Jornalixo x Jornalismo: a eterna batalha – 3by Fernão |
Para uma sociedade unanimemente embarcada no sonho da democracia, o único sistema de constituição do poder do Estado em que a “opinião pública” é o fator determinante, estava claro desde sempre que a liberdade de imprensa é uma consequência necessária da soberania do povo, e que onde essa soberania reina absoluta a censura não chega a ser um perigo, é antes um absurdo.
“O congresso não deverá fazer qualquer lei a respeito de um estabelecimento de religião, ou proibir o seu livre exercício; ou restringindo a liberdade de expressão, ou de imprensa; ou o direito das pessoas de se reunirem pacificamente, e de fazerem pedidos ao governo para que sejam feitas reparações de queixas” reza a primeiríssima emenda à constituição americana, que abre o chamado Bill of Rights, onde se lista tudo que NINGUÉM, em hipótese nenhuma, pode fazer contra o seu povo.
Assim, apesar do pobre retrospecto de que reconstituímos alguns marcos até aqui, nunca houve dúvida naquela sociedade, até às primeiras décadas do Terceiro Milênio, de que para colher os benefícios inestimáveis da liberdade de imprensa é preciso submeter-se aos malefícios inevitáveis que vêm junto com ela. Tocqueville, lá nos idos de 1830, resumiu assim a questão: “Eu não voto à liberdade de imprensa aquele amor incondicional e instantâneo que se dedica às coisa boas por natureza; eu a amo muito mais pelos males que ela evita que pelo bem que ela faz”.
É dessa constatação que nasce o axioma de que, assim como o único meio realista de neutralizar os produtos podres da liberdade de empreender é multiplicar o número de empreendedores, o único meio saudável de neutralizar os produtos podres do jornalismo é multiplicar o número de jornais.
Era este o andar da carruagem quando passa a desmanchar-se aceleradamente uma América rural ainda completamente desprovida de equipamento regulatório capaz de domar as novas forças que se desencadeavam sob o impacto da revolução industrial, da ferroviarização de seu território, do aperfeiçoamento das técnicas de gestão capitalistas e dos defeitos do sistema político que blindava os representantes eleitos contra a insatisfação dos seus eleitores por pelo menos quatro anos e deixava o país indefeso contra a corrupção.
Instala-se um processo desenfreado de urbanização e concentração da riqueza incompatível com a democracia. E o jornalismo foi o fator determinante para deter os monopólios que ameaçavam torna-la insustentável, inclusive e principalmente, os monopólios do jornalixo que começavam a despontar.
Se a resposta para a sustentabilidade da afluência continuada de uma sociedade que condenara toda riqueza que não viesse do trabalho era garantir um nível de concorrência tal que os empreendedores tivessem de disputar trabalhadores aumentando continuamente os salários e consumidores diminuindo continuamente os preços, a resposta para a sustentação da vitalidade da democracia era dar voz autêntica, através da imprensa, a todos os interesses e a todas as opiniões proporcionando que cada pequeno segmento do país se expressasse pelos seus próprios jornais.
Foi assim que nos três primeiros quartos do século 20 o capítulo da legislação antitruste voltado para a mídia estabeleceu-se, de fato, como a principal garantia da sustentabilidade da democracia. Proibiu-se a propriedade cruzada de jornais, rádios e televisões, assim como a ocupação de mercado por qualquer desses meios além de limites estreitos (em geral 30% de cada praça), pois num país onde a democracia finca suas bases em cada comunidade, a política não tem porteiras e cada pessoa tem o direito de oferecer-se aos seus pares como candidato ao que quer que seja sem pedir licença a ninguém, cada vila tinha de ter os seus próprios jornais e as suas próprias rádios, umas concorrendo com as outras.
O sucesso fulminante do posicionamento político e editorial assumidos por Pulitzer e McClure, fundamentado basicamente na escolha e nas razões para a escolha do público ao qual decidiram dirigir-se, teve como contrapartida, em paralelo com a transparência com que foram assumidos, a busca obsessiva do máximo de objetividade na apuração dos fatos sobre os quais seus jornais se reservavam o direito de opinar. Os fatos estão under god (não podem ser mudados) e pertencem aos leitores. A honra individual, under the law. A opinião sim, pode pertencer a cada um. E isso criou o modelo.
Para ser reconhecido como uma instituição do sistema democrático encarregada da mediação entre representantes e representados e, portanto, independente do Estado, objeto por excelência do exercício de muckraking que define a vassalagem de cada órgão de imprensa ao seu público, e descartado por óbvio o Estado para o papel de fiscal dessa função, a própria imprensa, para declarar-se accountable como tudo tem de ser na democracia, convocou seus leitores a fiscalizá-la tornando explícitas as regras pelas quais comprometia-se a abordar os fatos, desafiar seus próprios achados, balizar suas investigações e tratar seus investigados.
Quanto mais aferível essa preocupação, independente de acertos e erros desde que não houvesse compromisso com o erro, mais o público a reconhecia e traduzia em circulações crescentes, fortalecendo o lado negocial do empreendimento. E ao esvaziar as circulações dos concorrentes, o bom jornalismo empurrava todo o resto da imprensa, mesmo as grandes redes mais propensas ao jornalixo, para um comportamento mais republicano.
Até por desonestidade era preciso fazer um jornalismo que parecesse honesto. E isso fez a idade de ouro dessa instituição.
A dupla natureza da imprensa, de equipamento institucional constitutivo das democracias representativas e empreendimento comercial que precisa do sucesso econômico para poder manter a necessária independência, sempre foi, entretanto, o fio da navalha sobre o qual têm tido de se equilibrar todos quantos se dedicam a essa atividade.
E então chegou a internet...
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