"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sábado, 2 de outubro de 2021

COMO ACABOU A AULA DE DEMOCRACIA



Os eleitores da Califórnia rejeitaram anteontem (14/9), numa proporção de dois votos “não” para cada voto “sim”, a retomada do mandato (recall) do governador Gavin Newsom numa eleição convocada pela petição iniciada em junho de 2020 pelo sargento aposentado de polícia Orrin Heatlie que acabou apoiada por mais de 1,7 milhão de assinaturas.

Nada de monocratas ou armações de velhos caciques; o fato que detonou o processo foi a tomada de posição do governador contra a pena de morte e sua decisão de aceitar imigrantes ilegais que feriram a sensibilidade do cidadão-policial que iniciou o processo. Mas foi a chegada da pandemia e as medidas tomadas pelo governador, especialmente o lockdown do comércio e o fechamento das escolas que mobilizou contra ele mães que trabalham fora de casa, que o fez decolar.

A estratégia de Newson foi, então, “nacionalizar” a disputa colocando-a como uma tentativa reacionária do trumpismo e dos antivacina e como uma espécie de prévia da eleição do ano que vem que pode alterar o controle democrata do congresso. Isso lhe rendeu mais de US$ 70 milhões em doações para a campanha que teve participação de Joe Biden, Barak Obama, Kamala Harris e Bernie Sanders entre outros.

Orrin Heatlie

A California é um dos 19 estados americanos que admitem recall de funcionários eleitos no nível estadual. Tem 22 milhões de eleitores ativos registrados numa proporção de 2 para 1 entre democratas e republicanos que se vem mantendo ha quase duas décadas. Para retomar mandatos do Poder Executivo a petição, lá, tem de ser apresentada com 65 assinaturas. Qualifica-se então a fazer campanha pública para colher assinaturas correspondentes a um mínimo de 12% dos votos obtidos pelo desafiado na última eleição. Para os poderes Legislativo e Judiciário, o limite mínimo é 20%. Na Califórnia os juízes são eleitos e podem ser “deseleitos”, inclusive os da suprema corte estadual.

Pelo mesmo mecanismo de coleta de assinaturas os eleitores americanos de inúmeros estados e municípios podem propor leis para ser diretamente votadas por seus pares, revogar leis aprovadas pelos legisladores, aprovar ou desaprovar compras do governo ou gastos públicos, tudo no voto direto do povo.

Depois da declaração de independência, em 1776, algumas das 13 colônias originais incluiram o direito de recall em suas constituições. O assunto foi discutido na Convenção de Filadélfia, que escreveu a constituição federal, mas acabou não entrando nesta, razão pela qual, apesar de alguns estados admitirem o recall de seus representantes federais, nenhum processo tenha ido até o fim e, graças a isso, não haver ainda uma decisão da Suprema Corte. O recall no nível federal é ainda uma discussão inconclusa.



Mesmo estando em algumas constituições estaduais o recall ficou dormente por mais de 100 anos. Foi em Los Angeles, na mesma Califórnia, que foi acionado pela primeira vez em 1898 quando o médico John Randolph Haynes propôs incluir esse direito na “constituição municipal” (o “charter” da cidade), como um meio para acabar com a corrupção que a assolava. O sucesso foi estrondoso e nos 7 anos seguintes 25 outras cidades da Califórnia aprovaram medida semelhante. Em 1911 o dispositivo foi incluído na constituição estadual por lei de inciativa popular que teve adesão esmagadora.

Nos últimos 60 anos todos os governadores da Califórnia foram alvo de dezenas de tentativas de recall mas só duas chegaram a voto, a de anteontem e a de 2003 que depôs o governador democrata Gray Davies e elegeu o ator republicano Arnold Shwarzenegger em seu lugar. Até 14 de junho quando foi publicado o ultimo balanço nacional para cidades de mais de 100 mil habitantes, 164 tentativas de recall estavam em curso nos Estados Unidos visando 262 funcionários diferentes.

Esse tipo de instrumento, mas não só ele, explica porque cada eleitor dos Estados Unidos não apenas vota em papel mas é identificado pela sua assinatura manual que é conferida a cada vez que ele se manifesta. Agora mesmo, neste de Gavin Newsom, foram colhidas 2,1 milhões de assinaturas mas apenas 1,7 milhões foram autenticadas pelo Secretario de Estado, o funcionário de todos os governos estaduais e municipais dos EUA encarregado de organizar eleições, inclusive e principalmente as “especiais”, como esta, que o povo pode encomendar a qualquer momento.

Antes que o resultado oficial da eleição de anteontem seja anunciado, em 22 de outubro, ha um prazo legalmente definido para que esses conferentes chamem cada eleitor, onde houver discrepância de assinatura, para que confirme pessoalmente como votou (sim, o ministro Barroso, cuja esposa tem uma offshore em Cay Biscaine, na Flórida, está careca de saber disso)...



Não é atoa que a democracia moderna chama-se “democracia representativa”. O que acabou com a versão romana, a segunda tentativa da democracia de caminhar pela Terra, foi a expansão do território do império e a distância que os eleitores ficaram dos seus representantes. Longe do “olho do dono”, eles mergulharam na corrupção até afundar o império na dissolução que acabou nas invasões bárbaras.

A FIDELIDADE DA REPRESENTAÇÃO é, portanto, a chave-de-ouro do sistema. E essa fidelidade apoia-se estritamente na capacidade de identificar positivamente QUEM REPRESENTA QUEM em cada instância do governo e de garantir que o representante esteja concretamente submetido à vontade dos seus representados.

Isso só é possível com o sistema de voto distrital puro onde cada município, estado e, finalmente a nação, é dividido em distritos eleitorais contendo o mesmo numero aproximado de eleitores cujo desenho só pode ser alterado com base no censo, e cada candidato só pode se candidatar por um único distrito. Eleito por maioria simples sabe-se, pelo endereço, o nome de cada representado desse representante, e estes podem lhe retirar o mandato a qualquer momento, bastando alegar, para isso, que não se sentem bem representados, desde que 50% + 1 de seus concidadãos de distrito concordem com ele.

Isso, rigorosa e sumariamente, ACABA COM A PUTARIA, e foi o truque simples que, em menos de 100 anos, depois das reformas da Progressive Era, na virada do século 19 para o 20, tornaram os Estados Unidos 50 vezes mais ricos (e livres) que todos os outros países do mundo.

É exatamente por essa razão que você ainda não sabia que esse sistema existe e como ele funciona, e que nenhum órgão da "imprensa-turba" brasileira deu uma linha sequer sobre o recall na Califórnia.


02 de outubro de 2021
vespeiro

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