"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

DECADÊNCIA E SUBMISSÃO


shNão lembro quem disse, mas, no fim das contas, um romance nada mais é que uma vida, a biografia de um personagem imaginário. Não necessariamente uma biografia completa, do berço ao túmulo, mas um apanhado dos episódios essenciais que marcam a figura de um destino individual de tal modo a fazer dele um símbolo, um modelo aproximativo de muitos destinos possíveis.
Em Soumission, de Michel Houellebecq (Paris, Flammarion, 2015), romance de sucesso mundial já traduzido no Brasil, a vida do personagem corre paralela à do seu país natal, num roteiro de decadência inelutável que  desemboca na submissão quase simultânea de ambos ao islamismo. O paralelo é realçado pelos nomes: François-France.
“Submissão”, em vez de “conversão”, é a palavra correta. François e a França não se convertem ao islamismo: caem dentro dele como corpos fatigados  que desabam na cama.
A história transcorre no ano de 2022, numa eleição nebulosa em que o Front Nacional ganha o voto majoritário no primeiro turno (34 por cento), tendo como principal concorrente a Fraternidade Muçulmana que, transformada em partido político, supera em votação os socialistas e a moribunda direita gaullista. O Front representa, em teoria, a identidade nacional francesa, mas muitos católicos lhe sonegam apoio porque são “demasiado terceiromundistas” (sic). Cenas de violência acompanham as eleições, mas, como só são noticiadas na mídia com muitos dias de atraso, tudo transcorre numa atmosfera de aparente normalidade. Para evitar a ascensão do Front Nacional ao poder, as facções minoritárias se aliam à Fraternidade e elegem presidente o muçulmano Mohammed Ben Abbes. É o velho mito comunista da “frente antifascista” restaurado, agora sob patrocínio islâmico.
O novo governante é um homem simpático e moderado, que mantém a ala radical sob rédea curta e faz toda sorte de concessões gentis aos partidos aliados, insistindo em manter sob controle islâmico tão somente... a educação nacional. De início estão todos felizes, porque parece que nada vai mudar substancialmente, mas François logo percebe a profundidade das reformas introduzidas por Ben Abbes quando vai dar suas lições de literatura na Universidade de Paris III – a Sorbonne -- e vê que a mais tradicional das universidades francesas, agora subsidiada por bilionários sauditas, virou oficialmente uma instituição islâmica na qual não há mais lugar para um agnóstico. Pouco após a demissão, convidado a dirigir a edição das obras do romancista J.-K. (Joris-Karl) Huysmans para a Bibliothèque de la Pléiade, ele vai a uma recepção elegante promovida pela editora Gallimard e nota que ali só há homens: as mulheres, no Islam, ficam em casa. Na escala maior da sociedade as mudanças não são menos portentosas: expelido o sexo feminino do mercado de trabalho, sobra emprego para todos os homens. Da noite para o dia, a França mudou de identidade sem nem mesmo perceber. Ben Abbes, o salvador da pátria, já sonha em integrar na Europa várias nações muçulmanas e restaurar o Império Romano em versão islamizada.
Ao longo da narrativa espalham-se muitas observações exatas sobre a lenta e inexorável decomposição cultural e ideológica da França, cada vez mais desprovida de uma autoridade moral e intelectual habilitada a infundir um sentido de ordem na vida nacional. Quando os partidos políticos, a Igreja, a Maçonaria, a intelectualidade e até o movimento nacionalista se mostram incapazes de compreender o enrosco em que se meteram, a entrada do Islam em cena surge como um alívio improvisado e humilhante, mas necessário: a nação confessa sua bancarrota e, com um pragmatismo entre derrotista e cínico, sem alegria nem tristeza, submete-se ao inevitável. Além de mostrar claramente aquilo que ninguém quer ver – que a força do Islam na Europa não está no terrorismo, e sim na imigração em massa --, a islamização da França, tal como a descreve Houellebecq, ilustra, mutatis mutandis, o conceito de “revolução passiva” de Antonio Gramsci.
Igualmente oportunista e leviana é a “conversão” do próprio François. Ela é magistralmente descrita sob a forma de um paralelo inverso com a biografia espiritual de J.-K. Huysmans. François é autor de uma tese universitária sobre o romancista de Là-Bas,  com a qual granjeou algum prestígio acadêmico. Huysmans, na juventude, envolveu-se em ocultismo e satanismo e, através de uma longa e atormentada crise espiritual, acabou se convertendo ao catolicismo, encerrando seus dias como oblata de uma ordem religiosa.
