Donald Trump, o que confessadamente “não sabe perder”, colocou-se frontalmente contra a democracia americana porque perdeu. Não tenho duvida nenhuma sobre qual dos dois irá para a lata de lixo da História…
“Judicialização”, entretanto, é uma expressão infeliz para designar as ações com que está entrando na justiça, pois vem carregada do sentido que se dá a ela no Brasil, de “tapetão”, de falseamento da regra. Lá, quando não foi diretamente escrita, a regra foi formalmente referendada, no voto, pelos próprios eleitores. Não pode ser mudada nem monocraticamente, vai sem dizer, nem mesmo por “colegiados”, a menos que o povo expressamente concorde com isso no voto, preto no branco. Na democracia o povo é quem faz a lei e o governo é quem, acima de todos os outros, é obrigado a obedece-la sob pena de destituição. Assim, ha que ter todo cuidado ao transpor o vocabulário da nossa selva política e institucional para a realidade americana.
Não é por caso que o voto no país que inventou os computadores e as linguagens de código continua sendo em papel e na língua que o povo inteiro fala. A primeira função de um sistema eleitoral democrático é não permitir que paire qualquer dúvida entre a vontade expressa por cada eleitor e o modo como ela será compreendida pelo sistema. Não ha que haver “traduções” no meio do caminho. Por isso o voto assume a forma de um contrato pessoal e intransferível do eleitor com o sistema, assinado pelo dono como um cheque, contado e arquivado na sequência para permanecer acessível a qualquer momento em que haja uma dúvida.
Esclarecida essa parte da questão, resta o gigantesco problema real. Pela primeira vez em sua história os Estados Unidos estão divididos como o resto mundo porque as suas famosas “excepcionalidades” nunca estiveram tão enfraquecidas. Mais especialmente que todas, está de todo esquecido o viés anti-monopolista e de garantia de um nível alto de competição em benefício do consumidor que a democracia americana adotou a partir do final do século 19 e que os manteve com empregos e salários em alta e isentos da tentação socialista ao longo de todo o século 20.
O fim do sonho de vencer pelo trabalho sem ter de se vender às máfias politicas e a concentração desenfreada da riqueza de hoje decorrem da desastrosa decisão de enfrentar o desafio do capitalismo de estado chinês com as mesmas armas dele em vez de impor-lhe as do capitalismo democrático. Deixar de taxar os produtos do desrespeito às leis de propriedade intelectual e da falta de dignidade no trabalho levou ao achinezamento dos salários em todo o Ocidente e à corrida, suicida para as democracias, das fusões e aquisições que concentraram pornograficamente a riqueza e reduziram em níveis dramáticos as condições de defesa de quem vive do trabalho.
Mas nem a imprensa que, no século 19, liderou a reforma que pôs eleitores e consumidores definitivamente no poder, nem qualquer dos dois candidatos atacam o problema pelo ângulo do aggiornamento da gloriosa tradição antitruste que fez da democracia uma realidade que ia muito além das palavras e enriqueceu os Estados Unidos em níveis até então inimagináveis. Biden e os democratas, por razões absolutamente alheias aos fatos, tratam a China como um competidor fair. E Trump reage com rugidos mais para explorar eleitoralmente os ódios e frustrações dos excluídos da globalização do que para atacar qualquer aspecto concreto do problema.
É esta, na minha modesta opinião, a razão pela qual o país permanece tão “dividido”. Nenhum dos dois acena à massa dos encurralados entre os monopólios chineses e os monopólios americanos com uma resposta aos seus problemas reais. Os dois tratam de manipular em direções opostas as paixões que os efeitos dessa competição desleal despertam, com o que o divisor de águas migra do cérebro para o coração e passa a girar em torno, literalmente, do sexo dos anjos.
Para culminar a crise americana, que é de identidade mais que tudo, aparece a crise da sua imprensa. A transmissão do discurso deletério de Donald Trump sobre as supostas fraudes na eleição foi interrompida a meio e substituída por diatribes biliosas de gente que invade os lares dos telespectadores exibindo a credencial de “jornalista” na NBC, na ABC, na CBS e na CNBC, as principais redes de televisão aberta do país. O episódio marca a derrubada da ultima barreira de cerimonia da chamada “grande imprensa” com o seu compromisso com os fatos. Depois das campanhas de “cancelamento” de indivíduos dentro e fora das redações e pedindo censura nas redes sociais, aí está o próximo passo lógico da escalada de violência autoritária que, como já se disse tantas vezes aqui no Vespeiro, não vai parar onde já chegou.
Trata-se de um círculo vicioso. É muito provável que uma maioria suficiente para derrotá-lo fragorosamente tenha considerado seriamente votar contra Trump em vários dos momentos, nos últimos 4 anos, em que ele disse merda bastante para jogar por terra toda a liturgia que fez da democracia americana um exemplo para o mundo. Mas ao ver a esquerda dos fuzilamentos morais sumários rugir o seu ódio não só contra Trump mas também contra quem quer que resista à sua campanha internacional pela criminalização do óbvio viu nisso um perigo maior que o histrionismo do presidente e voltou atras. Não consigo enxergar outra razão para explicar que seu eleitorado tenha crescido dos 62 milhões de 2016 para os quase 70 milhões de votos de 2020, senão como uma reação defensiva contra essa imprensa cega o bastante para não enxergar quem é o “dílmico” Joe Biden só porque existe um Donald Trump, e alinhar-se histericamente com um ou com outro lado dessas mediocridades a ponto de fraudar abertamente todas as leis mais básicas do jornalismo.
A imprensa é importante demais para a democracia para ficar nas mãos do jornalismo de hoje. Mas como está e nada indica que não vá permanecer nesse ambiente de domínio agora explicito da censura e da covardia nas empresas jornalísticas, prevejo que dias piores virão para os Estados Unidos e consequentemente para o mundo.
06 de novembro de 2020
Vespeiro
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