"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

CARTA MAGNA

O rei Ricardo Coração de Leão da Inglaterra morreu na França em 1199, aos 41 anos. Sua morte prematura não deveria surpreender. Ricardo passou boa parte da sua vida em meio a batalhas, nas cruzadas ou em disputas pela Normandia com o rei Felipe Augusto de França. Foi sequestrado pelo duque da Áustria e liberado um ano depois, após o pagamento de um regaste equivalente a mais de duas vezes a renda anual da coroa.

As aventuras militares custavam caro e as seguidas aventuras do rei foram financiadas com impostos crescentes sobre seus súditos. Os registros indicam uma arrecadação anual 40% maior do que a recebida por seu pai, Henrique 2º, que já havia aumentado significativamente os tributos em seu mandato.

Ricardo foi sucedido por seu irmão, João Sem Terra, que compartilhava a brutalidade e estratagemas de seu irmão e de seu pai para controlar e obter recursos de seus súditos, mas nenhum de seus méritos ou a admiração dos súditos. Apesar da história registrá-lo como bom administrador, João era considerado cruel e mesquinho, sendo detestado pelos barões, segundo os relatos. Sua autoridade arrogante decorria do cargo, não das conquistas em batalha, e, previsivelmente, revelava-se intimidado quando agredido.

Felipe Augusto compreendeu a fragilidade de João e ocupou terras em França até então sob domínio inglês. Daí para a frente, foi ladeira abaixo. Enquanto a Inglaterra se encolhia, João aumentava o confisco de tributos dos seus súditos, alterando as normas e perseguindo os barões que o desafiavam. A arrecadação anual cresceu 30% durante o seu mandato.

Inadvertidamente, João iniciou a revolução que, séculos depois, resultou no Estado de Direito da democracia ocidental. Em 1214, barões ingleses iniciaram uma guerra civil contra o rei. Derrotado, João foi forçado a assinar a Carta Magna, essencialmente um contrato entre o rei e os seus súditos com muitas cláusulas, como a que estabelece que o rei não prenderá nenhum homem sem julgamento nem aceitará pagamento por decisão judicial.

O rei não mais poderia usar do confisco para fragilizar adversários, e várias restrições foram criadas para limitar a cobrança de impostos, que deveriam ser aprovadas pelo que mais tarde ficou conhecido como Parlamento.

Diversas cláusulas evoluíram para princípios hoje usuais, como o direito de ser julgado por seus pares e o habeas corpus. Passou-se a esperar que a Justiça limitasse o arbítrio, como a concessão de privilégios à custa do público.

Por aqui, parece que os estamentos sustentados por favores, subsídios e auxílios, como o à moradia, ainda não entenderam que estamos demandando a nossa Carta Magna.


27 de fevereiro de 2018
Marcos Lisboa, Folha de SP

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