"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

"TODO DIA É 68 PRA MIM".


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Num fim de tarde na árida São Paulo me encontrei com Zé Celso pisando o chão lendário do Teatro Oficina. Uma conversa com Zé é uma odisséia pela condição humana. O pretexto mais do que urgente é a reforma do Teatro Oficina, que vive mais uma batalha de uma saga que passou por um incêndio e brigas com o grupo Silvio Santos para sobreviver aos desmandos burocráticos nesta luta, desde 1958, contra a desumanização da vida. “São Paulo já é uma cidade asfixiante.  São Paulo precisa desse vazio.”

O teatro é obra de Lina Bo Bardi, que construiu o MASP e o SESC Pompeia, e neste ano comemora seu centenário. Arquiteto Lina no masculino, Zé relembra que ela gostava de ser chamada de arquiteto. “Porque ela se dizia anti-feminista, ela era muito provocadora. Ela realmente não gostava de mulherzinha arquiteta. Dizia: Eu sou arquiteto, é uma profissão que não tem sexo, é outra coisa. O nome dela é Achillina, que em italiano é águia.”

“Aqui é um processo natural de 55 anos, que não é levado em conta. É a companhia mais longeva do Brasil, mais conhecida no mundo. Está acontecendo uma involução no Brasil, com essa história do desaparecimento da cultura. Sobrevivemos à ditadura, mas a geração que se formou na ditadura desaprendeu muita coisa com a moral e cívica.

Nossa peça, o Robogolpe, começa com o suicídio do Getúlio. Eu devo minha vida a esse suicídio. O cinema novo, a bossa nova, todos devem a esse suicídio. Porque deslanchou uma época de maior liberdade, foram 10 anos maravilhosos. Não tinha burocracia, a cultura tinha um prestígio enorme.

Foi um momento cultural muito forte, que ultrapassou a ditadura, a gente superou o resistir, foi o re-existir, inventar estratégias novas porque a arte atravessa tudo, e superando até a visão de uma esquerda extrema, cuecona.

Mas o que o Fernando Haddad está fazendo é maravilhoso. Aqui em São Paulo está maravilhoso. Ele vê essa cidade que nós vemos, ele prestigia a cultura enquanto a Secretaria do Estado destruiu.
São Paulo é a capital do capital.”

*

O capitalismo é mais devorador do que a ditadura?
Não é um inimigo concreto. Hoje temos a especulação imobiliária. Ele pega a cabeça das pessoas. Tem hoje um fascismo popular. Hoje a esquerda está com todas as melhores causas, ambientalismo, punições da homofobia, liberdade da mulher, legalização das drogas… enquanto a direita é maioridade penal, privatização…

Eu não sou de partido nenhum, eu sou de esquerda, gosto da esquerda, tenho contradições mil com o PT, mas apesar disso acho que é o melhor partido que existe no sentido da real politique.

O PSDB foi um partido maravilhoso, de intelectuais da USP de centro esquerda, agora é um partido de direita. Foi o próprio PSDB que desapropriou o teatro para que não fosse para as mãos do Silvio Santos, em 1984, durante a ditadura, enquanto eu estava no exílio.
Aliás é lamentável que o Alckmin tenha ganho.

E o teatro brasileiro atual?
Tá difícil. Citando Henriete Morineau: “o teatro recuou, meu filho…”.
Os que estão realmente fazendo teatro, estão fazendo em lugares precários. É o problema da especulação imobiliária e da burocracia Stalinista. Stalinista! Stalinista! A Secretaria da Cultura do Estado é um Stalinismo explícito, é a burocracia irmanada com a especulação financeira. Kafka. Eles procuram destruir tudo que é vital, teatro, floresta.

O teatro nos faz ver o mundo. Tudo é espetáculo. O espetáculo das pessoas como fantoches do mercados e da pior cultura americana, é uma loucura. O Brasil tem uma puta cultura nacional reconhecida no mundo.

Os americanos estão absorvendo a cultura do mundo, inclusive a nossa, e nós reproduzindo pastiche.

Essa religião evangélica que faz apologia do capital, totalmente ideológica.
Felizmente entrou um papa mais porra louca, franciscano. Mas eu não gosto mesmo assim. A igreja tem que pedir perdão pelo que fez com a sexualidade do ser humano, uma violência, uma inquisição, a castração, que os evangélicos levam as últimas consequências.

