“Direito se inclui na área das humanas a qual você se referiu na sua última entrada do blog?” – pergunta Bruno Bolson Lauda. “É que é absolutamente surpreendente o número de profissionais atuantes, experientes, que ficam a tentar obter uma vaga em bons cursos de mestrado e de doutorado, inclusive puxando o saco dos professores para que lhes concedam, em tempo, a almejada vaga.
Acredito que deve ter alguma importância para além do âmbito da academia na área jurídica, do contrário tantos não procurariam um pós reconhecido. Compreendo que, em Letras e em Sociologia, o pós seja somente uma procrastinação (se bem que, quais outras opções tem um bacharel nessas áreas? Servem para alguma coisa que não esteja ligada à academia?), mas, no Direito, passa por pelo menos uma boa medalha".
Meu caro Lauda: para começar, normalmente os cursos de Direito são vistos como pertencentes à área de humanidades. Com uma diferença: ao contrário dos cursos de Letras ou Sociologia, formam profissionais necessários à sociedade. Em As Viagens de Gulliver, Swift faz uma crítica corrosiva a juízes e advogados. Mas na hora de um aperto legal, o recurso a um advogado é tão crucial quanto uma visita a um médico.
Mas, cá entre nós, não sei muito para que serve um curso de Direito. Minha mulher – a que partiu – era auditora fiscal e trabalhou toda sua vida com direito tributário. Tinha curso de Filosofia. Na época em que fez concurso, exigia-se apenas curso superior. Qualquer um. Podia ser até de Educação Física. Eu, que também fiz o concurso, tinha o curso de Direito, mas não exercia a profissão. Na época, já trabalhava em jornal. Dei algumas aulas para ela, pelo menos para introduzi-la no jargão jurídico. Resumindo: ela passou no concurso. Eu não.
Passou boa parte de sua vida elaborando pareceres jurídicos. Uma vez aposentada, passou a trabalhar no Conselho de Contribuintes em Brasília, última instância de julgamento de processos fiscais. Seus pareceres passaram a constituir jurisprudência. Passou também a assessorar uma importante banca de advocacia em São Paulo, na qual coordenava o setor tributário.
Já entrada nos 50, achou que precisava fazer um curso de Direito, para poder assinar petições. Alertei-a: não vais agüentar cinco anos. Ela insistiu em seu propósito e fez vestibular na prestigiosa Mackenzie. Não agüentou três dias.
Na primeira aula de Direito Constitucional, um decrépito professor perguntava a seus alunos:
- O direito é uma emanação da so.. da so...?
Ninguém conseguia terminar a frase.
- Da socie... da socie...?
Os alunos, demonstrando invulgar inteligência, responderam em coro:
- Da sociedade!!!
- Muito bem - disse o professor, com um sorriso beatífico. - Ao direito dos costumes, costumamos chamar de Direito con... Direito con...?
Silêncio total.
- Direito consue...? Consue...?
Silêncio ainda mais espesso.
- Consuetu...? Consuetu...?
Nada feito.
- Consuetudi...? Consuetudi...?
Muito menos. O brilhante professor exclamou então com um sorriso sapiente na face, sorriso de quem detém o saber:
- Consuetudináááááário!!!
Foi seu terceiro e último dia de curso. Preferiu continuar elaborando pareceres e dando consultoria sem diploma algum. Como ela, milhares de outros auditores fiscais e fiscais trabalham com Direito na Receita Federal, embora oriundos de profissões que com Direito nada tem a ver. Uma de minhas dentistas, eu a perdi para o Ministério da Fazenda. Insatisfeita com sua profissão, fez concurso para auditor e hoje lida com leis.
