"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

domingo, 30 de março de 2014

DEMOCRACIA


Os impasses que o Congresso Nacional criou no tortuoso processo de votação do Marco Civil da Internet foram acompanhados por muitos debates nas redes sociais. Vários comentários terminavam assim: “a democracia...” As reticências podiam ser interpretadas de diferentes maneiras. Elas expressavam condenação? Ou escondiam elogio realista, tomando os problemas como parte do jogo democrático? Quem costuma ler minha coluna já deve ter percebido que gosto de ambiguidade. Mas não neste caso. Tomo posição clara: democracia é valor central, insubstituível, no meu pensamento. Colocá-lo em dúvida é atitude muito perigosa.

Não suporto gente que diz que vivemos em “suposta democracia”. Não estou contente com a situação do país hoje, é claro. Mas temos condições institucionais para combater o que consideramos errado e melhorar o que já conquistamos. Obviamente, isso dá muito trabalho. (A batalha do Marco Civil, desde sua pioneira redação coletiva, prova que trabalho duro pode dar bons resultados.) Zuenir Ventura foi certeiro — sábado, neste jornal — na identificação de posturas preguiçosas cada vez mais comuns no nosso ambiente atual: a “indignação resignada” e o “inconformismo conformado”, “sem poder de transformação”, ou — pior — com nostalgia da ditadura. Sua percepção: “nas palestras e debates desse concorrido ciclo sobre os 50 anos do golpe, a democracia tem sido muito questionada, principalmente pelos jovens”.

Não é só parcela da juventude brasileira que faz esse tipo de questionamento. A revista “The Economist” — que desde o “fim da História” muitas vezes parece se comportar como governante do planeta, inclusive pedindo demissões de ministros mundo afora (é mais uma dessas instituições globalizadas que não foram eleitas por ninguém, mas que querem atuar como nossos xerifes) — publicou recentemente ensaio de seis páginas com o título “O que deu errado na democracia”. Tudo termina em receitas para o revigoramento democrático, mas passa até por declarações de professores universitários chineses que — com petulância inflada por crescimento econômico autoritário, não tão atingido pela crise de 2008 (que ainda sacode e União Europeia e desemprega muita gente dos EUA) — agora ganham notoriedade ao declarar que “a democracia está destruindo o Ocidente”.

O ensaio da “Economist” não cita David Runciman, mas muitos de seus parágrafos parecem dialogar com as ideias inspiradoras/inovadoras (mesmo sendo volta a Tocqueville) que esse professor de política e fellow do Trinity Hall de Cambridge publicou em “The confidence trap”, livro lançado no final de 2013 com o subtítulo “Uma história da democracia em crise da Primeira Guerra ao presente”. Nunca tinha ouvido falar em Runciman. Pesquei seu nome na conversa entre Brian Eno e Danny Hillis que comemorou os dez anos de seminários da Long Now Foundation, organização que pretende pensar nossos próximos cem séculos. Eno também indicou “The confidence trap” para a biblioteca que a Long Now está montando com cerca de 3.500 livros para formar um “Manual de civilização”.

Entre as epígrafes do livro de Runciman encontramos Samuel Beckett ordenando: “Tente novamente. Fracasse novamente. Fracasse melhor”. Esse é um bom resumo: a cada capítulo encontramos a história de um “fracasso” da democracia, quando muita gente poderosa anunciava que ela não tinha futuro, ou que algum regime autoritário seria seu futuro. Diante de tantas ameaças, a democracia acaba gerando duas reações oscilantes, cada uma com suas armadilhas: de um lado, a complacência (as lições do passado democrático indicam que no final vamos escapar de mais um aparente beco sem saída; então ninguém precisa batalhar pela transformação); do outro, a impaciência sem noção (a democracia promete mundos e fundos, mas sempre tem problemas de delivery, por isso todos seus governos eleitos geram decepção).

Em “The confidence trap”, aprendemos que, no longo prazo, a democracia se fortalece com todas essas crises e queixas, muddling through (expressão adorada por Eno, de difícil tradução, pois mistura resolução com trapalhada) todas as ameaças, escapando da derrocada na última hora. Essa capacidade de adaptação diante do imprevisível é uma das vantagens da democracia diante da rigidez do caminho único (e sem críticas internas) das ditaduras. Ainda que, no curto prazo, tudo pareça estar dando errado, numa sucessão de escândalos, no final — até agora — a democracia prevalece. Parabéns a todos nós pelo Marco Civil da Internet. Como sempre na história democrática, não é hora de descansar: continua a luta (primeiro no Senado) para que sua defesa da liberdade seja respeitada e aprimorada.
 
30 de março de 201
Hermano Vianna é Jornalista. Originalmente publicado em O Globo em 28 de Março de 2014

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