E a política cultural no Brasil?
O problema do Brasil é que entraram os intermediários com a lei de incentivo. De burocratas que querem negociar e levar 20%. Os atores globais se tornaram commodities, eles agregam capital. Você coloca o ator global e consegue um patrocínio grande, é indiferente se tem algum sentido cultural.

E o tempo Zé?
Que tempo?

O tempo. Você com 77 anos, como é o tempo?
O tempo pra mim é uma coisa indomável. Está correndo muito depressa, girando muito rápido, e eu tenho muita coisa a fazer. Eu sofro do coração. Eu tenho que me poupar, mas eu não consigo.
(Zé canta) Perguntei ao coração se devia descansar, ele disse que não, que não devia.
Eu não consigo. O estresse é a grande praia aqui em São Paulo, é o estresse do trabalho.

E a morte?
A morte? Ela me ronda, pelo fato de ser cardíaco. O que me sustenta é o estresse. O que não me deixa morrer é o estresse e o prazer de fazer teatro.
As pessoas pensam que eu quero ser o fazendeiro, o manda chuva dessa cidade. Eu não tenho nada, nenhuma propriedade, pago aluguel.

Você tem o teatro Oficina, não?
Não. Quer dizer, aqui é minha vida misturada com minha obra.
O artista tem que devorar o mundo, pra não repetir, pra tornar ela nova, sempre.
O trabalho nosso em 68 foi descolonizar, quando Oswald nos remeteu aos indígenas, ao candomblé, à cultura pop, tudo misturado. O teatro revolucionou. Não era mais Stanislavski ou Brecht, era o Oswald de Andrade.
O caminho até chegar materialmente neste espaço, visando o teatro de Estádio.

*

O teatro de Estádio é o projeto completo de Lina para aquele espaço do Teatro Oficina.
Zé conheceu Lina duas vezes.  No primeiro encontro com essa “diva” italiana, Zé era um garoto saído da faculdade de direito de terno, gravata e guarda-chuva. Encontrou Lina numa boate chique de Copacabana.

“Ela era linda. Eu ainda era muito tímido. Era 1962. E ela só me olhou, eu olhei pra ela. Era insuportável o olhar daquela mulher linda.  Ela olhava de baixo pra cima, aquele olhar malicioso.”

Lina morava na Bahia, e acompanhava o diretor Martim Gonçalves, diretor da Escola de Teatro da Universidade da Bahia, uma escola de vanguarda da época frequentada por uma geração que se destacaria, entre os alunos Glauber Rocha.

“Depois do golpe de 64, ela foi expulsa da Bahia, a escola de teatro fechou, essa coisa toda que aconteceu com o golpe. Ela veio pra São Paulo, e em 69, depois do AI5, o Glauber falou: você tem que trabalhar com a Lina.

Ela teve a ideia deste espaço durante a montagem de Nas selvas da cidade, em 69, tinha uma cena que os atores arrancavam as madeiras e aparecia esse chão e ela disse: – esse é o teu sertão. Nós  já queríamos montar naquela época Os sertões. Esse lugar aqui é o último ato dela, o canto do cisne, que remete ao primeiro, a Casa de vidro [onde hoje funciona o instituto Lina Bo Bardi] .
E hoje ela faz um sucesso internacional danado, por que ela é a arquiteta da crise, ela está na linha oposta dos construtores de torres, o que ela chama de arqueologia urbana. Ela aproveita os escombros, aqui ela aproveitou os arcos romanos da vila original daqui. Esse projeto é uma obra prima, já ganhou prêmio na Bienal de Praga.”

Foi numa viagem de ácido com o amigo cineasta Celso Lucas, temendo o limite do muro que impedia uma fuga no caso de uma invasão dos militares, que os dois “atravessaram” a parede. Ao relatar para Lina a experiência lisérgica ela refuta: “Eu sou arquiteto, não atravesso paredes, eu quebro paredes”.

Nascia o projeto do atual Teatro Oficina, na sua a terceira versão.
O teatro já tem 20 anos e precisa de consertos.

A Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo criou um edital para a reforma. Segundo Zé um  edital nos conformes “tecnocráticos” não levando em conta a transformação inerente à proposta de um projeto vivo, condizente com as necessidades do grupo Uzyna Uzona do qual Zé Celso é o fundador e diretor artístico, e nem mesmo com o arquiteto Edson Elito, que criou o projeto junto com Lina.

“Fizeram um edital para a reforma, sem acatar o coautor do projeto que é o Edson Elito, inclusive foi quem assinou a planta por que a Lina morreu um ano antes de ficar pronto. Aliás assinado por nós também, porque ela trabalhava junto com a gente.  No edital não existe uma menção à palavra cultura, nem ao Oficina. É só um edital tecnocrata total, um horror, insuportável de ler.”

