José Serra terminou a semana em Paris, na OCDE. Na América Latina, as atenções dividiam-se entre a ruidosa confrontação de Luís Almagro, o secretário-geral da OEA, com Nicolás Maduro, o chefe do regime chavista na Venezuela, e o sólido, inexpugnável silêncio do Brasil. Diplomatas argentinos, chilenos e mexicanos esboçaram o plano de enviar uma delegação da OEA a Caracas com a missão de persuadir Maduro a acatar o referendo revogatório –mas congelaram a ideia diante da ausência de uma palavra brasileira. Temer inaugura sua política externa com uma abdicação da responsabilidade de liderar. Haverá consequências.
Uma circular não escrita esclarece a ordem de silêncio. Matias Spektor detalhou seu conteúdo (Folha, 2/6, p. 2). Brasília não só "não liderará o movimento internacional contra a escalada autoritária na Venezuela" como "tampouco será protagonista do processo de denúncias globais dos desmandos" pois teme "os enormes custos embutidos numa empreitada dessa natureza".
O realismo, reza a circular, impõe o reconhecimento de que faltam-nos instrumentos eficazes para conter um regime que "opera em modo de sobrevivência", está pronto "a chegar às últimas consequências" e não se deterá mesmo se confrontado com suspensões do Mercosul ou da OEA. De mais a mais, "nenhuma força política brasileira" atribui ao Brasil "responsabilidades especiais pelo destino da Venezuela". Assim se prepara um desastre: a prudência, que demanda a inação, logo dará lugar à emergência, que solicitará ações desesperadas.
Todos os sinais de uma explosão catastrófica se reúnem na Venezuela. Sobre a paisagem de um colapso econômico, desenvolve-se uma ruptura institucional, na moldura de cisões entre os militares e na presença de milícias chavistas armadas. O país vizinho encara o espectro da guerra civil.
Nenhum ator externo tem o poder de evitar um desenlace trágico, mas a responsabilidade do Brasil é alinhar os atores regionais num esforço derradeiro de mediação. A única saída legal encontra-se no referendo revogatório. A alternativa é a ditadura escancarada, seguida pela violência descontrolada.
Só o Brasil tem a chave de ignição do motor da diplomacia. Obama decidiu, anos atrás, restringir as iniciativas americanas na Venezuela a declarações de princípio, sob pena de adensar o discurso "anti-imperialista" do chavismo, que funciona como ferramenta de intensificação da repressão interna. Hoje, Washington prioriza a abertura para Cuba e a conclusão da paz na Colômbia, objetivos inconciliáveis com um confronto com Caracas.
Os demais atores regionais carecem do peso específico do Brasil, que operou ao longo da era lulopetista como sentinela diplomática da "revolução bolivariana". Almagro, pré-candidato presidencial em seu país, persegue a luz dos holofotes. Sem o Brasil, seu barulho oportunista provocará apenas um estalido, fragmentando a diplomacia regional.
Na circular não escrita de Serra, há um parágrafo implícito, excluído da síntese de Spektor. O "realismo" brasileiro não deriva dos alardeados argumentos de política externa, mas de uma análise de política doméstica. O governo Temer sente calafrios só de pensar na hipótese de abrir uma frente de combate externa enquanto enfrenta o desafio interno posto pelo lulopetismo.
O equivocado raciocínio subjacente é que o processo de consolidação do novo governo desenrola-se em esfera separada da crise regional deflagrada pela implosão do chavismo. Por isso, o Itamaraty escreve cartas à imprensa estrangeira justificando a constitucionalidade do impeachment mas cala-se face à ruptura institucional na Venezuela, onde se instaura uma ditadura para impedir a substituição constitucional do governo.
Temer e Serra procuram o conforto impossível da irrelevância geopolítica externa. É um flerte da prudência com a irresponsabilidade.
05 de junho de 2016
Demétrio Magnoli é Doutor em geografia humana, é especialista em política internacional. Escreveu, entre outros livros, 'Gota de Sangue - História do Pensamento Racial' e 'O Leviatã Desafiado'. Originalmente publicado na Folha de S. Paulo em 4 de junho de 2016.
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