A globalização reduz a capacidade de controle das nações
Tudo se passa como se a ordem global constituída por Estados nacionais autônomos não esteja mais dando conta das funções a que se propôs executar desde o século 17. Não estão claras nem as consequências dessa quebra de paradigma nem o que vem por aí para ocupar seu lugar.
No último dia 15 (no site, o texto foi publicado no sábado, 14), esta Coluna tratou de situação, digamos, aflitiva dos chefes de Estado do G-20, o grupo das 20 maiores potências globais, que já não conseguem controlar a arrecadação de impostos sobre o comércio de serviços, e até mesmo sobre o comércio de produtos. São transações que se transformaram em cada vez mais caudalosos fluxos digitais que ignoram fronteiras e que, assim, fogem à tributação convencional. Este é apenas um dos sintomas que refletem a perda de controle dos Estados nacionais sobre as novidades – e aí não são apenas as novas tecnologias – que vêm-se impondo globalmente.
O diário londrino The Guardian publicou, no último dia 5, amplo estudo do escritor britânico de origem indiana Rana Dasgupta, intitulado A extinção do Estado Nação (The demise of the nation state), dedicado ao mesmo tema, ou seja, dedicado à obsolescência do atual sistema político internacional.
A geometria geopolítica que emergiu da Idade Média era difusa, mas dominada por ampla teia de dinastias hereditárias ou por chefes militares que conquistavam territórios e os controlavam. Nessa ordem política, povos ou nações podiam ser governados ora por um rei, ora por príncipe, ora por um capitão militar, cujas sedes de governo podiam situar-se em terras que não tinham fronteiras entre si. Até hoje, por exemplo, a letra do hino nacional da Holanda lembra esse tipo de arranjo. É a proclamação do Príncipe de Orange (Guilherme de Nassau) que se orgulha de seu sangue germânico e que, na condição de chefe dos Países Baixos, promete honrar sempre o rei da Espanha.
A nova ordem, que consagrou a divisão do Ocidente em Estados nacionais geograficamente determinados, depois estendida ao resto do mundo, surgiu em 1648, dos escombros da Guerra dos Trinta Anos, por meio do Tratado de Westfalia. As pessoas e as comunidades locais já não são mais súditas do príncipe da hora, mas cidadãos de países nacionais delimitados por fronteiras, que têm constituição, bandeira, instituições e governo próprio.
A globalização, o cada vez mais incontrolável fluxo de capitais, a tecnologia digital, o rápido crescimento das criptomoedas que escapam ao controle dos bancos centrais, a disseminação dos chamados big data controlados por grandes empresas de informática, o aparecimento de 65 milhões de refugiados vitimados por violências não provocadas propriamente por guerras entre Estados, os novos impactos destrutivos sobre o meio ambiente, a incapacidade dos Tesouros nacionais de seguir garantindo o pagamento dos benefícios do bem-estar social, a impressionante capacidade do narcotráfico de criar poderes paralelos em muitos países – tudo isso é sintoma e, ao mesmo tempo, causa da desagregação da ordem global prevalecente até aqui.
É compreensível que as reações a esse desmanche sejam as mais disparatadas. O presidente Donald Trump, por exemplo, ameaça deixar a política de supervisão da ordem do Ocidente e proclama o princípio do “put America first”, sabe-se lá com que alcance. O Brexit, a proliferação de partidos populistas em todo o mundo, os movimentos separatistas da Europa, o acirramento dos conflitos tribais na África, a tentativa de criação do califado pelo Estado Islâmico, o aumento do ressentimento das classes médias – todas essas novidades parecem ensaios destinados a procurar escapes às pressões e à sensação de perda de patrimônio e renda que a desarticulação do antigo arranjo vem provocando. E, mais do que isso, parecem à procura de uma nova ordem cuja escala seja capaz de controlar as forças que ganham autonomia a partir do megadesmonte.
Ninguém imagine que os Estados nacionais estejam nas últimas. Como as pessoas, as instituições também gozam de prolongadas expectativas adicionais de vida. E, no momento, não há o menor indício do que possa ser apresentado como opção ao que está aí.
O que parece tendência inexorável é que o modelo em formação aponta para mais globalização, e não para menos. A necessidade imperiosa de unificar a tributação entre os países e os blocos econômicos é sinal disso. E mais globalização implica ainda maior integração financeira, fiscal e política.
Em todo o caso, tudo ainda está à espera de diagnósticos e de prognósticos. Um olhar mais atento sobre essas coisas pode ser o primeiro passo para entender a natureza e o impacto do admirável mundo novo em formação.
