O enigma da esfinge (decifra-me ou te devoro) chegou repaginado para dona Dilma. O desafio agora é: reinventa-te ou te devoro. Quem o faz já não é a conhecida figura mitológica, mas um número cada vez maior de cidadãos brasileiros. Cidadãos mais e mais informados, críticos, exigentes e que aprenderam a correlacionar seus direitos com os deveres das autoridades públicas. A traduzir que o País avançou em consciência de cidadania para muito além da percepção dos seus governantes centrais e até mesmo de suas instituições políticas. Estas, retratadas nas agremiações partidárias e no Congresso Nacional; aqueles, nos agentes políticos e em especial na pessoa da presidente da República.
É o descompasso dos dias atuais. Os cidadãos não abrem mão de encarnar a sociedade civil, no que estão certos. Já na Praça dos Três Poderes, nem a classe política está a encarnar os meritórios fins de suas instituições nem as instituições estão a encarnar a representação da sociedade civil. O resultado é que a cidadania, cada vez mais consciente de si e de tudo o que se passa no seu entorno, já percebeu o logro. O logro de que instituições e agentes políticos se caracterizam por apenas representar que representam a sociedade civil. Não encarnam essa representação. Deixam de ser eles mesmos para se tornar personagens. Atores de uma peça de teatro que muitas vezes vai do caricato (ou "baixo cômico", diria Tobias Barreto) ao trágico social. Sem desconhecer que o Congresso, mesmo aos trancos e barrancos, tem produzido leis intrinsecamente boas.
Seja como for, o pior é que esse dominante malogro de representatividade política associa ineficiência operacional a disfunções morais. O que não é percebido apenas como o fruto de posturas conjunturalmente equivocadas, mas de um modo distorcido de conceber e praticar a vida pública. Um tipo arrevesado de mentalidade dirigente, para dizer o mínimo. O que já significa um ponto de fragilidade estrutural do setor público-representativo brasileiro. Um fosso muito mais largo e profundo, portanto, entre os setores especificamente políticos do Estado e a sociedade civil a que ele deve fielmente servir todo o tempo.
É essa mentalidade distorcida que serve de combustível a um tipo retrógrado de cultura e nessa cultura mesma se banqueteia. Gangorra ou feedback do atraso mental. Do provincianismo colonial e dos privilégios monárquicos do Brasil. A responder pela indistinção entre tomar posse nos cargos públicos e tomar posse deles. Por um feudal aparelhamento do Estado e por um quase grilesco loteamento de seus órgãos, entidades e verbas orçamentárias. Pela renitência de coalizões partidárias fisiológicas, e não propriamente ideológicas. Abocanho tão persistente quanto sistêmico do patrimônio e dos dinheiros públicos. Uma grande orquestra, enfim, dos que não perdem oportunidades e até as inventam para duas deletérias coisas: refestelar-se em mordomias e fazer da apropriação privada de bens e valores estatais uma "impudente festa" (Castro Alves) da mais rançosa tradição patrimonialista, clientelista e populista.
Pois bem, como a atual presidente é simultaneamente chefe de governo e de Estado, dirigente superior de toda a administração pública federal, comandante supremo das Forças Armadas, principal sujeito das relações do Poder Executivo com o Congresso, agente e artífice das relações internacionais do Brasil, hierarca maior da administração tributário-fazendária, nomeante do presidente e dos diretores do Banco Central, do BNDES, do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal, em suma, o povo brasileiro passou a entender que ela é quem mais tem culpa no cartório pela baixa qualidade ético-funcional da vida pública brasileira. Passou a entender que a ela cabe recolocar o País nos eixos. Política, econômica e eticamente. Deflagrar com urgência e descortino, a partir de sua base parlamentar e partidária, o processo de fidelização dos políticos às suas instituições e das suas instituições às respectivas finalidades. Chamar a si o encargo de cumprir e fazer cumprir a Constituição e as leis, com todo o rigor e devoção, pois o bom exemplo sempre deve começar de cima. Bônus e ônus em equilibrado peso.
É aí que a presidente da República tem de se reinventar. E tem de se reinventar porque lhe incumbe mudar sua própria mentalidade quanto às coisas do poder e da política. Sair da zona de conforto da tradição clientelista para se contrapor vigorosamente à ideia corrente de que é por cooptação ou modo argentário que se estrutura o diálogo institucional com o Legislativo e os partidos. Para rechaçar o modelo também promíscuo do financiamento empresarial de partidos e campanhas eleitorais como forma habitual de reforço de caixa dos donatários e de sobrepreço dos contratos dos doadores. Mudar a presidente, então, como agente estatal, militante partidário e até como pessoa, se necessário, para que suas concretas condutas ganhem o caráter de sustentáveis. O que passa a significar, mais que simples mudança, autêntica transformação ("transformação é uma porta que se abre por dentro", ensinou Shakespeare). Logo, o desafio da primeira mandatária do País é elevar-se de chefe a líder. De gerente a estadista. De inquilina do Palácio do Planalto a protagonista central da História.
Tendo o discernimento e a coragem de tudo começar por onde exige mesmo a cidadania: a decisiva compreensão de que o tal do custo-Brasil é alto porque o casto-Brasil é baixo. Que não é senão a lição de que "a arte de governar consiste exclusivamente na arte de ser honesto", como pontuava Thomas Jefferson. Seguro modo de encarar e vencer o ultimato popular do "reinventa-te ou te devoro". Para o bem de S. Exa., do Estado e da sociedade civil brasileira. Para que todos juntos pratiquemos a filosofia da abundância cooperativa que nos levará a fazer da queda iminente um altivo levantar-se até os mais altos patamares da nossa consciência de nação definitivamente democrática. A palavra está com dona Dilma. É pegar ou largar, pois nesse transe da vida brasileira não há mais espaço para vacilo, meias-palavras, faz de conta. A hora é de fazer destino e o tempo já se blindou contra qualquer tentativa de prorrogação.