Nada de semelhante se passa com François. Sua aproximação com o Islam é tranqüila e sem dramas. Não tem, de fato, nenhuma profundidade espiritual. Mesmo a doutrinação que recebe é rala e brevíssima. Limita-se à leitura de um livreto de Robert Rediger, belga islamizado e discípulo de René Guénon, cuja ascensão na política francesa lhe permite viver com suas várias esposas – uma das quais de apenas quinze anos -- num casarão elegantíssimo outrora pertencente ao crítico Jean Paulhan (precursor do desconstrucionismo, portanto um dos pais da decomposição cultural), discursando sobre as virtudes do Islam e, contra o mandamento corânico expresso, bebendo vinho na maior tranqüilidade (um hábito que nos anos 80 notei ser muito comum entre intelectuais “perenialistas”  islamizados).
Os argumentos com que Rediger muda a cabeça de François são de uma leviandade a toda prova. Consistem de:
(1) Uma promessa de reintegrá-lo no corpo docente da Sorbonne.
(2) Uma apologia do intelligent design em termos genéricos que serviriam para qualquer religião.
(3) Um discurso sobre as belezas da poligamia do ponto de vista darwiniano: condena os fracos e pobres ao celibato e oferece aos homens de prestígio, como por exemplo um professor universitário, o acesso fácil a mulheres..
Para o quarentão François, é uma oferta irrecusável. Após perder sua última namorada, uma moça judia que foge para Israel para escapar do anti-semitismo crescente na terra do capitão Dreyfus, ele se convence de que já não tem sex appeal, de que sua vida amorosa chegou ao fim: busca alívio na bebida e nas prostitutas, com as quais se entrega a toda sorte de extravagâncias eróticas sem nenhum prazer. O que Rediger lhe oferece é a restauração, por via legal, da virilidade evanescente: no Islam todos os casamentos são arranjados à distância por meio de alcoviteiras e da instituição dos dotes, poupando aos tímidos, fracos e velhos os desafios da conquista amorosa e favorecendo, em vez dos atrativos viris, a mera superioridade financeira (nem François nem seu novo guru percebem que isso vai contra o princípio da seleção natural).
Tal como a aliança da direita e da esquerda com a Fraternidade Muçulmana, a conversão de François é um arranjo de ocasião, improvisado sem qualquer exame de suas implicações morais e existenciais de longo prazo. François apenas contempla as mocinhas tímidas, mudas e indefesas que se substituíram às ousadas feministas da época pré-islâmica, e conclui, com uma espécie de cinismo inconsciente:
-- Não terei nada a lamentar.
No meio da narrativa, François, instigado por um amigo, faz uma visita à abadia de Rocamadour, imponente monumento da arquitetura medieval e foco de peregrinação tradicional onde se dera a conversão de J.-K. Huysmans ao catolicismo. Mas justamente ali, onde o autor de La Cathédrale vivenciara as mais profundas e arrebatadoras experiências espirituais, ele sente uma vaga emoção estética ante o ritual gregoriano e sai imune a toda mensagem cristã.
Sem nenhuma hostilidade especial ao cristianismo, ele aceita sem exame nem entusiasmo o argumento de Rediger contra a Encarnação, baseado exclusivamente no desprezo à espécie humana: Deus não desceria do Seu Trono de Majestade para se misturar com essa gentalha.
É impossível enxergar em Soumission o menor elemento autobiográfico: Houellebecq jamais freqüentou uma universidade (teve de documentar-se para descrever a vida na Sorbonne) e, com toda a evidência, não se identifica com o personagem central, cujo merecido desprezo por si mesmo transparece a cada linha da narração na primeira pessoa. Houellebecq é um daqueles gozadores a um tempo sádicos e discretos, que demolem tudo sem dar a impressão de estar fazendo nada de mais.
O duplo paralelismo – direto com o do destino nacional francês, inverso com a vida de J.-K. Huysmans – é a chave da sutil estrutura narrativa de Soumission: desaparecida do horizonte mental qualquer referência exceto museológica à experiência cristã, esfarelada a consciência entre mil e um artificialismos culturais e ideológicos – do desconstrucionismo ao darwinismo cínico da Nouvelle Droite --,  a alma da nação e a do indivíduo caem juntas no leito cômodo do fato consumado.

Publicado no Diário do Comércio.
25 de dezembro de 2015
Olavo de Carvalho

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