23 de abril de 2018
Celso Ming, Estadão
Tudo se passa como se a ordem global constituída por Estados nacionais autônomos não esteja mais dando conta das funções a que se propôs executar desde o século 17. Não estão claras nem as consequências dessa quebra de paradigma nem o que vem por aí para ocupar seu lugar.
No último dia 15 (no site, o texto foi publicado no sábado, 14), esta Coluna tratou de situação, digamos, aflitiva dos chefes de Estado do G-20, o grupo das 20 maiores potências globais, que já não conseguem controlar a arrecadação de impostos sobre o comércio de serviços, e até mesmo sobre o comércio de produtos. São transações que se transformaram em cada vez mais caudalosos fluxos digitais que ignoram fronteiras e que, assim, fogem à tributação convencional. Este é apenas um dos sintomas que refletem a perda de controle dos Estados nacionais sobre as novidades – e aí não são apenas as novas tecnologias – que vêm-se impondo globalmente.
O diário londrino The Guardian publicou, no último dia 5, amplo estudo do escritor britânico de origem indiana Rana Dasgupta, intitulado A extinção do Estado Nação (The demise of the nation state), dedicado ao mesmo tema, ou seja, dedicado à obsolescência do atual sistema político internacional.
A geometria geopolítica que emergiu da Idade Média era difusa, mas dominada por ampla teia de dinastias hereditárias ou por chefes militares que conquistavam territórios e os controlavam. Nessa ordem política, povos ou nações podiam ser governados ora por um rei, ora por príncipe, ora por um capitão militar, cujas sedes de governo podiam situar-se em terras que não tinham fronteiras entre si. Até hoje, por exemplo, a letra do hino nacional da Holanda lembra esse tipo de arranjo. É a proclamação do Príncipe de Orange (Guilherme de Nassau) que se orgulha de seu sangue germânico e que, na condição de chefe dos Países Baixos, promete honrar sempre o rei da Espanha.
A nova ordem, que consagrou a divisão do Ocidente em Estados nacionais geograficamente determinados, depois estendida ao resto do mundo, surgiu em 1648, dos escombros da Guerra dos Trinta Anos, por meio do Tratado de Westfalia. As pessoas e as comunidades locais já não são mais súditas do príncipe da hora, mas cidadãos de países nacionais delimitados por fronteiras, que têm constituição, bandeira, instituições e governo próprio.
A globalização, o cada vez mais incontrolável fluxo de capitais, a tecnologia digital, o rápido crescimento das criptomoedas que escapam ao controle dos bancos centrais, a disseminação dos chamados big data controlados por grandes empresas de informática, o aparecimento de 65 milhões de refugiados vitimados por violências não provocadas propriamente por guerras entre Estados, os novos impactos destrutivos sobre o meio ambiente, a incapacidade dos Tesouros nacionais de seguir garantindo o pagamento dos benefícios do bem-estar social, a impressionante capacidade do narcotráfico de criar poderes paralelos em muitos países – tudo isso é sintoma e, ao mesmo tempo, causa da desagregação da ordem global prevalecente até aqui.
É compreensível que as reações a esse desmanche sejam as mais disparatadas. O presidente Donald Trump, por exemplo, ameaça deixar a política de supervisão da ordem do Ocidente e proclama o princípio do “put America first”, sabe-se lá com que alcance. O Brexit, a proliferação de partidos populistas em todo o mundo, os movimentos separatistas da Europa, o acirramento dos conflitos tribais na África, a tentativa de criação do califado pelo Estado Islâmico, o aumento do ressentimento das classes médias – todas essas novidades parecem ensaios destinados a procurar escapes às pressões e à sensação de perda de patrimônio e renda que a desarticulação do antigo arranjo vem provocando. E, mais do que isso, parecem à procura de uma nova ordem cuja escala seja capaz de controlar as forças que ganham autonomia a partir do megadesmonte.
Ninguém imagine que os Estados nacionais estejam nas últimas. Como as pessoas, as instituições também gozam de prolongadas expectativas adicionais de vida. E, no momento, não há o menor indício do que possa ser apresentado como opção ao que está aí.
O que parece tendência inexorável é que o modelo em formação aponta para mais globalização, e não para menos. A necessidade imperiosa de unificar a tributação entre os países e os blocos econômicos é sinal disso. E mais globalização implica ainda maior integração financeira, fiscal e política.
Em todo o caso, tudo ainda está à espera de diagnósticos e de prognósticos. Um olhar mais atento sobre essas coisas pode ser o primeiro passo para entender a natureza e o impacto do admirável mundo novo em formação.
23 de abril de 2018
Celso Ming, Estadão
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