“Esse espaço é uma transformação constante. Eles querem transformar isso num museu, é uma reforma de museu. Esse edital que foi feito pelo Secretario de Cultura do Governo do Estado, desse governo do Alckmin, que não sei porque ele taí, esse picolé de chuchu, essa seca enorme, a USP tá uma bosta, e esse cara taí, acho que por inércia, por interesse óbvio. O povo está inerte.”

O Condephaat, órgão responsável pela reforma, foi contactado e declarou: “garantimos que a interlocução com o grupo existe e assegura ao grupo que ele participará dos processos de discussão para elaboração e apreciação do projeto, a fim de garantir a adequação à natureza específica das atividades que ali se desenvolvem e o respeito aos ideais que norteiam o Oficina. A discussão sobre a elaboração do projeto terá continuidade, evidentemente, quando definida a empresa vencedora da licitação”.

Além do edital de reforma, outra indignação de Zé Celso é o destombamento do entorno, que ameaça sufocar o teatro com torres de concreto, traindo o projeto de Lina e a vocação do grupo para um teatro em comunicação com a cidade e o universo.

A briga pelo terreno com o grupo Silvio Santos durou décadas, e teve um final feliz com o tombamento inclusive do entorno em 2010 pelo IPHAN. Agora a proposta passa pelo destombamento do entorno, descaracterizando o projeto original de Lina de “abrir-se mais ainda para o exterior”. “Lina queria que o elenco, preparando-se para entrar em cena, tivesse este momento de concentração, contato com a cidade e com o Universo.”

O tombamento aconteceu durante o governo Lula, na gestão do Ministro da Cultura Juca Ferreira.

Foi oferecido a Zé um contrato de permissão a título precário de uso por dois anos do Teatro Oficina, que ele se recusa a assinar. Numa ligação telefônica feita por uma das arquitetas do grupo Uzyna Uzona para a Secretaria do Estado uma funcionária questionou sobre quando eles entenderiam que o teatro não era propriedade do grupo.  É o fantasma da velha questão de uso e propriedade, num espaço criado por eles. O teatro Oficina não é um simples teatro que pode ser repassado para um novo grupo como um imóvel de especulação.

Este oásis de arte e verde no coração da paulicéia, o Teatro Oficina, já renasceu três vezes. Após um incêndio criminoso em 1966, onde os mesmos para-militares que atacaram a TV Bandeirantes levaram o Oficina, construído pelo pré-tropicalista Joaquim Guedes, às cinzas. Já era o prenúncio do AI-5 que iria instaurar o terror da ditadura brasileira com seus desmandos e torturas.

O segundo teatro tinha palco giratório e uma arquibancada, obra de Flávio Império, inspirado pela linguagem brechtiana. Neste palco a história do teatro brasileiro, e da arte em geral, sofreria a grande reviravolta com O rei da vela de Oswald de Andrade e nascia o tropicalismo e sua antropofagia modernista.

“Montamos o Rei da vela com aquela cenografia antiga de teatro de revista, meio cubista, do Hélio Eichbauer. No que estreou essa peça descobrimos o Oswald de Andrade, no que se descobriu Oswald, aquele teatro foi totalmente superado.”

Isso aconteceu em 1967 levando em seguida o grupo para a efervescente Paris de 1968.
“Em 68 o mundo todo recebe essa noção do aqui e agora, a Tropicália, o Terra em transe do Glauber,  o Hélio Oiticica. Estávamos apresentando o Rei da Vela em Paris. Voltando do espetáculo a gente topou com mais de 250 barricadas. Estava instaurado no mundo inteiro maio de 68, o poder jovem que se chamava. 
É proibido proibir era o slogan. Depois isso teve influência em todas as revoluções, a revolução da alimentação, das drogas, da sexualidade – todas as coisas que vieram com 68. 68 não é uma época, 68 é quando se descobre o aqui e agora, e tira essa fantasia de uma sociedade justa.
A utopia é o aqui e agora ou nunca, o presentismo. Isso mudou minha vida inteira, depois disso todo dia é 68 pra mim. Todas as revoluções de agora são ramificações: o movimento das mulheres, o movimento gay, o movimento ecológico.
Todos esses movimentos que a esquerda pegou. A esquerda está maravilhosa, ela acolheu todas as revoluções e deixou toda a porcaria para a direita”.

13 de janeiro de 2015
Tracy Segal

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