Há despachantes por aí afora que entendem mais de Direito que muito bacharel. Continua o Lauda:
“De qualquer forma, realmente não nego que, mesmo na área jurídica, a bolsa pode ser uma armadilha. Um amigo meu alertou-me dela já há algum tempo (e é por isso que atualmente, mesmo recebendo-a, com um ano de mestrado e aos vinte e quatro anos, procuro emprego). E talvez até mesmo em outras áreas. Conheço mestrandos em Farmácia, Agronomia e Medicina que mal vêem a hora de largar a dita cuja e arranjar um emprego em uma boa multinacional ou em um bom hospital. Como com certeza não devo ser o único a se manifestar acerca dessa sua última entrada, então não direi mais nada”.
Raciocinando um pouco mais adiante. Imaginemos que alguém se forme hoje em Direito e opte por um mestrado e doutorado. Não terá exercido a profissão e, se pensar em voltar ao ramo depois da pós-graduação, as leis já serão outras. Particularmente neste país em que os responsáveis pelo ordenamento jurídico são acometidos de uma especial fúria legiferante. Mestrados e doutorados na área humanística, eu os vejo de modo geral como masturbação acadêmica. Só afastam o profissional do mercado de trabalho.
Ora, me perguntará o leitor: por que então fiz doutorado? Simples. Fiz por diletantismo. Queria viajar, queria Paris, queria seus vinhos e queixos, suas mulheres e suas artes. Nem apanhei meu diploma. Havia toda uma burocracia para apanhá-lo e eu não tinha disposição alguma de enfrentá-la só pra pegar um papelucho.
Mas não posso dizer que minha pós-graduação foi inútil. Indiretamente, para algo o doutorado serviu. Conheci por dentro uma sociedade desenvolvida, conheci melhor a Europa, aperfeiçoei mais um idioma, enviei crônica diária de Paris para meu jornal em Porto Alegre, divulguei a obra de Ernesto Sábato na França e passei a traduzir seus livros. (Meu orientador, que não sabia se Sábato era açougueiro ou alfaiate, acabou escrevendo um livro sobre sua obra e divulgou sua literatura em todo o continente. Fui bom professor). Para um jornalista, isto constitui uma excelente ferramenta de trabalho. Mas nada tinha a ver com o curso em si.
Uma vez doutor, descobri – para minha surpresa – que doutorado servia para lecionar. Lecionei literatura brasileira e comparada durante quatro anos. Foram os anos mais inúteis de minha vida.
21 de julho de 2014
janer cristaldo
Acredito que deve ter alguma importância para além do âmbito da academia na área jurídica, do contrário tantos não procurariam um pós reconhecido. Compreendo que, em Letras e em Sociologia, o pós seja somente uma procrastinação (se bem que, quais outras opções tem um bacharel nessas áreas? Servem para alguma coisa que não esteja ligada à academia?), mas, no Direito, passa por pelo menos uma boa medalha".
Meu caro Lauda: para começar, normalmente os cursos de Direito são vistos como pertencentes à área de humanidades. Com uma diferença: ao contrário dos cursos de Letras ou Sociologia, formam profissionais necessários à sociedade. Em As Viagens de Gulliver, Swift faz uma crítica corrosiva a juízes e advogados. Mas na hora de um aperto legal, o recurso a um advogado é tão crucial quanto uma visita a um médico.
Mas, cá entre nós, não sei muito para que serve um curso de Direito. Minha mulher – a que partiu – era auditora fiscal e trabalhou toda sua vida com direito tributário. Tinha curso de Filosofia. Na época em que fez concurso, exigia-se apenas curso superior. Qualquer um. Podia ser até de Educação Física. Eu, que também fiz o concurso, tinha o curso de Direito, mas não exercia a profissão. Na época, já trabalhava em jornal. Dei algumas aulas para ela, pelo menos para introduzi-la no jargão jurídico. Resumindo: ela passou no concurso. Eu não.
Passou boa parte de sua vida elaborando pareceres jurídicos. Uma vez aposentada, passou a trabalhar no Conselho de Contribuintes em Brasília, última instância de julgamento de processos fiscais. Seus pareceres passaram a constituir jurisprudência. Passou também a assessorar uma importante banca de advocacia em São Paulo, na qual coordenava o setor tributário.
