"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sexta-feira, 10 de abril de 2015

O PREFEITO DEVERIA SER A UPP MORAL DE SUA CIDADE

Nem o prefeito nem o governador visitaram os pais de Eduardo

O problema de ser carioca e morar em Nova York é, às vezes, imaginar a cidade natal com expectativa pouco realista. Não falo do tamanho da economia, do maior mergulho nos índices de crime de qualquer grande cidade norte-americana ou no fato de a cidade de onde escrevo ter sido a metrópole dominante da segunda metade do século 20. 
Não é este tipo de comparação. Penso em elite, esta palavra que o PT transformou em palavrão com apoio de copiosas doações em espécie de setores da dita. 
É esperar demais que pessoas que compram até cuecas e pasta de dentes em Manhattan e mandam seus filhos estudar aqui importem certos hábitos da elite local?

Contemplava com um nó na garganta a imagem de Maria Terezinha de Jesus segurando a fotografia amassada de seu caçula de 10 anos, Eduardo, cuja morte ela conta que descobriu quando parte de seu crânio foi projetada para a sala, tal o impacto do tiro de fuzil que ele tomou pelas costas, sentado na porta de casa, no Complexo do Alemão, no dia 2. 
Comecei a ouvir no rádio uma reportagem destas que desafia as vias lacrimais: um grupo de músicos frequenta prisões de Nova York ajudando detentas mulheres a compor e gravar canções para filhos pequenos que mal podem visitá-las ou ter contato físico com elas.

O projeto que visita as prisões se chama Lullaby, canção de ninar, e é patrocinado pelo Carnegie Hall, a lendária casa de concertos, um dos palcos musicais mais cobiçados do mundo. O teatro foi construído em 1891 por Andrew Carnegie, um empresário que chegou a ser mais rico do que Bill Gates e doou quase 90% de sua fortuna. 
Carnegie não era um anjo, foi de fato incluído na galeria dos robber barons, os homens que acumularam fortuna à custa de manobras questionáveis e monopolistas, na segunda metade do século 19, nos Estados Unidos.

O PROJETO LULLABY

Enquanto ouvia as canções e entrevistas com as presas, pensava na ironia do dinheiro do empresário odiado por sindicatos financiando um programa que mistura músicos bem-educados aos descartados da sociedade. O Projeto Lullaby é uma iniciativa modesta para restaurar humanidade num sistema de justiça criminal hoje incompatível com os ideais democráticos que fundaram o país.

Voltei à cobertura da tragédia da morte de Eduardo, li que o governador do Estado do Rio tinha rapidamente se comprometido a pagar as despesas da família Ferreira para enterrar o menino em Corrente, no Piauí, e pensei, é uma admissão de responsabilidade, afinal a Polícia Militar está sob a jurisdição do Estado. 
Comecei a pesquisar sinais de contato pessoal entre o governador e o casal que perdeu o filho, Maria Terezinha, que trabalha como doméstica em Copacabana e no Recreio, e seu marido, o ajudante de pedreiro José Maria Ferreira de Sousa. Não encontrei.

Concluí ingenuamente que o papel de solidariedade e pacificação no caso seria mais apropriado para o prefeito. Afinal, o luto de pais por uma criança não conhece distinção federal, estadual ou municipal. 

Enquanto o Complexo do Alemão era cenário de protestos com bandeiras brancas, voluntários distribuindo ovos de Páscoa e crianças desfilando com cartazes que diziam “Menos bala, 
mais amor” e “Não quero morrer”, as contas de rede social do prefeito carioca se ocupavam de autocongratulações com obras inauguradas, referências aos 450 anos do Rio e a um museu futurista na Cidade Olímpica. Só triunfo. 
O futuro, aliás, preocupa o prefeito que, segundo o líder de seu partido, é candidato a presidente assim que extinguirem a chama olímpica no dia 21 de agosto de 2016.

CADÊ O PREFEITO?

Seria improvável uma criança num conjunto habitacional no Harlem ter seus miolos estourados numa batida policial sem que o prefeito Bill de Blasio aparecesse para sinalizar duas coisas: a dor da tragédia é de todos e a polícia não é o inimigo.

Pensei em telefonar para um clínico-geral amigo, no Rio, e pedir que fizesse a gentileza de dar um pulo à residência do prefeito para tomar seu pulso. Quem sabe, um mal-estar passageiro explicaria a insensibilidade do líder de um Rio de coração partido com a brutalidade que ceifou a vida do aluno do Ciep de Olaria, do menino cheio de sonhos que ia começar cursos de inglês e informática na semana que vem.

Na cena final do filme Tempestade de Gelo, de Ang Lee, um pai, horas depois da morte trágica do filho de um amigo, se vira para o banco de trás do carro dirigido pela mulher. Ele não pronuncia uma palavra, mas o olhar que planta nos dois filhos diz tudo.

