"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

O CHE QUE NOS COUBE



Lerer, o herói que salvava vidas, ao invés de tirá-las

Fez 40 anos aquele 25 de abril. Desci no aeroporto de Portela de Sacavem, em Lisboa, contratado pela Editora Francisco Alves para escrever um livro (“Portugal Um Salto no Escuro”) sobre a “Revolução dos Cravos”, ante o sucesso de meu livro anterior, sobre as eleições de 15 de novembro de 74:-“As 16 Derrotas Que Abalaram o Brasil”, com a derrota da ditadura. Telefonei para Marcio Moreira Alves exilado lá. Atende outro:

– Nery, aqui é o David Lerer.
– O guerrilheiro africano? Estou indo para aí agora.
E o taxi me deixava na rua Sant`Ana em Lapa, onde ouvi a mais extraordinária historia de guerras vividas por um brasileiro no exilio:

– David, vamos arranjar um gravador para escrever um livro.
Começamos. Eu bebia vinho e perguntava. David bebia vinho e contava. Depois de quatro horas de gravação, David empacou :
– Não dá mais, Nery. Mais para a frente a gente continua.

Logo David começou a dar aulas na Faculdade de Medicina de Lisboa, esperando o fim do exílio. E publiquei, na revista “Status”, um perfil desse pequeno e bravo “Che Guevara Que nos Coube”, na exata definição de Antonio Callado, personagem do romance“La Vida Exagerada de Martin Romanan” do grande escritor peruano Alfredo Bryce Etchenique

GOLPE DE 64

Paulista de 1937, filho de imigrantes poloneses, formado em 1961, em 1962 era medico do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo e se elege vereador pelo Partido Socialista. No golpe de 64, preso durante dois meses numa cela com o historiador Caio Prado Junior, o físico Mario Shemberg e o medico Feruz Gicovati, presidente do PSB paulista. Sai em 65, foi vice de Franco Montoro, do PDC, para a prefeitura de São Paulo. Perderam.

Em 1966, deputado federal pelo MDB. No AI-5 de 13 de dezembro de 68, é preso, barbaramente espancado, costelas e rosto quebrados. É cassado na lista de Carlos Lacerda, com 10 deputados e 2 juízes.

Solto, tem a prisão preventiva decretada. Atravessa clandestino a fronteira do Brasil com o Uruguai, exílio. Do Uruguai, pelo Chile, para o Peru. Em maio de 71, o maior terremoto da historia do Peru soterra varias cidades e mata 300 mil pessoas. Atravessando a pé dezenas de quilometros, por dentro do frio andino, foi o primeiro estrangeiro a chegar à cordilheira. Nos Andes, reencontra a medicina, resolve urgências, cura feridos.

Recebe da França uma bolsa para estagiar em um grande hospital de Paris. Durante três anos faz cirurgias e tratamento médico dos exilados brasileiros sem direito à Previdência e opera vitimas das torturas no Brasil.
A aventura mal começava.

MOÇAMBIQUE E ANGOLA

Samora Machel, comandante da “Frelimo” (Frente de Libertação de Moçambique), chega à Itália para divulgar a guerrilha heroica da miserável colônia portuguesa perdida no sul da África, onde dezenas de negros enfrentavam, nas florestas, 60 mil soldados do general Kaulza Arriaga.  
David foi a Roma, apresentou-se a Samora Machel, recebeu convite para trabalhar na linha de frente da Frelimo que desesperadamente precisava de um cirurgião. Primeiro brasileiro e dos raros brancos a entrar naquela guerra sem manchetes.

Entrou pela Tanzânia, atravessou o rio Rovuna infestado de crocodilos e penetrou pelo norte de Moçambique numa coluna de 30 homens. Era um caminho sem volta. Ou a vitória ou a morte. Durante um ano percorreu as selvas e savanas de Cabo Delgado, Niassia e Zambezia. Único médico em milhares de quilômetros quadrados, operando feridas no mato, nas condições mais precárias, sem oxigênio, sem transfusão de sangue. Ele e a morte, frente a frente.

E uma solidão profunda. Os guerrilheiros mal falavam algumas dezenas de palavras em português. A exaustão das longas marchas dentro da floresta, a sujeira, os insetos e a fome amoleceram-lhe os dentes, incharam pés e mãos e cobriram o corpo de feridas e infecções. 
Em 7 de abril de 74, foi ferido em combate em um ataque de helicópteros portugueses a uma base guerrilheira na região de Mueda. Sangrando, rolou por um barranco. Descoberto por um soldado português, quase foi morto. Anos depois reencontrou o soldado português vendendo bilhetes de loteria nas ruas de Lisboa. Perdera as duas pernas numa mina.

Vitoriosa a guerrilha de Samora, David virou ministro da Saúde e criou o primeiro plano de saúde de Moçambique, que tinha 95% de analfabetos. E reduziu o receituário médico a 300 remédios, para baratear.

Quando Angola chega às batalhas finais de Luanda, David está lá como médico do líder Agostinho Neto e diretor do Hospital Militar.
Missão cumprida, foi para Lisboa ajudar a Revolução dos Cravos.

DAVID LERER

Sexta-feira, recebi do David este e-mail:
“ Caro amigo, nessa véspera de 25 de Abril, lembrei-me mais uma vez de você, o primeiro e melhor cronista da “Revolução dos Cravos”. Um comuna português, que participou comigo das Campanhas do MFA (Movimento das Forças Armadas) em 1975, mandou-me fotos da época, que te repasso. Com saudades e boas lembranças, David Lerer”.

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NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG 
– Nosso Che é muito melhor do que o argentino-cubano. Salva vidas, ao invés de tirá-las. Vida longa a David Lerer e a você também, amigo Nery(C.N.)


27 de abril de 2015
Sebastião Nery

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