Já entrada nos 50, achou que precisava fazer um curso de Direito, para poder assinar petições. Alertei-a: não vais agüentar cinco anos. Ela insistiu em seu propósito e fez vestibular na prestigiosa Mackenzie. Não agüentou três dias.
Na primeira aula de Direito Constitucional, um decrépito professor perguntava a seus alunos:
- O direito é uma emanação da so.. da so...?
Ninguém conseguia terminar a frase.
- Da socie... da socie...?
Os alunos, demonstrando invulgar inteligência, responderam em coro:
- Da sociedade!!!
- Muito bem - disse o professor, com um sorriso beatífico. - Ao direito dos costumes, costumamos chamar de Direito con... Direito con...?
Silêncio total.
- Direito consue...? Consue...?
Silêncio ainda mais espesso.
- Consuetu...? Consuetu...?
Nada feito.
- Consuetudi...? Consuetudi...?
Muito menos. O brilhante professor exclamou então com um sorriso sapiente na face, sorriso de quem detém o saber:
- Consuetudináááááário!!!
Foi seu terceiro e último dia de curso. Preferiu continuar elaborando pareceres e dando consultoria sem diploma algum. Como ela, milhares de outros auditores fiscais e fiscais trabalham com Direito na Receita Federal, embora oriundos de profissões que com Direito nada tem a ver. Uma de minhas dentistas, eu a perdi para o Ministério da Fazenda. Insatisfeita com sua profissão, fez concurso para auditor e hoje lida com leis.
Há despachantes por aí afora que entendem mais de Direito que muito bacharel. Continua o Lauda:
“De qualquer forma, realmente não nego que, mesmo na área jurídica, a bolsa pode ser uma armadilha. Um amigo meu alertou-me dela já há algum tempo (e é por isso que atualmente, mesmo recebendo-a, com um ano de mestrado e aos vinte e quatro anos, procuro emprego). E talvez até mesmo em outras áreas. Conheço mestrandos em Farmácia, Agronomia e Medicina que mal vêem a hora de largar a dita cuja e arranjar um emprego em uma boa multinacional ou em um bom hospital. Como com certeza não devo ser o único a se manifestar acerca dessa sua última entrada, então não direi mais nada”.
Raciocinando um pouco mais adiante. Imaginemos que alguém se forme hoje em Direito e opte por um mestrado e doutorado. Não terá exercido a profissão e, se pensar em voltar ao ramo depois da pós-graduação, as leis já serão outras. Particularmente neste país em que os responsáveis pelo ordenamento jurídico são acometidos de uma especial fúria legiferante. Mestrados e doutorados na área humanística, eu os vejo de modo geral como masturbação acadêmica. Só afastam o profissional do mercado de trabalho.
Ora, me perguntará o leitor: por que então fiz doutorado? Simples. Fiz por diletantismo. Queria viajar, queria Paris, queria seus vinhos e queixos, suas mulheres e suas artes. Nem apanhei meu diploma. Havia toda uma burocracia para apanhá-lo e eu não tinha disposição alguma de enfrentá-la só pra pegar um papelucho.
Mas não posso dizer que minha pós-graduação foi inútil. Indiretamente, para algo o doutorado serviu. Conheci por dentro uma sociedade desenvolvida, conheci melhor a Europa, aperfeiçoei mais um idioma, enviei crônica diária de Paris para meu jornal em Porto Alegre, divulguei a obra de Ernesto Sábato na França e passei a traduzir seus livros. (Meu orientador, que não sabia se Sábato era açougueiro ou alfaiate, acabou escrevendo um livro sobre sua obra e divulgou sua literatura em todo o continente. Fui bom professor). Para um jornalista, isto constitui uma excelente ferramenta de trabalho. Mas nada tinha a ver com o curso em si.
Uma vez doutor, descobri – para minha surpresa – que doutorado servia para lecionar. Lecionei literatura brasileira e comparada durante quatro anos. Foram os anos mais inúteis de minha vida.
21 de julho de 2014
janer cristaldo
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