A última leiteria do Rio Antigo
por Rose Esquenazi
As leiterias – que também preparavam creme de maisena e gemadas revigorantes – eram comuns na cidade. Hoje, só uma resiste, na rua da Ajuda, em frente à estação Carioca do metrô: a Leiteria Mineira, cujo ano de fundação nem seus atuais sócios sabem ao certo, mas há quem diga que foi inaugurada em 1907. Originalmente a casa funcionava na Galeria Cruzeiro, demolida em 1957 para dar lugar ao gigantesco edifício Avenida Central. O estabelecimento foi então transferido para a avenida São José, ali perto, e em 1982 fixou-se no endereço atual. Há cerca de trinta anos foi comprado por antigos garçons, que recentemente legaram o negócio aos filhos.
O administrador de empresas João Alberto Lima da Costa, filho de João da Silva Costa, e o advogado José Augusto Pereira, filho de Gaspar Francisco de Oliveira, têm a mesma idade, 52 anos, e aceitaram a ordem natural das coisas. Atuais sócios da Mineira, os dois chegam cedo para organizar a turma de cozinheiros e garçons. E lembram-se da luta dos pais portugueses, que nos anos 50 começaram a trabalhar na casa como ajudantes, lavando prato e vendendo queijo e manteiga no varejo.
Toda a mercadoria vinha de Minas Gerais, em produções artesanais. Consumia-se muita manteiga Sinhá, Real e Aviação – a clientela ainda não tinha sido apresentada ao terrível colesterol. Os vendedores faziam embrulhos caprichados, colocando toquinhos de madeira no laço do barbante, para que o freguês não ferisse os dedos na hora de carregá-los.
Milton Teixeira, historiador do Rio, diz que há poucos estudos sobre as leiterias. “A mãe de tudo foi a padaria. Em 1816, já existiam seis. Atendiam aos navios e eram especializadas em biscoitos, do latim biscoctus, que quer dizer ‘cozidos duas vezes’ – para que não apodrecessem nas viagens.” As padarias surgiram com a importação de farinha de trigo dos Estados Unidos. “Antes, só se comia pão feito de farinha de mandioca e de peixe, heranças dos índios”, disse Teixeira.
As leiterias, por sua vez, surgiram com a pasteurização do leite, no início do século XX. O produto vinha em latões de 50 litros e era servido gelado. Gaspar Oliveira, que morreu em 2013, dizia que o leite de antigamente tinha outro gosto, e que a Saúde Pública não dava mole. “Os fiscais viviam aqui para fiscalizar o leite. Se descobrissem que o dono havia colocado água no latão, multavam na hora.”
Antes da pasteurização, o tempo era de vacas magras. Sem gelo ou isopor, com frequência os leiteiros saíam pelas ruas da cidade acompanhados da vaca e do bezerro. “Quando a mão do ordenhador já não mais ordenha o leite recalcitrante, empacado na glândula mamária da leiteira, lá vem o bezerrote para o trabalho de sucção, que é tanto mais violento quanto maior é a ânsia do triste em libar o alimento que tanto lhe recusam”, registrou o jornalista Luiz Edmundo no livro O Rio de Janeiro do Meu Tempo. A proibição desse tipo de venda, decerto pouco higiênica, coincidiu com o surgimento das leiterias.
Nas paredes da Mineira, reproduções de artigos da imprensa testemunham a longevidade do local. Um deles, provavelmente dos anos 30, é da revista Fon-Fon: “Sempre à cata de assumptos novos e constantemente munida de sua Kodak, a revista Fon-Fon entrou há dias na espaçosa Leiteira Mineira, não só para saborear uma deliciosa coalhada, como também para apanhar um ou mais aspectos da afrancezada casa, hoje o ponto obrigatório de todos os apreciadores do bom leite.”
Na então capital do país, o estabelecimento tinha um movimento frenético, recebendo os frequentadores dos cinemas e teatros do Centro, aos quais também oferecia refeições ligeiras.
O garçom mais antigo, José Gomes, 75 anos e há 51 na leiteria, tem na cabeça todos os fregueses famosos. “Conheci os pais deles e agora conheço os netos”, conta o português de Trás-os-Montes, que serviu muitos almoços a Roberto Marinho. “Ele gostava de comidas leves, como o peixe grelhado com creme de espinafre, e mamão de sobremesa.” Marinho – fica a dica – viveu até quase 100 anos.
A lista inclui políticos de todas as tendências, entre eles Leonel Brizola, o “homem da capa preta” Tenório Cavalcanti, Carlos Lacerda, Tancredo Neves. Hoje aparecem por lá atores como Othon Bastos e Renata Sorrah. Jogadores de futebol são habitues porque o Tribunal de Justiça Desportiva fica no prédio vizinho.
Nos anos 80, a disseminação do leite longa vida e dos iogurtes foi um golpe mortal: as leiterias fecharam uma a uma, inclusive as célebres Bol, Silvestre e Gibi. “O modelo de negócio não é mais o mesmo. Antes havia uma pequena produção de laticínios em fazendas de Minas; hoje é tudo industrializado. Os produtores vendem em grande quantidade para os supermercados, barateando os preços”, explica o sócio João Alberto Costa.
Quando percebeu que a Mineira também fecharia as portas, um grupo de garçons fez uma oferta e conseguiu “um preço camarada”. Hoje com trinta funcionários, a leiteria abandonou a venda de queijo e manteiga e expandiu o serviço de café, almoço e lanche para os engravatados do Centro. A coalhada – salve! – ainda é caseira, preparada por Gabriel Nogueira de Oliveira, 75 anos, há 44 na casa. A receita é dele mesmo, que usa miolo de pão de forma e leite integral. O arroz-doce e o mingau de Cremogema também resistem bravamente.
O sócio José Augusto Pereira conta que atualizar o negócio não foi fácil. “Há um conflito de gerações, mas aos poucos introduzimos os cartões de crédito e alguns pratos, como o frango grelhado com creme de milho”, diz ele, que se diverte com as dúvidas dos que telefonam para a Mineira querendo saber exatamente o que funciona lá. “Eles não entendem o que é uma leiteria, mas explico que é um restaurante atípico, um à la carte rápido.”
04 de novembro de 2014
in Revista Piauí
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