"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

BRASILEIROS, MAIS UM ESFORÇO PARA SERMOS LIBERAIS

Domingo, 10 de setembro, em Porto Alegre, o Santander Cultural encerrou a exposição "Queermuseu". O banco se apavorou diante das ameaças de boicote por clientes indignados com algumas das obras expostas –as quais ofenderiam a moral e instigariam pensamentos e atos impuros.

Uma parte, ao menos, dos protestos veio de pessoas que se declaram "liberais". Mamma mia. Liberal é quem defende, antes de mais nada, a liberdade do indivíduo (limitada apenas pelo Código Penal). Um liberal que não gostasse das obras expostas visitaria outra exposição. Ponto. Pretender boicotar o banco se a exposição não for fechada, essa é a conduta de grupos confessionais ou totalitários (fascistas ou comunistas).

Enquanto isso, os verdadeiros liberais, de esquerda ou de centro, tanto faz, escrevem colunas nos jornais, como eu agora, mas não agem. O que seria agir? Simples. Por sorte, sou cliente Itaú. Se eu fosse cliente Santander, acho que, nesta altura, fecharia minhas contas. Não aceitaria ser cliente de um banco que não corta nem sequer os pelos da orelha em nome da arte, mas chama seu serviço VIP de Van Gogh.

No dia 14, em Campo Grande, deputados registraram boletim de ocorrência alegando que um quadro exposto no Museu de Arte Contemporânea local faria apologia da pedofilia (de fato, a obra é uma denúncia).

Fora que a Constituição do Brasil é assim ludibriada, constato que, depois de milhares de abusos sexuais de crianças por parte de padres católicos (acobertados pela Igreja durante anos), ninguém denunciou inúmeras imagens que a Igreja propõe a seus fiéis e que alimentam a paixão pedofílica de seus ministros. Conheci padres atormentados, tentados e perseguidos pelas vinhetas do santo abraçando "com amor" as criancinhas que tanto gostavam dele. Se eu fosse procurador, é aí que procuraria a apologia do crime de pedofilia.

Poderia continuar com o caso da peça cancelada por decisão judicial no dia 15, em Jundiaí.

Mas o que me importa hoje é que o moralismo mais grosseiro exerce sua força política em chantagens eleitorais (ou comerciais, como com o Santander). Enquanto isso, os liberais se indignam e não agem –provavelmente pela antipatia que eles sentem por toda forma de ação coletiva. Mas como resistir a um obscurantismo no qual não gostaríamos de viver?

Um candidato que se diz liberal procura apoio nos fundamentalistas religiosos? Fora da nossa lista.

Um deputado promove uma lei para "curar" os gays ou, em geral, as pessoas que gozam de uma forma diferente da dele? Vamos pensar em como inserir, no próximo manual diagnóstico estatístico, o fundamentalismo religioso e moral como patologia?

Três anos atrás, em Veneza, entrei na igreja de San Zanipolo (João e Paulo). O guarda exigiu que a namorada de meu filho, que estava de shorts, escondesse suas pernas com uma manta.

"Quem instaurou essa regra?". Ele respondeu: "O papa". Perguntei se o papa tinha telefonado pessoalmente para o pároco. "Você não acha que o papa tem mais o que fazer?". Ele, consciente do ridículo, admitiu que não tinha sido o papa pessoalmente.

Perguntei se eu poderia entrar sem camisa. "Não!". Apontei para um crucifixo: "Ele estava nu". Ele respondeu que "Ele pode"... porque é Jesus". Concordei e continuei: "E os outros? Os mártires que aparecem nus nos quadros que decoram as igrejas do mundo inteiro?". Ele: "Também podem, porque foram supliciados". Minha vez: "Alguém que tivesse a cicatriz de uma cirurgia torácica ou cardíaca ou então as marcas do açoite por ter sido batido quando criança por pais sádicos, ele poderia? Você consideraria que ele foi supliciado?". "Não", ele respondeu, "os mártires morreram". "Então", resumi, "os mortos podem comparecer nus na igreja, os vivos, não. É isso?".

O homem ficou calado e irritado. Eu: "Sabe, eu sou terapeuta de adolescentes. Se seu problema for evitar que as pessoas se excitem sexualmente, você tem um problema: conheci dezenas de meninas que se masturbaram durante anos olhando para uma representação do momento em que arrancam os seios de santa Águeda mártir. E conheci dezenas de meninos que passaram anos se masturbando olhando para são Sebastião amarrado e transfixado de flechas. Os mártires são uma tremenda inspiração erótica...".

Os incendiários, às vezes, se fazem de bombeiros.

25 de setembro de 2017
Contardo Calligaris, Folha de SP

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