22 de março de 2015
Carlos Ayres Britto, O Estado de S.Paulo
É o descompasso dos dias atuais. Os cidadãos não abrem mão de encarnar a sociedade civil, no que estão certos. Já na Praça dos Três Poderes, nem a classe política está a encarnar os meritórios fins de suas instituições nem as instituições estão a encarnar a representação da sociedade civil. O resultado é que a cidadania, cada vez mais consciente de si e de tudo o que se passa no seu entorno, já percebeu o logro. O logro de que instituições e agentes políticos se caracterizam por apenas representar que representam a sociedade civil. Não encarnam essa representação. Deixam de ser eles mesmos para se tornar personagens. Atores de uma peça de teatro que muitas vezes vai do caricato (ou "baixo cômico", diria Tobias Barreto) ao trágico social. Sem desconhecer que o Congresso, mesmo aos trancos e barrancos, tem produzido leis intrinsecamente boas.
Seja como for, o pior é que esse dominante malogro de representatividade política associa ineficiência operacional a disfunções morais. O que não é percebido apenas como o fruto de posturas conjunturalmente equivocadas, mas de um modo distorcido de conceber e praticar a vida pública. Um tipo arrevesado de mentalidade dirigente, para dizer o mínimo. O que já significa um ponto de fragilidade estrutural do setor público-representativo brasileiro. Um fosso muito mais largo e profundo, portanto, entre os setores especificamente políticos do Estado e a sociedade civil a que ele deve fielmente servir todo o tempo.
É essa mentalidade distorcida que serve de combustível a um tipo retrógrado de cultura e nessa cultura mesma se banqueteia. Gangorra ou feedback do atraso mental. Do provincianismo colonial e dos privilégios monárquicos do Brasil. A responder pela indistinção entre tomar posse nos cargos públicos e tomar posse deles. Por um feudal aparelhamento do Estado e por um quase grilesco loteamento de seus órgãos, entidades e verbas orçamentárias. Pela renitência de coalizões partidárias fisiológicas, e não propriamente ideológicas. Abocanho tão persistente quanto sistêmico do patrimônio e dos dinheiros públicos. Uma grande orquestra, enfim, dos que não perdem oportunidades e até as inventam para duas deletérias coisas: refestelar-se em mordomias e fazer da apropriação privada de bens e valores estatais uma "impudente festa" (Castro Alves) da mais rançosa tradição patrimonialista, clientelista e populista.
Pois bem, como a atual presidente é simultaneamente chefe de governo e de Estado, dirigente superior de toda a administração pública federal, comandante supremo das Forças Armadas, principal sujeito das relações do Poder Executivo com o Congresso, agente e artífice das relações internacionais do Brasil, hierarca maior da administração tributário-fazendária, nomeante do presidente e dos diretores do Banco Central, do BNDES, do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal, em suma, o povo brasileiro passou a entender que ela é quem mais tem culpa no cartório pela baixa qualidade ético-funcional da vida pública brasileira. Passou a entender que a ela cabe recolocar o País nos eixos. Política, econômica e eticamente. Deflagrar com urgência e descortino, a partir de sua base parlamentar e partidária, o processo de fidelização dos políticos às suas instituições e das suas instituições às respectivas finalidades. Chamar a si o encargo de cumprir e fazer cumprir a Constituição e as leis, com todo o rigor e devoção, pois o bom exemplo sempre deve começar de cima. Bônus e ônus em equilibrado peso.
É aí que a presidente da República tem de se reinventar. E tem de se reinventar porque lhe incumbe mudar sua própria mentalidade quanto às coisas do poder e da política. Sair da zona de conforto da tradição clientelista para se contrapor vigorosamente à ideia corrente de que é por cooptação ou modo argentário que se estrutura o diálogo institucional com o Legislativo e os partidos. Para rechaçar o modelo também promíscuo do financiamento empresarial de partidos e campanhas eleitorais como forma habitual de reforço de caixa dos donatários e de sobrepreço dos contratos dos doadores. Mudar a presidente, então, como agente estatal, militante partidário e até como pessoa, se necessário, para que suas concretas condutas ganhem o caráter de sustentáveis. O que passa a significar, mais que simples mudança, autêntica transformação ("transformação é uma porta que se abre por dentro", ensinou Shakespeare). Logo, o desafio da primeira mandatária do País é elevar-se de chefe a líder. De gerente a estadista. De inquilina do Palácio do Planalto a protagonista central da História.
Tendo o discernimento e a coragem de tudo começar por onde exige mesmo a cidadania: a decisiva compreensão de que o tal do custo-Brasil é alto porque o casto-Brasil é baixo. Que não é senão a lição de que "a arte de governar consiste exclusivamente na arte de ser honesto", como pontuava Thomas Jefferson. Seguro modo de encarar e vencer o ultimato popular do "reinventa-te ou te devoro". Para o bem de S. Exa., do Estado e da sociedade civil brasileira. Para que todos juntos pratiquemos a filosofia da abundância cooperativa que nos levará a fazer da queda iminente um altivo levantar-se até os mais altos patamares da nossa consciência de nação definitivamente democrática. A palavra está com dona Dilma. É pegar ou largar, pois nesse transe da vida brasileira não há mais espaço para vacilo, meias-palavras, faz de conta. A hora é de fazer destino e o tempo já se blindou contra qualquer tentativa de prorrogação.
22 de março de 2015
Carlos Ayres Britto, O Estado de S.Paulo
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