Lembrei da cena do filme e me ocorreu que o prefeito pensaria na boa fortuna de poder passar a Páscoa com seus filhos. Quem sabe, teria um encontro reservado com o casal Ferreira, longe das câmeras. Quem sabe, um dos empresários financiadores de suas campanhas doaria, a seu pedido, bolsas de estudo para os outros quatro filhos do casal. Seriam gestos simbólicos, longe de solucionar os horrores da rotina no Alemão. Seria também um sinal da consciência de que o prefeito, nestas horas, é a UPP moral de uma cidade.

(artigo enviado pelo comentarista Mário Assis)

10 de abril de 2015
Lúcia Guimarães
Estadão


NOTA AO PÉ DO TEXTO

Não quero azedar os nobre sentimentos da Lúcia Guimarães, e do seu belo texto, do qual transborda a cobrança de humanidade que, inevitavelmente, deveria ter assomado ante o bárbaro acontecimento. E não apenas do prefeito, mas de todos nós, que gravirtamos na proximidade da violência que controla as nossas vidas.
Mas não posso furtar-me de algumas ponderações, ou melhor de apenas três reflexões:

1. Sua ótica novaiorquina é ré confessa de confundir duas realidades, absolutamente díspares. Talvez o distanciamento da brutalidade que invadiu as grandes metrópoles brasileiras, permita divagações utópicas, o que não deixa de ser um exercício poético.

2. O trágico acontecimento que vive a família Ferreira, com a morte violentíssima de 
Eduardo, é dramaticamente comovente, mas habita o cotidiano das grandes cidades brasileiras, sem distinguir se é apenas uma criança, ou um adulto. vítima de "bala perdida". Não consegui até hoje entender essa expressão: "bala perdida". 
É bala que ceifa a vida de alguém. É bala clandestina, sem rumo certo, mas que fatidicamente encontrará a morte anônima de alguém. Encontrará o seu destino...

3. É tamanha a violência, que anula a sensibilidade, que banaliza a vida, que nos transforma a todos em vítimas pontenciais. Saí a perguntar a algumas pessoas sobre a morte de Eduardo. Encontrei apenas uma, que vagamente ouvira falar, mas que não estava muito a par do que realmente acontecera. Em outras palavras, não sabia de nada...

Abandonando as conjeturas, fico a perguntar-me: a que "elite" Lúcia se refere, e concordo que é demais convocar a "elite" que vai consumir perequetecos e outros badulaques em Miami ou Manhattan, a irmanar-se numa tragédia no Complexo do Alemão, uma tragédia tristemente  anônima, em que uma criança é morta e com ela os seus sonhos de futuro.
Não temos a tão difamada palavrinha Elite, pautada nos livros e profundos compêndios de sociologia e política, e que não foram escritos para conceituar a ordem política e  a cultura 'terceiromundista', sem lei nem rei, reino da impunidade, da devastadora corrupção, que arrasta para o esgoto todos os princípios da decência, da ética pública e inaugura o reino do "salve-se quem puder", ou "roube o que puder, enquanto puder". 

O que para muitos é motivo de orgulho, entristeço-me diante das operações do MPF e da PF, desvendando crimes hediondos contra o patrimônio público e a fazenda. Não me entristeço pela inédita cobrança de justiça, mas porque desvenda o lixo de uma suposta "elite" , não apenas política, mas empresarial e quejandos, que sepulta as esperanças de vida digna de um povo, do povo brasileiro. E não apenas isso, mas porque ao atilado olhar mais para dentro, descobre-se que estamos lidando com as metástases de um criminoso tumor que há muito apodrece o tecido social sob o plácido e cúmplice olhar da famigerada "elite".

Muito importante as iniciativas filantrópicas praticadas também aqui, no Brasil, como as citadas no texto, por determinadas instituições de caráter privado, e algumas até públicas, mas que são tragadas pelo enorme continente de miséria e pela falta de políticas públicas sérias, que realmente cumpram papéis determinantes no desenvolvimento do país, transformando ações filantrópicas em atos de solidariedade.
E ato contínuo, vamos encontrar uma "elite" que compra cuecas e tênis lá no tio Sam... Que viaja frequentemente para o exterior, que promove, no âmbito político dos três poderes, suntuosas mordomias, um enorme saco que carregamos todos no lombo, para a alegria dos eleitos, e no mundo privado, o lobby que sufoca salários, que desrespeita direitos trabalhistas etc... etc... etc...

Elite? Que elite? Muito antes do caótico oportunismo petralha transformar em anátema essa palavrinha, ela já continha uma verdadeira mentira em sua definição.
m.americo




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