de não se avaliar se o indicado, por ora capacho de um presidiário, pode ir além.

Convém estudar Fernando Haddad. As circunstâncias lhe são favoráveis. Sim, é verdade: poderia ser qualquer lulista, e o ungido avançaria ao segundo turno. Isso não significa que a escolha não decorra de cálculo. Uma obviedade: a indicação é componente fundamental da estratégia de Lula; não marco de seu fim. Ou alguém pensa que ele pensava que poderia concorrer à Presidência? Na exemplar briga de advogados havida no coração de sua banca, Lula nunca teve dúvida sobre sacrificar Sepúlveda Pertence. Sua defesa sempre foi política. Entre alguma medida cautelar, como prisão domiciliar (que poderia ser percebida como exceção em seu benefício), e permanecer em cárcere até a eleição, desde a cadeia vendo sua inelegibilidade formalizada, jamais hesitou sobre ficar no lugar em que melhor se vitimizaria. Daí por que tampouco cogitou antecipar-se à oficialização de sua inelegibilidade para apontar Haddad como o Lula de 2018. Para quê? Ele precisa do evento por meio do qual a Justiça Eleitoral se tornará adversária, também ela agente da concertação institucional elitista que trabalha para impedi-lo de voltar a presidir o Brasil. E então, ato contínuo, Haddad — Haddad será: é Lula, é Lula, é Lula.

Ocorre, contudo, que Haddad — ao contrário de Dilma Rousseff — existe; tem existência própria. Chego ao ponto. Ele é — será — corpo para duas operações. Não à toa se fez circular que seria uma espécie de petista com cara de tucano. Há ciência nessa formulação. Haddad, um acadêmico, tido como alguém aberto ao diálogo, limpa a imagem mais pesada do petismo sindicalista. O novo PT possível. E não sem alguma sorte. Em São Paulo, por exemplo, cresce inesperadamente, muito beneficiado, por efeito de oposição, pela percepção eleitoral de que João Doria abandonou a prefeitura da capital sem qualquer realização. Doria revitalizou Haddad, que disputará a Presidência com razoável base eleitoral de partida no mesmo município cujos cidadãos, não faz dois anos, desprezaram-no. Essa é a primeira operação — plástica, no caso — a que seu corpo se submete. Lifting?

A segunda, uma transfusão, ainda terá vez e se dará no Nordeste, lá onde Haddad é perfeitamente o que precisa ser para Lula ser: um desconhecido. Um elemento — de acordo com os princípios do lulopostismo — a ser construído, superfície plana para depósito dos votos que o ex-presidente transfere, naquela região, sem quase prejuízo derivado de sua condição de preso. E assim se planta a “ideia Lula” na fé daqueles cerca de 30% aos quais comunica: em parte com o Haddad revigorado no maior colégio eleitoral do país; em outra com a transmissão de votos lulistas em grande monta provenientes do aparelhamento do Bolsa Família, maior programa de cadastramento do mundo, como propriedade político-eleitoral do PT.

Haddad, pois, será — já é — Lula. Mas também é Haddad, como expressa o programa de governo que concebeu. Estão lá, publicamente assumidos, todos os compromissos de vingança. Contra a democracia representativa, contra, portanto, o Parlamento, que derrubou Dilma, investe na democracia direta e na ameaça de nova Assembleia Nacional Constituinte — com a evidente pretensão de esvaziar o Congresso por meio de Legislativo paralelo. Contra a imprensa, aquela que apoiou o golpe, a palavra de ordem é controle social para, por meio da sociedade civil organizada (pelo comissariado), regular — tutelar, claro, democraticamente — os meios de comunicação. Há muito mais. Contra o Judiciário, por exemplo: um projeto declarado de desforra.

Atenção a Haddad. O escolhido tem ideias particulares muito elaboradas sobre o que seja democracia. Ele engana, mas é transparente.


30 de agosto de 2018
Carlos Andreazza, O Globo

Nenhum comentário:

Postar um comentário