"Quero imaginar sob que novos traços o despotismo poderia produzir-se no mundo... Depois de ter colhido em suas mãos poderosas cada indivíduo e de moldá-los a seu gosto, o governo estende seus braços sobre toda a sociedade... Não quebra as vontades, mas as amolece, submete e dirige... Raramente força a agir, mas opõe-se sem cessar a que se aja; não destrói, impede que se nasça; não tiraniza, incomoda, oprime, extingue, abestalha e reduz enfim cada nação a não ser mais que um rebanho de animais tímidos, do qual o governo é o pastor. (...)
A imprensa é, por excelência, o instrumento democrático da liberdade." Alexis de Tocqueville
(1805-1859)

"A democracia é a pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas." Winston Churchill.

quinta-feira, 8 de março de 2018

ORGÂNICO É ARTIGO DE LUXO, NÃO A SALVAÇÃO DO PLANETA



Na foto acima, está o montinho de lixo que achei na saída da feira orgânica do Parque da Água Branca (zona oeste de São Paulo). Minha intenção não é denunciar uma suposta falha na conduta dos feirantes – imagino que a coleta seja feita nos conformes. Quero chamar sua atenção para a caixa de papelão que aparece no alto da imagem.

Nela, está escrito “BioSüdtirol”. Südtirol (“Tirol do Sul” , em alemão) é o nome de uma região da Itália setentrional, fronteiriça com a Áustria. Uma zona alpina, de cumes nevados e vales verdejantes, com vaquinhas malhadas e pessoas rosadas, bilíngues e encasacadas. Em italiano, o lugar se chama Alto Adige. É de lá que vêm as maçãs verdes vendidas na feira orgânica. De uma paisagem que reproduz o desenho de uma embalagem de chocolate – ou vice-versa.

Absolutamente nada a ver com a zorra tropical da Água Branca, em que bermudas, regatas, chinelos e vestidinhos floridos vestem (mal e mal) a clientela ávida por belos vegetais orgânicos nos sábados de verão. Pessoas que, preocupadas com a preservação ambiental, trazem sacolas de lona para guardar as compras. Melhor dizendo, ecobags. Ecobags com a marca da rede americana Whole Foods– a Caaba da alimentação orgânica. Ecológico e chique.

Se o trajeto fosse todo em linha reta, as maçãs da BioSüdtirol viajariam 9.722 quilômetros para chegar de Lana, na Itália, a São Paulo. Alguém realmente crê que faz uma escolha ambientalmente correta ao comprá-las no Parque da Água Branca?

O mercado de orgânicos está cheio de incongruências desse tipo. Bananas embaladas individualmente. Ovos de “galinhas felizes” em estojos de plástico. Kiwis da Nova Zelândia.

É um exercício de autoengano comprar esses alimentos sob o pretexto de preservar a natureza. Seria muito mais honesto admitir que a aquisição de orgânicos se encaixa em outra categoria de consumo: o mercado de luxo.

As comidas orgânicas pertencem ao mesmo grupo que as trufas, a flor de sal, o caviar, o foie gras, o jamón ibérico, os pistilos de açafrão. São parentes do pão de fermentação natural, do queijo artesanal de leite cru, dos embutidos artesanais – outra subcategoria dos artigos de luxo que vem disfarçada de consumo consciente.

Essa identidade se manifesta no preço, na produção e no perfil do consumidor.

Vejamos: orgânicos são muito caros. Podem custar o dobro, o triplo ou outro múltiplo do valor do mesmo item produzido pelo método convencional. Mas espere aí – a produção orgânica é realmente mais cara. Beleza, argumento aceito. Examinemos então a produção.

Alimentos orgânicos são mais caros porque são produzidos em pequena escala, com maior cuidado, em operações que exigem mais mão-de-obra e de baixo rendimento. Perceba que essa descrição se aplica a qualquer item de luxo – de um par de Louboutins ao motor de uma Ferrari.

Quando falamos em “baixo rendimento”, nos referimos a duas coisas concomitantes: a baixa produtividade e o alto descarte. Numa horta orgânica e no atelier da Louis Vuitton, a produtividade é baixa porque se dedica mais trabalho a cada bolsa e a cada berinjela. E o descarte é alto porque a perfeição é a nota de corte. Retalhos de couro com pequenos defeitos e abobrinhas atacadas por passarinhos viram produto de segunda linha, ração animal e adubo. Seu valor, entretanto, está embutido no preço. Porque existe quem pague.

Falando em quem paga, examinemos agora o consumidor de orgânicos. Eu, por exemplo, que frequento a feira da Água Branca todos os finais de semana.

O comprador de orgânicos é um indivíduo urbano de classe alta ou média-alta, que não se importa em pagar mais por um produto de maior qualidade. O valor da grife – no caso, a certificação orgânica – e o desejo de participar de um clube seleto também influenciam a decisão de compra. O mesmo vale para as cervejas artesanais e para o tomahawk de gado wagyu do churrasqueiro machão.

Orgânico é exclusividade. É participar de um grupo de pessoas tão espertas quanto você, com quem você pode conversar na mesma sintonia. É mais uma bolha social do século 21.

Isto não é piada. O alimento orgânico não tem como salvar o mundo, devido a todas as características intrínsecas descritas acima – o alto preço e a baixa produtividade, principalmente.

Você pode achar que protege sua família dos defensivos químicos. Justo. Eu também penso assim, mas falta-me embasamento técnico para discutir a questão com propriedade. Eu compro orgânicos porque sei, por experiência (ou por sugestão), que eles são mais gostosos. Mas nem toda a comida que eu compro é orgânica. Isso me levaria à bancarrota. Não seria uma atitude sensata.

A consciência de que os orgânicos não são a salvação do planeta leva a decisões de compra melhores – como, por exemplo, evitar as maçãs italianas. Mas, tudo bem, eu entendo: acreditar na utopia bucólica da elite intelectual urbana é muito mais divertido e confortável.


08 de março de 2018
Marcio Nogueira, Folha de SP

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