Estou cansado do ódio e da violência. Estou enojado do show de escândalos deste país, em que as notícias batem-me na cara como pedras. Não adianta criticar nada, pois nada acontecerá. O sistema lulo-sindicalista-aliancista anestesiou o Brasil e desmoralizou a política.
Portanto, hoje, falo de amor, sexo, solidão. Volto ao passado, sugado por num túnel de “flashbacks”.
Quando eu era jovem, nos anos 60/70, o amor era ainda um desejo romântico e, mais que isso, um sonho político contra o “sistema”, uma busca de liberdade contra as regras da caretice, um “desregramento dos sentidos”, diferente desse amor de mercado, amor transgênico, geneticamente modificado – este “fast love” de agora. O amor virou um cultivo da “intensidade” contra a “eternidade”. É o fim do “happy end”. E, no entanto, era difícil amar completamente.
Sou do tempo em que as namoradas não “davam”.
Os meninos de hoje vivem em haréns. Esses garanhões privilegiados – que eu tanto invejo – torcem o nariz para deusas de 18 anos, entediados, enquanto, no meu tempo, as meninas, com pavor de engravidar, deixavam quase tudo, menos o principal, e os rapazes iam para casa com dor nos rins e perpetravam masturbações feéricas.
O medo era a “barriga”, a gravidez. Mas, mesmo depois da pílula, persistia o terror de uma liberdade assustadora; havia ainda um forte apego a vestidos de debutantes, ao organdi branco, aos buquês e véus de noiva esvoaçando nas almas virgens. Quase ninguém “dava”. As poucas liberadas eram vistas pelos rapazes com uma atração cortada de preconceitos. Quantos teriam coragem de casar com elas? Lembro de uma menina na universidade que “dava”, mas o fazia num transe meio epiléptico, sofrendo com olhos virados em alvo, num sacrifício ritual de gritos e choros, do qual acordava sem lembrar de nada.
Não havia motéis, então. Namorávamos em qualquer buraco: terrenos baldios, cantos escuros da noite; eu mesmo já namorei dentro de uma grossa manilha encalhada na praia de Ipanema.
Quantas meninas eu tentei empurrar para dentro de apartamentos emprestados, mas que empacaram na porta!... Quantas unhas quebradas em sutiãs inacessíveis, quantas palavras gastas em complexas cantadas, apelando para Deus, para Marx, para tudo, desde que as saias caíssem e as calcinhas voassem...
E meu caso foi pior, pois minha primeira namorada não era mais virgem – uma raridade. Eu, que vivera até então na horrenda divisão entre bordéis e romances platônicos, achei que ia viver meu primeiro amor adulto. Mas a namorada resolvera “reconstituir” neuroticamente sua virgindade, recusando-se a repetir comigo seu “erro” do passado. Arrependera-se de ter cedido uma única e sangrenta vez ao “canalha” que me antecedera e, com lágrimas e confissões na igreja, queria reconquistar a pureza perdida.
Ou seja, para mim foi o calvário do coito interrompido. No carro do pai dela trocávamos carinhos sôfregos, apavorados, com desespero e orgasmos no ar.
O apartamento era a única esperança; se a menina entrasse, depois era mole. O problema era entrar. “Não adianta, aí eu não entro!”
Eu, jovem comuna, tinha a chave de um “aparelho” secreto do partido, ali em Copacabana – um conjugado com um sofá-cama rasgado onde eu, da “base cultural” da UNE, queria tentar um amor adulto, mas com triplo medo: culpa política, medo de broxar e de ser apanhado pelos comunas “caxias”.
Eu buscava argumentos que iam de Sartre e Simone até a revolução .
“Mas, meu bem... deixa de ser ‘alienada’... A sexualidade é um ato de liberdade contra a direita...”
E ela: “Não entro! Isso seria também uma indisciplina pequeno-burguesa...”
“Mas, meu anjo, você tem de assumir que não é mais virgem!”
E ela, com boquinha de nojo: “Eu sabia que você ainda ia jogar isso na minha cara!” E fugia pelas escadas.
Por isso, muitos homens casados viviam em casas de “rendez-vous”, e jovens corriam atrás de empregadas domésticas tristes e conformadas.
Éramos assim em 1962. Aos poucos, melhorou...
Em 63, conheci a primeira paixão, com vertigem e cegueira, pois, mesmo sem pílula e sem recuos, ela adentrou gloriosamente o “aparelho” do Partidão e, em meio a livros da Academia de Ciências da União Soviética, sob um pôster de Lênin e uma reprodução dos girassóis de Van Gogh, se entregou a mim com amor e coragem. Embaixo, na loja de discos, tocava o sucesso da época “Chove chuva, chove sem parar...” do Jorge Ben. Até hoje, guardo essa tarde revolucionária.
Um dia, ela me largou por outro e eu virei um frágil comuna em prantos no Rio, pensando naquela poesia de Maiakovski: “Venha de volta para meus braços desajeitados, amor...(...) Não é por mim que tenho ciúmes; apenas me enciúmo pela Rússia Soviética...”
Sofri também por aquela ingratidão contra um militante de esquerda como eu, trocado por um engenheiro de “direita” da PUC, feliz possuidor de um reluzente Volks cor de laranja.
Hoje, o ritmo do tempo e do dinheiro acelerou o amor, matando seu mistério. Os casos duram uma semana, o amor tornou-se um “software” que pilotamos, com o controle das emoções programadas. Temos medo de nos apaixonar demais e fracassar na produção.
Mas se a história atual parece não ter mais sentido, ainda queremos encontrar sentido para a vida, claro, e o amor é uma ilusão sem a qual não podemos viver. Mesmo denegada, a sensação de eternidade que a paixão provoca é um desejo geral.
Por isso, lembro aqui um poema lindo de Ferreira Gullar sobre o amor:
"É um lampejo que surgiu no mundo/ essa cor/ essa mancha/ que a mim chegou/ de detrás de dezenas de milhares de manhãs/ e noites estreladas/ como um puído aceno humano/ mancha azul que carrego comigo/ como carrego meus cabelos/ ou uma lesão oculta onde ninguém sabe."
06 de outubro de 2015
Arnaldo Jabor